Em 2004, o candidato tucano a prefeito de São Paulo, José Serra, prometeu de papel passado que cumpriria o seu mandato até o fim.
Fez o que fizera quatro anos antes o candidato petista à reeleição em Ribeirão Preto, Antonio Palocci. Este rasgou a palavra empenhada em 2002. José Serra prepara-se para fazer o mesmo no ano que vem.
Se continuar aparecendo nas pesquisas como o único adversário verdadeiramente competitivo de Lula. E se ganhar a briga de foice que trava no PSDB com o governador Geraldo Alckmin, que está convencido de que a sua hora está chegando.
Ontem, o Estadão deu uma entrevista de duas páginas com o prefeito Serra. Entrevistador, o tarimbado e competente Paulo Moreira Leite.
Já no apagar das luzes do pingue-pongue o repórter finalmente toma a iniciativa de indagar:
“Por que o senhor declarou e assinou uma declaração que iria cumprir o seu mandato até o fim?”.
A única resposta honesta só poderia ser: “Porque isso me ajudaria a ganhar a eleição e porque, àquela altura, não passava pela cabeça de ninguém que Lula pudesse não se reeleger por ampla maioria em 2006.”
Mas, sendo a grande maioria dos políticos o que é, ele se saiu com a seguinte enormidade:
“Eu disse a verdade. Era o que sentia naquele momento.”
Sentia? Naquele momento? Que história é essa? Um candidato se compromete com uma população inteira, um ano depois um jornalista lhe faz uma pergunta que embute a expectativa de que a promessa será descumprida, e o político não só não se dá por achado como reduz tudo a um sentimento passageiro – tipo “eterno enquanto dure”
Ou melhor, verdade com prazo de validade.
E o que faz o entrevistador? Pergunta ao prefeito se ele está arrependido de sua “declaração” (usar a palavra promessa, nem pensar).
A resposta é um modelo de enrolação: “Primeiro, não posso me arrepender de ter dito a verdade [a verdade que, ao que tudo indica, ele se prepara para renegar]. Segundo, era inevitável que isso fosse perguntado reiteradamente durante a campanha [se não fosse, para que fazer um pacto com o povo da cidade a que aspirava governar?]”
E eis que, em vez de perguntar o óbvio contundente – algo na linha de “como o senhor acha que irão reagir os 3,3 milhões de paulistanos que devem ter acreditado na sua palavra, do contrário muitos deles talvez não o elegessem?” –, o repórter retruca com um anódino “O que mudou exatamente?”, dando margem a mais enrolação: “…fatores alheios a mim”, “[não estou] envolvido com o assunto pessoalmente…”, “meu exercício cotidiano é não me envolver e fazer meu trabalho.”
O prefeito José Serra e o jornalista Paulo Moreira Leite protagonizaram um episódio de manual: o primeiro diz o que lhe convém, o segundo deixa que ele se safe numa boa.
O episódio é de manual porque essa é a marca de Caim do jornalismo brasileiro em geral e do jornalismo político em particular: salvo as proverbiais exceções que confirmam a regra, o entrevistador não encosta o entrevistado na parede, não faz que coma o pão indigesto que ele próprio amasssou, não assume o papel de porta-voz das inquietações e indignações da sociedade com os que lhe ofendem a inteligência, tomando-a como um ajuntamento de parvos desmemoriados.
Para ficar no caso do dia, Serra e Moreira Leite são homens do mundo. Viajaram o bastante para saber que não há hipótese de uma situação dessas terminar como terminou – mendaz, de um lado, acoelhada, de outro -, se o político e, principalmente, o jornalista fossem britânicos.
Na ilha, jornalista que vale o seu sal e zela por seu emprego – e não me refiro a jornalista de tablóide – se lança sobre o político, com todo o respeito, feito um buldogue. E aquele que trate de ser imaginoso e persuasivo para não ficar com os fundilhos em farrapos.
Aqui, políticos desdenham dos eleitores. Jornalistas, dos leitores. Depois se queixam quando o povo diz que não estão com nada.
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