Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cidadão comum como parceiro do jornalismo

(Imagem de Bob Dmyt por Pixabay)

A infraestrutura tecnológica digital de comunicação interpessoal e as novas exigências informativas da população criaram a necessidade de uma parceria entre o cidadão comum e os jornalistas, principalmente aqueles voltados para a cobertura de temas locais.

Esta parceria entre jornalismo e cidadãos é talvez uma das grandes inovações que começam a ganhar corpo no exercício de uma profissão que durante quase dois séculos e meio funcionou no sistema de mão única: do jornalismo para o público. O trabalho conjunto de profissionais e pessoas comuns tende a mudar consideravelmente os comportamentos, regras e valores tanto de uma parte como da outra, como você poderá ver a seguir.

O gradual crescimento da presença do cidadão comunicador na vida social das comunidades é uma alternativa à multiplicação dos “desertos informativos” provocados pela crise no modelo de negócios da imprensa convencional. Como os jornais têm cada vez menos capacidade financeira de atender às necessidades informativas das pessoas, elas acabam tendo que ocupar os espaços vagos na oferta de notícias na comunidade.

As três funções do cidadão comunicador

Esta é uma realidade cada vez mais frequente nas pequenas e médias cidades, aqui e no resto do mundo, e nela o cidadão comunicador cumpre três funções bem definidas: emissor, receptor de dados e operador de tecnologias de comunicação. As três funções do cidadão comunicador são simultâneas, interligadas e, na maioria dos casos, nem percebemos a diferença entre elas.

Cidadão emissor – são as pessoas que passam adiante uma informação, com destaque especial para os indivíduos que exercem algum tipo de liderança local. São os que primeiro identificam problemas, desafios, conquistas e vantagens, por meio da observação do que ocorre na comunidade. Têm uma tendência inata a compartilhar informações e quase sempre servem de referência para colegas, vizinhos, parentes e amigos. É importante notar que quando uma pessoa emite uma informação ela incorpora algo de seu conhecimento pessoal, ou como diz o dito popular: “quem conta um conto aumenta um ponto”.

Cidadão receptor – É quem recebe uma informação passada pelo emissor. Quase sempre o cidadão receptor exerce também a função de emissor, ou seja, um duplo papel. Vale ressaltar que sempre que uma informação é recebida, o receptor precisa levar em conta que ela incorpora parte do conhecimento, experiências e cultura de quem a emitiu. Portanto, há necessidade de procurar identificar o que foi incorporado e o que é original na informação.

Cidadão usuário de tecnologias – Esta é uma função inédita em nossa cultura informativa porque resulta da incorporação da tecnologia na comunicação interpessoal. É o que acontece quando usamos as redes sociais, correio eletrônico e SMS para nos comunicar com outras pessoas. Há uma ferramenta tecnológica que faz a mediação em mão dupla. Antes da internet também havia mediação, mas ela era, quase que exclusivamente, em mão única, do emissor ao receptor. Na era digital, o receptor se tornou também um emissor graças à tecnologia.

A ubiquidade faz a diferença

O cidadão comunicador tem uma ubiquidade infinitamente maior do que a do jornalista. Ele pode estar em mais lugares e mais rapidamente do que qualquer repórter (no sentido amplo fotógrafo, cinegrafista, operador de câmera de vídeo, gravador de áudio etc.) porque ele é parte da comunidade. Tudo o que acontece nela, na maioria absoluta dos casos, está muito mais próximo do cidadão do que do jornalista, principalmente quando este atua centralizado numa redação.

Mas só o boca-a-boca entre cidadãos comunicadores não garante a qualidade das informações que as pessoas usarão para tomar decisões. É aí que entra um agente especializado no manejo de informações, no caso, o jornalista. Um jornalista está preparado para fazer correlações com outros dados e eventos para estabelecer relevâncias. Enfim, tem a formação adequada para identificar o grau de confiabilidade e de pertinência de uma informação num determinado contexto.

Esta parceria ganha uma importância cada vez maior quando avançamos na era digital e passamos a conviver com uma quantidade crescente de notícias circulando nas redes sociais, hoje transformadas no grande espaço público de debates. A era digital também está mudando nossos hábitos de consumo na medida em que aumenta a segmentação dos produtos e serviços em oferta, o que nos obriga a ter informações também específicas sobre o que vamos fazer, decidir ou adquirir. Já não é mais possível escolher apenas entre o bom e o mau, entre o bonito ou feito, entre o caro e o barato. As opções são cada vez mais numerosas e o jornalismo já não consegue mais dar conta de sua antiga função de provedor exclusivo de informações.

As duas missões do jornalista cidadão

O que está ficando cada vez mais claro é que esta parceria começa a mudar as rotinas, regras e valores do jornalismo. O dia a dia da profissão perde o centralismo e a verticalidade predominantes nas redações, embora ainda haja uma resistência à mudança, fruto da inércia herdada de práticas jornalísticas antigas. Aqui precisamos distinguir dois tipos de comportamentos novos no meio jornalístico: o de tutor no estabelecimento da parceria; e o de curador, na seleção das informações mais adequadas às necessidades informativas de indivíduos ou grupos sociais.

A tutoria confere ao jornalista um papel-chave na conscientização do público sobre o uso da informação no dia a dia de cada indivíduo. É uma função nova decorrente do fato de que até agora as pessoas estavam acostumadas a receber notícias prontas de forma passiva. As novas tecnologias deram ao cidadão um novo protagonismo no uso da informação, mas as inovações digitais ainda não mudaram completamente velhos hábitos vigentes há séculos na cultura ocidental.

O jornalismo é a atividade mais bem posicionada para ajudar as pessoas a se transformarem em cidadãos comunicadores (2), o que implica a incorporação de novas habilidades e competências no exercício da profissão, bem como uma reformulação dos currículos acadêmicos nas faculdades de jornalismo. O chamado letramento digital tende a se tornar uma exigência tão importante quanto um diploma de ensino médio, porque permite ao cidadão inserir-se no ecossistema informativo dos ambientes sociais onde hoje somos forçados a viver. É a condição essencial para funcionar como parceiro do jornalismo na produção de notícias e informações necessárias ao desenvolvimento de pequenas e médias cidades.

A parceria na prática do dia a dia

A parceria entre pessoas comuns e jornalistas é na verdade uma soma de esforços visando o bem comum. Quando mães descobrem que as refeições servidas a seus filhos na escola ou creche deixaram de atender aos padrões nutritivos mínimos, elas precisam recorrer a alguém para resolver o problema. Buscar a Secretaria de Educação do município exigirá um deslocamento, perda de horas de trabalho e paciência com os burocratas. Mas se houver um jornalista local focado nos temas da cidade, ele pode funcionar como elo entre as mães e as autoridades municipais. O profissional identifica a gravidade do problema e usa sua condição de repórter para obter esclarecimentos. Caso não os obtenha, pode dar início a uma reportagem investigativa ou até um debate público sobre a questão.

O que acabamos de descrever é um caso hipotético onde a parceria entre pessoas comuns e jornalistas resulta em benefício para a comunidade. Até agora este objetivo era mais retórico do que prático devido à predominância dos interesses e necessidades econômicas das empresas jornalísticas. A nova realidade digital debilitou as empresas porque alterou sua sustentabilidade financeira, o que deu origem aos chamados desertos informativos (cidades sem jornais) e a redações fantasmas (sem repórteres e editores).

Gradualmente, começa-se a perceber que existem formas de reverter esta situação, com proveito para todas as partes envolvidas, desde que mude a motivação para o trabalho jornalístico: da busca do lucro para a preocupação primária com a melhoria das condições de vida nas comunidades.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.