Thursday, 09 de January de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 25 - nº 1320

Relatório McBride: por uma outra comunicação ontem e hoje

(Imagem de Mudassar Iqbal/Pixabay)

Os desafios impostos aos Estados nacionais e à sociedade pelas novas mídias no século XXI – estas protagonizadas pelas redes sociais da internet – nos convidam a voltar quase 50 anos no tempo para resgatar aquele que, provavelmente, foi o divisor de águas no debate das políticas nacionais de comunicação como instrumentos institucionais para a construção de uma sociedade mais justa e democrática no âmbito das nações em desenvolvimento.

Refiro-me à Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação (a Comissão McBride), que colocou definitivamente a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da UNESCO, na linha de frente do combate ao fluxo desigual de informação entre países ricos e pobres e na luta pela democratização da comunicação.

A gênese da Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC)

Em meio à crise do modelo econômico mundial imposto pelas nações mais desenvolvidas do planeta a partir dos anos de 1970, surge um movimento liderado por diversos países então considerados subdesenvolvidos (ou de “Terceiro Mundo”) que criticava a distribuição desigual da renda, do progresso tecnológico e do poder de decisão entre as nações, além de reivindicar maior equilíbrio nas relações econômicas internacionais. A partir desse contexto, nasce a proposta de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOIE), em que se busca um novo conceito de desenvolvimento, diferente daquele hegemônico liderado pelas nações capitalistas mais ricas do globo.

Alguns objetivos foram traçados na direção dessa nova ordem, a exemplo dos países da América Latina, como a busca pelo crescimento econômico, produtivo e tecnológico das nações; por alterações nas relações econômicas externas; pela soberania sobre os recursos naturais próprios e pela preservação da identidade cultural.

Mas para que esses propósitos pudessem ser efetivados, era imprescindível o engajamento das populações desses países à ideia de um novo modelo de desenvolvimento econômico. Para tanto, segundo relata José Marques de Melo, em seu livro Teoria da Comunicação: Paradigmas Latino-americanos (1998), os meios de comunicação foram vistos como possíveis aliados para a implantação desse novo desenvolvimento, tendo em vista o poder de influência que exerciam junto à sociedade.

A respeito disso, relata Melo: “Avulta, portanto, o papel a ser cumprido pelos meios de comunicação, estruturados em redes nacionais, ou interligados a redes multinacionais, de dimensão regional ou internacional. Esses meios são fundamentais na mobilização da opinião pública para respaldar as decisões dos dignitários governamentais, principalmente nos regimes democráticos, onde muitas vezes as campanhas orientadas por monopólios de difusão massiva podem seduzir multidões para comportamentos politicamente equivocados, produzindo repercussões que quase sempre inibem a atuação dos governantes ou os induzem a retroagir em questões de evidente interesse nacional e popular, habilmente manipuladas pelos persuasores profissionais e serviços de grupos privilegiados ou de interesses externos”.

Partindo dessa ideia, os idealizadores da Nova Ordem Econômica Internacional propuseram rever o sistema de informação e comunicação mundial em vigor e, assim, inaugurar uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC). As autoridades que representavam as nações subdesenvolvidas e que lideravam esse movimento não conseguiam fazer com que seus propósitos ganhassem repercussão pública de forma mais expressiva. Isto se devia ao bloqueio colocado pelas agências noticiosas – que gozavam de grande influência global –, gerando um ínfimo impacto nas regiões mais desenvolvidas do globo, além de causar embaraço no acesso das populações dos países mais pobres às informações referentes à NOIE.

Em outras palavras, os governos não conseguiam apoio junto à população para levar à frente os objetivos da NOIE, visto que os meios de comunicação não davam publicidade suficiente para que a sociedade se engajasse. Vale lembrar que pesquisadores da época atribuíam aos meios de comunicação o papel de agentes de dominação cultural sobre as populações das nações periféricas.

Chegou-se, então, à conclusão de que somente a partir de determinadas mudanças nas relações no âmbito das comunicações – cujas características mais marcantes envolviam o fluxo desigual e unidirecional das informações internacionais entre países do sul (subdesenvolvidos) e do norte (desenvolvidos) e os monopólios praticados pelos conglomerados transnacionais de comunicação – é que poderia haver mais equilíbrio nas relações econômicas entre nações ricas e pobres.

A Comissão McBride e a NOMIC

No ano de 1974, na Assembleia Geral da UNESCO, é aprovada uma declaração que condena o que definiram como “neocolonialismo”, seja ele político, social, econômico, e também nos campos cultural e da comunicação. Tal fato contribuiu de maneira decisiva para o estabelecimento, mais tarde, da Nova Ordem Mundial da Comunicação e da Informação (NOMIC). O processo de construção da NOMIC se dá a partir da constatação de um desequilíbrio informativo entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, o que, de maneira breve, direcionou para a formulação de alternativas e de mecanismos para a sua implementação definitiva.

A ideia de uma NOMIC foi concebida em 1977 pela Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação, na UNESCO, tendo à frente o senador irlandês Sean McBride, com o intuito de trazer uma proposta de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação mais justa e eficaz. A Comissão McBride, como ficou conhecida, forjou o que tem sido considerado como o mais completo diagnóstico sobre os problemas envolvendo o campo da comunicação no mundo contemporâneo.

A Comissão foi um espaço de debates formado por correntes de pensamento heterogêneas, com pesquisadores e intelectuais dos mais diversos países, desde a América do Sul até a Ásia, passando pela África. Em que pese a ampla diversidade político-ideológica que sustentou esse grupo de estudos e o contexto um tanto adverso da época (o da Guerra Fria), o seu presidente, Sean McBride explica em seu relatório (que virou livro, como veremos a seguir) que, apesar dessas divergências, todos foram unânimes quanto à necessidade de efetuar reformas estruturais no setor de comunicação. Para ele, alcançar o objetivo de uma nova era mundial para as comunicações e a circulação de informações é muito mais um processo gradual do que simplesmente a adoção de um conjunto de métodos, condições e práticas.

No interior desse processo está a construção de políticas nacionais de comunicação, forjadas a partir de uma perspectiva democrática de ampla participação da sociedade civil, do setor empresarial e do Estado desde a sua elaboração até a sua avaliação. Uma etapa vista como fundamental para a implementação dessa ideia nos países considerados subdesenvolvidos, bem como para a consequente efetivação de seus objetivos.

Desse modo, uma das conclusões mais relevantes trazidas pela Comissão da UNESCO é a de que os meios comunicação apresentam-se como instrumentos decisivos na vida das sociedades, atuando como um poder modelador sobre as consciências dos indivíduos e os sentimentos da coletividade.

“Um Mundo e Muitas Vozes”: uma nova comunicação para um novo mundo

O Relatório McBride – batizado como Many voices, one world: towards a new, more just, and more efficient world information and communication order e publicado no Brasil em 1983 sob o título Um Mundo e Muitas Vozes: comunicação e informação na nossa época – destaca que as políticas de comunicação devem considerar os meios de informação como aliados em prol de um novo desenvolvimento socioeconômico e cultural das nações mais pobres. Ou seja, estabelece um caminho totalmente oposto à realidade predominante no Brasil, onde o poder econômico – representado por oligarquias nacionais, igrejas, políticos e conglomerados transnacionais – é quem exerce o controle sobre os veículos de comunicação mais influentes.

A partir das observações e conclusões a que chegaram os participantes da Comissão McBride, foram expostas as bases para a NOMIC, conforme apontou Melo (1998).

São elas: a busca por uma ordem social mais justa, soberana e democrática, e que respeite os direitos humanos; a necessidade de um ambiente democrático nas instâncias sociais, políticas e econômicas, assim como de relações igualitárias para que a comunicação social amplie seu papel na democratização da sociedade; a formulação de políticas públicas de comunicação por parte dos governos dos países mais pobres ou emergentes, em conjunto com a sociedade civil, voltadas para o desenvolvimento social, cultural e econômico; e eliminar o desequilíbrio tecnológico, econômico e cultural entre as nações com a adoção de medidas estratégicas para o desenvolvimento da comunicação.

Um estudo mais atual que nunca

O estágio atual dos meios de comunicação, bem como os desafios trazidos pelas transformações culturais e sociais por eles engendradas, nos revelam que o trabalho valioso realizado pela comissão do Senador McBride no âmbito da UNESCO ainda dialoga com o mundo contemporâneo.

Afinal, as políticas nacionais de comunicação permanecem de fora da lista de prioridades dos governantes dos países em desenvolvimento; menos ainda são abordadas como política pública, salvo raras exceções, observadas em momentos pontuais da história recente durante governos progressistas.

O caso da Argentina é um exemplo, onde o governo de Cristina Kirchner, em 2009, implementou a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual, ou Ley de Medios, por meio da qual buscou combater o monopólio do setor televisivo por conglomerados empresariais que agiam como partidos políticos de oposição contra governos eleitos democraticamente. No Brasil – onde uma lei dessa magnitude não apenas não se tornou realidade, mas acima de tudo continua um tabu –, o único avanço que merece menção no campo das políticas públicas é a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2008, durante o segundo mandato do governo Lula, em meio ao esforço de fortalecer a comunicação pública a partir de sua reestruturação.

Os exemplos acima, além de pontuais – com base nos ensinamentos do Relatório McBride, no sentido de que a política de comunicação é, acima de tudo, um processo gradual, e não meramente um conjunto de métodos e práticas – demonstram que são corriqueiramente reféns de disputas políticas cada vez mais polarizadas entre (centro) esquerda e (extrema) direita. A consequência disso é a constante e intensa oscilação nas ações estatais para o setor, variando entre medidas pontuais com algum impacto (governos de esquerda ou centro-esquerda) e a total ausência de políticas públicas para democratizar a comunicação (governos de extrema-direita), chegando até à desconstrução do que foi feito por seus antecessores progressistas.

Seguindo a linha de pensamento contida no relatório “Um Mundo e Muitas Vozes” (1983), o avanço tecnológico dos meios de comunicação só proporciona vantagens aos povos na medida em que possibilita um diálogo realmente livre e permanente entre eles, o intercâmbio de culturas, de conhecimento e de informação de forma equilibrada, além de um senso de solidariedade quando os povos sentem que seus destinos se entrelaçam, tendo mais semelhanças que diferenças. Outra virtude dos meios de comunicação apontada pelo relatório é a possibilidade de inserir a sociedade como sujeito ativo das transformações de seu país. Tudo isso é possível num contexto em que a comunicação não serve a interesses de grupos restritos, o que só aprofundaria as desigualdades socioeconômicas e culturais já existentes entre as nações e dentro delas.

E nesse ponto, é como se o presidente da Comissão McBride já enxergasse como seria, no futuro (leia-se: hoje), essa realidade, ao prever que: “Os aspectos desse processo modificar-se-ão constantemente, ao passo que os objetivos continuarão a ser os mesmos: maior justiça, maior equidade, maior reciprocidade no intercâmbio de comunicação, menos difusão de mensagens em sentido descendente, maior autossuficiência e identidade cultural e maior número de vantagens para toda a humanidade”.

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Vilson Vieira Junior é jornalista formado em Comunicação Social e mestre em Ciências Sociais pela UFES. Tem artigos publicados no Observatório da Imprensa, em outros portais especializados em Comunicação e na imprensa capixaba sobre políticas de comunicação, crítica de mídia e instituições participativas de Estado.