Para a edição seguinte à que noticiara a morte de Vlado, o então diretor de redação da Veja, Mino Carta, mandou fazer uma reportagem sobre a conduta dos jornalistas diante da tragédia (e da farsa do suicídio).
A idéia era destacar o papel desempenhado por dois deles: Audálio Dantas, em São Paulo, e Prudente de Moraes, neto, no Rio — e manter o assunto na ordem do dia, quando já teriam se passado mais de duas semanas do crime.
A matéria deveria ser escrita de tal forma a ter uma chance de passar pela censura prévia a que estava submetida a revista. Editor-assistente da seção Brasil, fui escalado para apurá-la e redigi-la – minha primeira incumbência na volta ao trabalho, depois de oito dias no DOI-CODI e no Deops.
O resultado é exemplo de um exercício fútil: o de fazer jornalismo com meias-palavras e contenção em dobro, na vaga esperança de driblar o censor e se fazer entender ao menos pelos bons entendedores.
Naturalmente, embora fizesse a apologia do “jornalismo responsável” e advertisse para as “armadilhas da provocação”, o texto final foi destroçado pelo censor a ponto de torná-lo impublicável. Pensando bem, ele sabia o que fazia.
Transcrevo-o agora, aos 30 anos do assassínio do Vlado, na expectativa de que contribua para que se entenda como eram aqueles dias e como homenagem pessoal ao Audálio, que foi o que a matéria diz – e muito mais. Lá vai:
Na sexta-feira passada, às 5 horas da tarde, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Audálio Ferreira Dantas, foi para casa dormir. Desde a morte do jornalista Vladimir Herzog, no Departamento de Operações Internas (DOI), do II Exército, no dia 25 de outubro, dormir foi o que menos ele pudera fazer.
A privação do sono e dos pequenos confortos habituais também fez parte do cotidiano de muitos outros jornalistas – dirigentes sindicais ou não. Convocados pelo Sindicato, eles desenvolveram, durante esses quinze dias, um intenso trabalho que incluiu contatos com autoridades, a realização de seguidas reuniões e a divulgação de informações a jornais e emissoras de rádio e televisão.
Mais importante, porém, do que o sono perdido, foi o fato de que eles souberam escrever sua intensa, angustiada participação nos acontecimentos segundo o melhor estilo do jornalismo responsável. Esse comportamento exemplar acabou por merecer o elogio indireto, mas cristalinamente claro, do próprio secretário de Imprensa do presidente da República, Humberto Barreto, que se declarou “orgulhoso” da função que exerce.
E não faltaram oportunidades para que as emoções vencessem o mandamento do equilíbrio. “Muita gente não acreditava, por exemplo, que fosse possível realizar ordeiramente o culto ecumênico à memória de Vladimir”, comentou depois o presidente do Sindicato.
A serena combatividade do alagoano Audálio Dantas, 45 anos e 25 de profissão, atualmente editor da revista Realidade, ajudou a transformá-lo nos últimos dias numa figura nacional. “O senhor é um iluminado”, telefonou-lhe, comovido, o pai de um jornalista que se encontrava preso. “Você e seus companheiros de Sindicato agiram como estadistas”, cumprimentou-o o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o septuagenário Prudente de Moraes, neto.
Foi ele o primeiro a pedir ao comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, abertura de inquérito para apurar as circunstâncias da morte de Vladimir Herzog (e o acesso da imprensa às investigações). E foi ele quem decidiu realizar, na sede da ABI, no Rio, um “ato de silêncio”, em lugar da cerimônia religiosa na Igreja de Santa Luzia, proibida pelo cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Salles.
Prudente de Moraes, neto, ex-diretor da sucursal carioca de O Estado de S.Paulo, onde assina uma coluna quase diária sob o muito conhecido pseudônimo de “Pedro Dantas”, não se limitou a isso. Na última quarta-feira, visitou as redações e o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, conversou com o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns sobre as dificuldades que enfrenta O São Paulo, editado pela Cúria Metropolitana, e com o governador Paulo Egydio Martins, em audiência “reservada” de meia hora, sobre a morte de Vladimir Herzog e a situação dos jornalistas ainda presos no II Exército.
“Não conheço nada melhor para acabar com boatos do que franquear a verdade”, disse Prudente de Moraes, neto, ainda no Rio, a VEJA. Essa convicção, rigorosamente compartilhada por Audálio Dantas, tem muito a ver com a maneira pela qual os jornalistas se conduziram, longe ao mesmo tempo das armadilhas da acomodação e da provocação.”
A matéria deveria sair com as fotos de Prudente de Moraes, neto, e de Audálio Dantas. A legenda da primeira dizia, depois da identificação do fotografado: “Franquear a verdade”. A da segunda, “como um estadista”.
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