That´s the way it is. Você abre a Folha de hoje e topa na seção Tendências/Debates, na página 3, com um mais do que oportuno artigo a quatro mãos, da historiadora Marcia Camargo e do jornalista Vladimir Saccheta, intitulado “Entre bruxas e sacis”.
Eles se identificam como fundadores da Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci). Não confundir com observadores de naves espaciais com extraterrestres a bordo. Marcia e Vladimir têm a cabeça no lugar, e os seus argumentos, os dois pés firmemente plantados na realidade.
A realidade é a invasão bárbara de palavras e outras expressões culturais sem as quais os brasileiros podem passar muito bem. Por exemplo, sale, off, delivery (esta é de chorar quando pronunciada délivery.
Nada contra estrangeirismos quando os termos são associados a inovações tecnológicas importadas, como quase todos que se referem à informática – embora deletar, em vez de apagar, seja dose.
Mas por que usar sale em vez de liquidação, off em vez de desconto e delivery em vez de entrega? Sabemos por que: para ser muh-dér-no.
Abaixo a xenofobia, é claro. Mas não precisa ser assim. Antes de foot-ball virar futebol, falta era foul; goleiro, goal-keeper; zagueiro, back; juiz, referee; escanteio, corner; impedimento, off-side. Sobrou da terminologia original o penalty, que, cá entre nós, é melhor do que a pedante penalidade máxima.
E hoje é o Dia das Bruxas, que, com este nome ou como Halloween, tem tanto a ver com os costumes e a natureza brasileiras como as renas do Papai Noel, por sinal suando em bicas no nosso Natal estival. Marcia e Vladimir explicam por quê.
E por isso os deputados Aldo Rebelo, do PC do B, e Ângela Guadagnin, do PT, apresentaram projetos para nacionalizar – isto é, estender a todo o território nacional – o Dia do Saci, em 31 de outubro, já instituído na cidade e no Estado de São Paulo.
“Símbolo de resistência aos estrangeiros”, escrevem os autores do artigo e também explicam por que, “o saci congrega elementos multirraciais que configuram o povo brasileiro” [íntegra do texto ao final do comentário].
Se alguém achar que tudo isso é muito barulho por nada – ou, se preferir, much ado about nothing, para mostrar que conhece Shakespeare – basta que pule da página 3 para a 5 da mesma Folha.
Aí está se tratando de coisa seriíssima. “Oposição quer que CPI apure remessa de Cuba”, anuncia o título. Pois bem: no segundo parágrafo da matéria se lê que deputados e senadores querem convocar todos os envolvidos para depor em uma das CPIs em andamento no Congresso.
Só que a repórter que assina a matéria não escreveu CPIs. Escreveu CPI’s.
Podia ser um lapso – afinal a jornalista tem um apóstrofo no nome – mas não foi. Cinco parágrafos adiante, o aberrante sinal – que em inglês indica um vínculo entre dois termos, como em “reporter’s error” – volta a se enfiar no olho do leitor: “…deputados e senadores dos dois partidos se reunirão em Brasília para decidir qual das duas CPI’s…”.
É pouco ou queremos mais’?
Eis o artigo sobre bruxas e sacis:
‘Para quem ainda não sabe, 31 de outubro é o Dia do Saci, oficialmente instituído em São Paulo nos âmbitos municipal e estadual. Os projetos de lei de Aldo Rebelo e Ângela Guadagnin para estender a data a todo o território nacional tramitam em conjunto na Câmara dos Deputados e despertam muita polêmica. Alguns alegam que diante das chamadas pautas de relevância pendentes na agenda do Congresso eles soam supérfluos, exóticos ou até mesmo risíveis. A esses, lembramos que o processo legislativo democrático pressupõe iniciativas sobre os mais diversos temas que, só depois de avaliadas em sua pertinência e constitucionalidade, viram leis. Quanto ao Dia do Saci, já aprovado pela Comissão de Educação, é fundamental entender o que está por trás dele.
A idéia da sua criação partiu do grupo que em 2003 fundou a Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci) para resgatar nossos mitos e difundir o folclore. E a escolha do 31 de outubro não ocorreu por acaso. Numa estratégia para confrontar o Dia das Bruxas, que tem ocupado com força crescente espaços do imaginário, pretende sensibilizar pais e educadores sobre a necessidade de (re)descobrirmos as tradições populares, oferecendo às crianças e jovens alternativas lúdicas e divertidas.
Símbolo de resistência aos estrangeirismos, o saci congrega elementos multirraciais que configuram o povo brasileiro. Nascido tupi-guarani há 200 anos na zona fronteiriça com o Paraguai, incorporou feições africanas e um pito de preto velho no contato com os escravos. E, se perdeu uma perna para representar o ser humano mutilado pela violência do cativeiro, ganhou o piléu vermelho, emblema da liberdade na Roma antiga – que se converteria no barrete frígio adotado pelos republicanos após a Revolução Francesa de 1789.
Já o Halloween tem origem nos rituais do norte da Europa que celebravam o final das colheitas, antecedendo um longo período de inverno, quando os celtas invocavam seus ancestrais e homenageavam os mortos. Com o tempo, a Igreja Católica absorveu o festival pagão, convertendo-o em Dia de Todos os Santos (All Hallows’ Eve), seguido por Finados. Restrito à cultura anglo-saxônica, o Halloween ganhou popularidade no século 19 com a imigração irlandesa para os EUA e começou a ser comemorado no Brasil há cerca de 20 anos, principalmente nas escolas de inglês. Logo tomou os colégios particulares, a rede de ensino pública e as lojas, que passaram a suprir um mercado ávido por produtos e modismos importados.
Esse hábito de ‘macaquear’ o que vem de fora foi detectado por Monteiro Lobato já nas primeiras décadas do século 20, quando Paris se impunha como modelo. Em artigos inflamados, o escritor não se cansava de denunciar o desenraizamento cultural do país, chamando a atenção para a estatuária de ninfas, faunos e anõezinhos nibelúngicos nos parques públicos como o Jardim da Luz, no centro da capital paulista, em lugar de boitatás, iaras ou sacis.
Ciente da importância do saci como portador de múltiplas significações, Monteiro Lobato realizou em 1917 uma pesquisa para estabelecer os contornos antropológicos do ‘insigne perneta’. As conclusões foram lançadas em livro na fase mais cruenta da Guerra Mundial que assolava a Europa, paradigma de civilização aos olhos da elite intelectual da época. Contrapondo à barbárie do conflito um personagem negro, travesso e de uma perna só, ‘O Saci Pererê: Resultado de um Inquérito’ vinha, segundo Monteiro Lobato, despertar consciências adormecidas. Assim como o Jeca Tatu, síntese de um heroísmo silencioso que morre, mas não adere, o saci seria revelador da alma de nossa terra e da nossa gente.
Nunca é demais salientar que referências mitológicas ajudam a firmar a identidade de uma nação. Contribuem para costurar a memória coletiva, reforçar os liames do tecido social, mostrando que fazemos parte de um todo, que temos uma história em comum.
Na medida em que imitamos efemérides de outras culturas de maneira simplória, nos tornamos vulneráveis. Não se trata aqui de endossar posturas xenófobas, mas sim de reivindicar uma troca de mão dupla, que inclui a possibilidade de povoar com sacis o Central Park de Nova Iorque e o Hyde Park de Londres. E, a exemplo de Oswald de Andrade, promover um grande ritual antropofágico de deglutição das abóboras, que traduzem o que há de pior na geopolítica do novo milênio.
No mundo globalizado, ridículo não é acreditar no saci e em tudo o que ele expressa. Lamentável mesmo é se fantasiar de bruxa, em uma atitude de submissão ao colonialismo enlatado, sedimentando o que Silvio Romero dizia se tratar de nosso maior mal: pretender ser o que não somos, trazendo, em contrapartida, o desconhecimento de nós mesmos.’
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