A nota anterior, ‘Vôo espacial: patriotada, ponderação e pretexto’, contém uma injustiça.
Omite o melhor e mais cáustico comentário aparecido nos jornais de hoje sobre a ida do primeiro brasileiro ao espaço.
Saiu na Folha. O seu autor é Claudio Angelo, editor de Ciência do jornal. O título, ‘Um grande salto para um bauruense, e só’, é só um tira-gosto para o que vem em seguida. Aí vai:
‘A viagem de Marcos Cesar Pontes é um grande salto para um bauruense, mas um passo minúsculo para a ciência no Brasil. Com ela provavelmente nasce e morre o programa espacial tripulado brasileiro, que começou como um delírio megalomaníaco na era FHC e acabou como uma piada no governo Lula.
Programas espaciais tripulados são coisa de gente grande. Herança da Guerra Fria, são executados por nações que têm grandes pretensões geopolíticas -EUA, Rússia e China, coincidentemente também os ‘top-3’ do clube nuclear – ou por aquelas que têm um programa espacial bem desenvolvido em outras áreas.
É o caso da Europa, cujo forte são naves não-tripuladas, como a Huygens, que em 2005 realizou um espetacular pouso em Titã.
O Brasil, claro, não se enquadra em nenhum desses casos. O orçamento do programa espacial nacional equivale a 1/30 do custo de uma única missão euroamericana, a Cassini-Huygens.
É praticamente consenso entre os cientistas que o país ganha muito mais investindo esses recursos parcos em tecnologia de sensoriamento remoto, por exemplo, do que em mandar visitantes ao espaço para realizar pesquisas de balcão. A julgar por declarações do presidente da AEB (Agência Espacial Brasileira), Sérgio Gaudenzi, anteontem a esta Folha, o governo sabe disso.
O astronauta brasileiro é um anacronismo. O acordo que permitiu seu treinamento nos EUA foi assinado em 1997, tempo de relações carnais entre o governo brasileiro e os EUA de Bill Clinton, e de criação da AEB. (Um outro acordo com os EUA, esse sim relevante, previa o uso comercial da base de Alcântara, que traria dinheiro para os minguados cofres da AEB. O PT, então oposição no Congresso, vetou o contrato. Alegava razões de ‘soberania’.)
O contrato inicial previa que o Brasil seria o membro ‘júnior’ do consórcio da ISS (Estação Espacial Internacional). O país entregaria aos EUA uma prateleira e outros equipamentos e teria direito a treinar um astronauta para voar num ônibus espacial.
As peças, orçadas inicialmente em US$ 120 milhões, deveriam ser o passaporte para a certificação pela Nasa de empresas brasileiras de alta tecnologia. Nunca foram entregues. O incremento tecnológico que a ISS deveria trazer ao Brasil não se concretizou. (Hoje, graças a uma manobra de Pontes, algumas peças estão sendo produzidas pelo Senai, instituição que dificilmente integraria um pólo de tecnologia de ponta.)
Com o acidente com o ônibus espacial Columbia, em 2003, corria-se o risco de micar também com o astronauta, o que seria o atestado final de incompetência do país. Nesse contexto surge a ‘carona paga’ com os russos.
A SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) criticou a decisão de torrar R$ 23 milhões com um vôo de propaganda. Afinal, que ninguém se iluda, os experimentos que o astronauta brasileiro leva a bordo da Soyuz estão bem longe de ser um avanço para a ciência nacional.
A crítica é procedente, mas tem um quê de injustiça. Compare-se esse custo, com o perdão do cinismo, aos R$ 55,9 milhões do valerioduto. Se uma única criança, inspirada por Pontes, escolher seguir carreira em ciências, terá valido a pena. Desde que ela não resolva ser astronauta no Brasil.
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