Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Canadá: entrevista com Katerine Belley-Murray

“Os jornais locais são o espelho dos anseios de suas respectivas populações. E esses anseios são diferentes de uma comunidade para outra”, diz. (Foto: arquivo pessoal)

Katerine Belley-Murray é uma jornalista canadense que vive em Saguenay, Saguenay-Lac-Saint-Jean, província de Québec. Ela trabalhou como jornalista para o Le Quotidien e o Le Progrès e atualmente é professora de jornalismo na École Supérieure en Art et Technologie des MédiasApós concluir bacharelado em Ciência Política, na Université du Québec à Chicoutimi (UQAC), cursou mestrado na mesma instituição, tendo também estudado na Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia. No âmbito de suas pesquisas, o jornalismo regional e as  fake news têm merecido especial atenção. Em 2013, Katerine recebeu o Prêmio de Jornalismo de Lazer na categoria imprensa local e regional. No ano seguinte, ganhou a categoria Economia e Finanças do Grands Prix des Hebdos. De 2013 a 2016, ela foi membro do conselho da Quebec Press Council. Leia mais na entrevista a seguir.

Enio Moraes Júnior – Uma pesquisa recente mostra que “quase 75% das redações canadenses são compostas de jornalistas brancos e 80% das redações não possuem profissionais negros ou indígenas”. Como você analisa esses dados? Isso influencia a cobertura da mídia no país?

Katerine Belley-Murray – Isso impacta com certeza a cobertura midiática. Os dados do Censo 2016 mostram que 4,9% da população canadense disse ser indígena e 3,5%, negra. Este percentual certamente aumentou, mas os resultados do Censo 2021 ainda não estão disponíveis. Os veículos de comunicação e as escolas de jornalismo põem em prática diversas iniciativas para atrair jornalistas oriundos da “diversidade”. Infelizmente, essas medidas não têm o sucesso esperado. Algumas comunidades culturais não nutrem uma imagem positiva da carreira e isso acaba sendo um ciclo: com menos jornalistas de determinado grupo, as informações nos meios de comunicação sobre este grupo são imprecisas e a juventude não se sente representada. Por exemplo, na Escola Superior de Jornalismo, nós acolhemos frequentemente estudantes franceses. Eu percebo que eles contribuem muito com a qualidade de nossa produção, tanto no tocante às relações com os outros alunos, como no conteúdo dos trabalhos. Portanto, esta diversidade é importante e afeta diretamente o jornalismo. Ao contrário, a falta de diversidade traz um conteúdo afetado pelo prisma da maioria.  No mais, vale mencionar que é mais difícil para um representante de uma minoria étnica penetrar no meio jornalístico do Québec que no resto do Canadá. A maior parte dos imigrantes que chega ao país escolhe se instalar em regiões onde se fala inglês. Isso se torna um desafio suplementar para os meios de comunicação do Québec (francófonos), que desejam recrutar jornalistas de outras etnias. Ainda por cima, o francês é uma língua mais complexa que o inglês. Portanto, mais complicada como instrumento de trabalho para alguém que não nasceu falando este idioma.

EMJ – O que a imprensa nacional diz sobre o Canadá? Quais são os problemas mais relevantes?

KBM – Atualmente, o assunto mundial é a Ucrânia. Mas os últimos anos foram dedicados à cobertura da pandemia. O Canadá ficou em “pausa” por vários meses. No Québec, nós vivemos em clima de “toque de recolher”: máscara obrigatória nos locais públicos, fechamento de restaurantes e cinemas e a instauração de um passaporte vacinal. Evidentemente, todas estas medidas foram objeto de muita explicação – e críticas – nos meios de comunicação. A pandemia colocou em relevo um velho dilema local: a fragilidade do nosso sistema de saúde.

Mais recentemente, a inflação gerada pelos problemas nas redes de abastecimento causa bastante preocupação. Estamos acostumados com uma inflação de 2% ao ano no Québec. Os 5% que vemos atualmente – um recorde desde 1991 – desestabilizam muitos lares. O aumento dos custos de habitação e supermercado impactam diretamente as famílias de baixa renda. 

Os esforços do Canadá no combate às mudanças climáticas são também um assunto que vem frequentemente à tona, apesar de ter sido posto em segundo plano pela pandemia.

Há alguns, Québec vem sofrendo de falta de mão de obra, e essa situação foi agravada pela pandemia. Muitos comércios são obrigados a reduzir seu horário de funcionamento porque faltam empregados e diversas empresas não conseguem mais competir no mercado porque não conseguem garantir mão de obra suficiente. Praticamente, todos os nossos estudantes de jornalismo conseguem emprego assim que saem das salas de aula. Essa é a realidade em quase todas as outras áreas. A necessária reconciliação com os povos indígenas é também um assunto atual.

Em maio de 2021, os restos mortais de 215 crianças indígenas foram encontrados num antigo reformatório da Columbia-Britânica. Um mês depois, mais de 300 corpos foram encontrados no terreno de outro reformatório, em Saskatchewan. Estas descobertas provocaram uma onda de choque no país. A reconciliação será longa e árdua.

EMJ – O Canadá tem cerca de 10 milhões de quilômetros quadrados de terra e abriga cerca de 38 milhões de pessoas. O país também tem uma particularidade: dois idiomas, inglês e francês. O que isso significa para o jornalismo local canadense? Quais temas surgem mais frequentemente?

KBM – Aqui, chamamos esta relação do Canadá inglês com o Québec de “duas solidões”. Esta expressão ilustra bem a realidade. Em razão da língua, a distância entre os dois é inevitável. Muitos quebequenses não falam nada de inglês e a recíproca é verdadeira: muitos canadenses anglófonos não conhecem nem uma palavra em francês. Isso traz à tona um assunto bastante discutido na mídia do Québec: aquilo que chamamos de “Québec bashing”. Esta expressão é utilizada para caracterizar a forma como os meios de comunicação do resto do Canadá tratam da sociedade quebequense, frequentemente chamando-a de “privilegiados da federação”. Mas estas questões são complexas e, para bem responder à pergunta, só escrevendo um livro. Os jornais locais – regionais, não provinciais – são realmente o espelho dos anseios de suas respectivas populações. E esses anseios são diferentes de uma comunidade para outra, passando do acesso à água potável em uma comunidade isolada à exploração do mercado imobiliário em uma população mais urbana.

EMJ – Como você avalia a cobertura de direitos humanos e minorias no Canadá? O que o tema da migração representa para o país e para a mídia?

KBM – Na condição de quebequense e consumindo mais a mídia francófona, vou responder do ponto de vista do Québec. A imigração é uma das chaves para solucionar a falta de mão de obra aqui. Isto é um consenso na mídia, que discute frequentemente o assunto. Este fato parece ser bem aceito pela população. No entanto, o espectro da perda da identidade nacional (cultural e linguística) assusta muitos quebequenses, que acabam sendo reticentes ao acolhimento de estrangeiros. Sendo uma minoria linguística no seio de seu próprio país (e até de seu continente), o receio da perda desta identidade cultural é bem presente na população francófona em geral. Isso é refletido na cobertura midiática do Québec. Em 2019, a Assembleia Nacional do Québec adotou a Lei Sobre o Laicismo do Estado. Esta lei proíbe, entre outras coisas, pessoas em posição de autoridade, como professores, policiais e juízes, de portarem símbolos religiosos. Esta lei foi muito mal-recebida no resto do Canadá. Porém, a maioria dos quebequenses a apoiam. No tocante à cobertura dos direitos humanos e das minorias, será muito difícil cobrir de forma ideal os grandes desafios ligados aos indígenas e às demais minorias até que os membros destas comunidades não tenham voz nos meios de comunicação e até que tenhamos suficientemente jornalistas oriundos destas comunidades.

EMJ – Você pesquisa jornalismo regional e fake news. O que as mídias sociais significam para o jornalismo local? Qual o impacto das notícias falsas nesse contexto?

KBM – Acho que o impacto foi o mesmo que em qualquer outro país onde a democracia funciona. O lado positivo é que a capacidade de difusão das notícias aumentou. Portanto, fica fácil ver seu artigo sendo compartilhado milhares de vezes, mesmo se você trabalha para um pequeno jornal. Assim, a população pode ter mais acesso à informação. As mídias sociais são excelentes meios de mobilização e ação, mas, para retirar das plataformas sociais o que elas têm de melhor, a população precisa buscar a informação de fontes confiáveis. 

Durante a pandemia, o Canadá sofreu muito com as fake news, das mais absurdas e ridículas até as mais perigosas. Eu acho que os algoritmos trabalham mais do lado do mal do que do bem. Outra coisa que não posso deixar de mencionar é que 65% dos jornalistas canadenses afirmaram, em uma pesquisa de outubro de 2021, com 1093 profissionais, terem sido vítimas de cyberbullying durante o ano. Alguns meios de comunicação chegam a enviar seguranças para acompanhar seus jornalistas na cobertura de protestos. Isso é uma realidade nova e desejo profundamente que ela seja passageira.

Outro ponto negativo das redes sociais é a diminuição da renda dos veículos de comunicação. Os GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) abocanham em torno de 80% das ofertas publicitárias on-line. Menos renda, menos jornalistas, menos investigação, menos conteúdo de qualidade e menos meios de comunicação sérios. Aliás, muitos deles desapareceram nos últimos anos, incapazes de sobreviver sem a renda da publicidade. Muitos veículos de Québec estão revisando seus modelos de negócio. Os mais importantes jornais regionais, assim como o jornal de âmbito nacional La Presse, viraram cooperativas. Quanto às minhas pesquisas sobre fake news, elas se concentram nos meios de comunicação locais, mas estão ainda em fase inicial.

EMJ – Como você avalia o engajamento social na formação de jornalistas no Canadá? Qual o futuro da nossa profissão em seu país?

KBM – Existem dezenas de escolas de jornalismo no Canadá e não quero colocar todas “no mesmo saco”. Não sei o que é ensinado fora da minha escola, mas quando um aluno chega na minha classe e diz que quer “mudar o mundo”, eu vejo nele a semente do jornalista! Dá para ver facilmente aqueles que ingressam na carreira pelos bons motivos e aqueles que só querem aparecer na televisão. De vez em quando, eu tenho que lembrá-los de não expor suas opiniões pessoais nas redes sociais porque isso pode vir a perturbá-los no futuro. Os meios de comunicação que empregam nossos alunos demandam a maior imparcialidade possível deles. Evidentemente, ninguém é totalmente neutro – isso não é só impossível como também não é desejável – mas nossas opiniões particulares não devem ser expostas publicamente.

O governo federal canadense está trabalhando em um projeto de lei que obriga os gigantes da web a pagar aos meios de comunicação canadenses pela reutilização de seus conteúdos. Isso nos permite aspirar a um futuro melhor, não somente para a profissão, mas para a qualidade da informação em geral e, consequentemente, para a democracia. As coisas evoluem tão rapidamente na nossa área que seria temerário da minha parte prever alguma coisa… Em 2010, quando eu era jornalista no Le Quotidien, o redator-chefe nos mandou um e-mail pedindo para não mais utilizarmos o Facebook no trabalho, salvo quando fossemos cobrir notícias do quotidiano. Imagine! 

Nota

Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.