Por módicos R$ 2,50, os leitores puderam comprar hoje nos três principais jornais brasileiros, notadamente na Folha, mercadoria de primeira sobre a crise da corrupção. Ganharam de quebra, na Folha e no Estado, uma visão mais ou menos desimpedida de uma tentação (como disse o deputado Severino Cavalcanti, aquele que casou “mais ou menos” virgem).
Por partes, sem jogo de palavras.
O melhor dia não é nenhuma revelação, nem mesmo aquela, mas duas pensatas, ambas na Folha. Bastava uma para valer o ingresso. Têm em comum o fato de trazer títulos interrogativos (“Até tu, Brutus?” e “O PT acabou?”) e, muito mais importante do que isso, o fato de não perguntarem, mas afirmarem coisas seriíssimas para todos quantos não tenham perdido de todo o interesse pela política.
Quem fala em Brutus é o colunista quinta-feirino do jornal, Demétrio Magnoli, geógrafo, cientista social e especialista em relações internacionais. Quem, na pagina ao lado, a Op-Ed da Folha, indaga do paradeiro do PT, é o médico-sanitarista e ex-companheiro Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho, que ficou verde depois de 23 anos de militância no partido da estrela vermelha, pelo qual foi deputado federal e secretário municipal.
A partir de distintos ângulos de visão, os dois dizem coisas muito parecidas — e tão perturbadoras a ponto de um cientista político de São Paulo, que se distingue de boa parte dos colegas pelo interesse e a fina acuidade com que lê o dia-a-dia, se perguntar como algum eleitor ou militante do PT ainda consegue dar uma de avestruz.
O Brutus retórico do título de Magnoli se transforma numa questão substantiva no corpo do texto: “Como explicar que, tão rápido, o “exército dos puros” tenha sido colonizado pelo tumor que se propaga nas instituições da República?” A resposta vem uma dezena de linhas adiante: “No caso do governo Lula, as fontes doutrinárias da corrupção sistemática devem ser buscadas no pensamento político do seu núcleo dirigente.”
O que uma coisa pode ter com a outra está, para o colunista, em três palavras. A primeira é Lula. As outras, José Dirceu.
Por desprezar os políticos (“300 picaretas”) e por se enxergar como “presidente-pai” dos brasileiros, Lula explicaria “a desenvoltura do seu governo nas operações de compra de lealdades parlamentares”. E por recusar, instintivamente e pelo passado, o princípio da separação entre o Estado e o partido, “com o qual as circunstâncias históricas o obrigam a conviver”, o ministro não se impediu de convocar o secretário geral e o tesoureiro do PT para operarem na distribuição de cargos públicos “e talvez algo mais” na base aliada.
Tirando o “instintivamente”, o raciocínio se sustenta – muito mais, por exemplo, do que a nota do PT segundo o qual a relação do partido com a base aliada “se assenta em pressupostos políticos e programáticos” (vixe!).
Vai ver, dirá o avestruz, que esse tal de Magnoli é um reaça do gênero troglô de Denis Lerrer Rosenfield, o professor de filosofia em Porto Alegre para quem, a julgar por seus escritos, petista bom é petista morto.
Mas que dirá o mesmo estrutrionioforme do doutor Eduardo Jorge (citei-lhe o nome por extenso da primeira vez para evitar confusões com o Caldas Pereira do FHC)? “Sob a liderança stalinista de José Dirceu”, escreve o ex-deputado cuja decência ainda não apareceu ninguém para contestar, ‘o PT se transformou numa mistura de PCB piorado (pelo autoritarismo) com PTB também piorado (“não de Getúlio e Brizola, e sim de Ivete Vargas”).
Hoje está claro para Eduardo Jorge que os seus piores receios se consumaram: “O casamento do autoritarismo, fisiologismo e financiamento milionário de campanhas políticas e máquinas burocráticas” está matando a alma do PT.
E está claro que ele sabe o que diz do momento atual: “São dias que valem anos.” A partir deles, o ainda jovem e pretensioso Anakin, na metáfora hollywoodiana do autor, poderá se transformar num “Darth Vader tropical decadente”.
Sob a égide do centralismo
Pretensioso é o ex-petista, metido a dono da verdade, retrucará o avestruz. Proponho-lhe então um trato: esqueça por um momento tudo que os jornais e revistas andaram escrevendo nas últimas três semanas e, se não viu ontem na TV, leia hoje na imprensa o que foi a tão aguardada entrevista do tesoureiro Delúbio Soares, na sua primeira aparição pública desde que foi atingido pelo homem-bomba Roberto Jefferson segunda-feira na Folha.
Foi uma coletiva sob a égide do centralismo. No papel de condutor do evento e policia do entrevistado, o presidente do PT, José Genoíno, negou aos entrevistadores a oportunidade de insistir numa pergunta quando algum deles achasse insatisfatória a resposta (o modelo Lula de conferência de imprensa). Falou por Delúbio nas duas primeiras indagações. E às folhas tantas, deixando saudade do Genoíno de outros tempos, afável, bem-humorado e conversador a não poder mais, despediu o reportariado: “Tá bom, pessoal. Agora chega, vamos embora.”
Nos modos e na tensão, parecia o linha-dura Donald Rumsfeld falando dos mortos americanos no Iraque.
E o que disse entre uma coisa e outra o “homem acuado em seus próprios domínios”, como pareceu ao Estadão? Disse que é inocente, vítima de uma chantagem – embora não ousasse proferir o nome do presumível chantagista. A Folha contou quantas vezes ele falou em chantagem: 15. Quantas vezes ele falou em Roberto Jefferson, seu “carrasco”, segundo a colunista Dora Kramer? Nenhuma.
Ah, sim. Ele informou ter colocado à disposição da Justiça os seus sigilos fiscal e bancário. Como se, tendo feito seja lá o que for, as digitais dos atos que Jefferson lhe atribui pudessem ser encontradas na suas declarações de renda e extratos de conta-corrente.
Do colunista da Folha Jânio de Freitas, que pode ser acusado de tudo, menos de arrastar a asa para os tucanos, como às vezes há quem diga de Dora:
“Ninguém acusou Delúbio Soares de subornar deputados com dinheiro seu ou operado por suas contas e transações pessoais. Além disso, no ano passado a Folha tornou pública a compra de um imóvel, por Delúbio Soares, com pagamento em dinheiro vivo. Prática usual de quem não inclui nas contas bancárias e na relação de bens tudo o que possui.”
Do colunista do Globo Merval Pereira, que fala numa boa com tudo que é político, de Jair Bolsonaro a Heloísa Helena, passando por José Dirceu, pondo a proverbial pá de cal na peculiar teoria delubiana da chantagem e, de quebra, na versão do ministro, em Lisboa, de que os “problemas” que precisam ser investigados não são de “responsabilidade do presidente, do PT, do governo”:
“Não é crível que o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, pagasse mesadas de R$ 30 mil a deputados por conta própria, sem estar ligado a um esquema político que quase certamente teria sua origem em gabinetes importantes do Palácio do Planalto.”
Não é crível, de mais a mais, que uma coisa seja uma coisa e outra coisa seja outra coisa. Tudo parece se juntar nesse pantanal. Primeira nota do Painel na Folha de hoje: “Investigações da PF, da Abin e da Controladoria-Geral da União a partir da denúncia nos Correios apontam para um elo entre a distribuição de cargos nas estatais e o esquema do chamado “mensalão”. Uma das principais fontes de recursos seriam as empresas de energia.”
Sem falar no autêntico elo perdido quando o assunto é “mensalão”: o assessor de assuntos parlamentares da Casa Civil de janeiro de 2003 a fevereiro de 2004. Waldomiro Diniz, lembram-se da figura?
A loira e o carola
Existem lembranças mais amenas. Em outro fevereiro, 10 anos antes, uma passista da Viradouro, de belos seios à mostra, foi convidada a subir ao camarote mais importante daquele carnaval, por lá estava, cercado dos sicofantas de sempre, alguns já pra lá de Bagdá, o topetudo presidente da República Federativa do Brasil, Itamar Franco. E aí muito mais ficou à mostra.
De uma edição da Veja daqueles bons velhos tempos: “Conversa vai, conversa vem, a temperatura foi subindo. Ela enlaçava o pescoço dele, sambando. Ele pousava as mãos sobre a perna dela. Cordata, Lilian Ramos atendeu ao pedido dos fotógrafos para que levantasse os braços quando sambava. Junto com os braços subia a camiseta e evidenciava-se a ausência da calcinha enquanto os flashes dos fotógrafos espoucavam loucamente.”
Não se chegou a tanto ontem no concurso de repentistas nordestinos na cidade-satélite de Ceilândia, prestigiado pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti. Mas, espoucando loucamente, os flashes dos fotógrafos – alheios às tentativas do filho do deputado, José Maurício, de evitar o pior – “fecharam na Proschaska”, como em outro carnaval um cameraman da Globo, imaginando que a palavra era uma gíria paulista para… bem, para já sabem o quê, interpretou errado a ordem do diretor de TV de dar um close no rosto da repórter que cobria o desfile.
O pior só não se consumou porque, diferentemente de Lilian Ramos, a… bem, já sabem o quê, da “loira tentadora”, como a descreveu um já não muito severo Severino, estava protegida por um triângulo de tecido – a calcinha ausente do corpo da carnavalesca que tentou o presidente de 10 anos atrás.
Lilian dizia que era modelo. Keila Dominga dos Reis, a jovem de mini-vestido preto e justo sentada ao lado de um deslumbrado Severino e cochichando toda hora ao seu ouvido, além de segurar na mão dele e alisar-lhe o braço, foi identificada na Folha como “funcionária pública”. O Estado, maldoso, deu que ela “disse trabalhar como auxiliar administrativa no governo do Distrito Federal”. O Globo não deu nada aos seus leitores: nem uma foteca do espetáculo… dos repentistas.
Mas por que diabos fui tentado a falar disso num artigo sobre o que faz os avestruzes do arguto cientista político paulista enfiarem a cabeça na areia?
Primeiro, para terminar com uma amenidade um texto sobre o noticiário político baixo-astral deste nosso país.
Segundo, porque os jornais que mostraram a loira Keila, 23, ao lado do rei do baixo clero (a Folha, desta vez mais maldosa que o Estado, lembrou que ele tem 74 anos) deixaram de aludir à arquiconhecida carolice de Sua Majestade.
Terceiro, para poder dizer que, ao se deslumbrar, à Itamar, com a loira tentação que o escortou na Ceilândia, ele fez uma severinada pela qual dona Amélia Cavalcanti não merecia passar – já não bastasse o fotão da Folha de encher os olhos. Itamar pelo menos era (e continua) solteiro.