A vingança é um prato que se come frio, diz o dito popular. Mas a mesma sabedoria popular lembra que o apressado come cru.
Bastou ser consumado o impeachment da presidente Dilma Roussef, para que Michel Temer voltasse a atacar de cheio à Empresa Brasileira de Comunicação – EBC, considerada por ele um antro de petistas.
Quando assumiu interinamente a presidência da República, em junho, um dos primeiros atos foi afastar o comando da EBC. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, Temer teve que recuar e reinvestir na presidência da estatal Ricardo Melo, nomeado ainda na gestão Dilma Roussef. O cargo dele é vinculado a um mandato especifico de quatro anos e, antes disso, só o Conselho Curador poderia exonerá-lo e em face de uma falta grave.
Consumado o impeachment, o Planalto virou novamente seus canhões contra a EBC. Foram editados uma medida provisória, alterando a lei 11.652/2008 de fundação da EBC, e dois decretos. De uma só tacada, esses atos consumaram o fim de um sistema público de comunicação no Brasil. A empresa deixou de ser pública para ser estatal, a sociedade civil, que se fazia representar por meio do Conselho Curador, foi cassada e um novo presidente, Laerte Rimoli, foi nomeado.
É o mesmo jornalista que o vice-presidente no exercício da presidência da República havia indicado, em junho, pra comandar a empresa e que fora afastado pelo STF.
Michel Temer nem esperou sua volta da China. Diante da pressa, coube ao deputado Ricardo Maia – DEM, no exercício da presidência, deixar as suas digitais nas três pás de cal sobre a EBC. Na prática, a EBC retorna ao perfil do que foi a Radiobrás idealizada pelos militares: uma voz monolítica do governo.
Provavelmente, Temer e seus assessores devem ter entendido que extinguindo o Conselho Curador, o mandato do presidente da EBC estaria fragilizado e passível de uma exoneração. Não demorou muito para que o Planalto lembrasse de que Ricardo Melo havia voltado ao cargo por força de uma decisão liminar do STF e que só com uma nova posição da suprema corte ele poderia sair de lá. Diante disso, a Imprensa Nacional teve que rodar uma edição extraordinária do Diário Oficial, revogando a exoneração de Melo e cancelando a nomeação de Rimoli.
Mas o estrago maior foi mantido.
A participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira, conforme previa a legislação aprovada pelo Congresso Nacional, não mais existe. O Conselho Curador, que era a principal instância de participação da sociedade civil, foi extinto. Desde a sua criação, o Conselho, formado por 14 representantes da sociedade selecionados após editais públicos, já teve representantes de diferentes origens: do advogado Cláudio Lembo e do economista Luiz Gonzaga Beluzo, ao rapper MV Bill e o musicista Wagner Tiso. Além de acadêmicos e pesquisadores em Comunicação, tais como o pesquisador Venício Lima.
A EBC passa a ser comandada diretamente pela presidência da República. Segundo a Medida Provisória, a Diretoria Executiva da empresa será composta por um diretor-presidente, um diretor-geral e quatro diretores, sendo que todos os membros serão nomeados e exonerados pelo presidente da República. Contará com um conselho administrativo formado por representantes de quatro ministérios, além do seu presidente que será designado pela Casa Civil. Doravante, esse conselho administrativo terá a missão de definir alinha editorial, o foco jornalístico e o perfil dos conteúdos culturais da EBC, que reúne a TV Brasil, a NBR, o Canal Brasil Internacional, a Agência Brasil de Notícias e as emissoras da Rádio Nacional e MEC.
A notícia pegou muita gente de surpresa. O Diário Oficial, datado de 2/9, que trouxe os decretos e a MP, circulou por volta das duas horas da manhã. Não houve nenhuma comunicação prévia ao titular do comando da EBC.
Para Edvaldo Cuaio, membro do Conselho de Administração, na condição de representante dos empregados da empresa, as novas regras ferem até mesmo a recém-aprovada Lei das Estatais. Para ele, o temor é que um absolutismo editorial irá prevalecer doravante. Era esse conselho que garantia a independência editorial e de programação em relação ao governo federal. “A pluralidade informativa deixará de existir e o foco editorial será não mais a cobertura noticiosa do Brasil, mas sim do poder Executivo” – afirma Cuaio.
Comunicação Pública
Para a primeira presidente da EBC, jornalista Tereza Cruvinel, “acabou-se a comunicação publica no Brasil”.
A EBC é agora reduzida à condição de agência de comunicação e proselitismo governamental, como era a antiga Radiobrás. Agora, sim, ela estará subordinada ao controle editorial pelo governo, ao loteamento político-partidário, ao fisiologismo e ao empreguismo. Se o Congresso Nacional aprovar tais alterações, estará sepultando o esforço de todos os que se empenharam na realização do artigo 223 da Constituição Federal, implantando um sistema público de comunicação independente e controlado pela sociedade, garantidor da pluralidade e da complementaridade aos serviços privados e estatais – diz em nota Cruvinel.
Para Cruvinel, a TV Brasil, as rádios e a Agência Brasil, geridos pela EBC, não poderão mais ser chamados de canais públicos. “Doravante, serão canais governamentais. Finalmente, o conteúdo ‘chapa branca’, tão denunciado pelas mídias privadas e adversários do projeto, e nunca confirmado nestes últimos oito anos, prevalecerá nos veículos da EBC.”
Conselho Curador
Integrantes do Conselho Curador, agora extinto, estavam em Brasília para uma de suas reuniões regulares, mas nem puderam cumprir com suas obrigações,poisnãoforam facultadas as instalações da EBC para a reunião oficial. Diante da inusitada decisão, soltaram uma nota reforçando a importância daquela instância e lembrando que as balizas editoriais e de conteúdo da EBC não foram uma decisão deste ou daquele governo, mas sim da sociedade. Pois, foi o Conselho Curador quem solicitou a elaboração de todos os manuais, instâncias e normas internas relacionadas à produção de conteúdos na EBC. As deliberações do Conselho tinham a capacidade de corrigir desvios de rotas eventualmente cometidos pela direção da empresa.
Intercom
O grupo de Pesquisa Rádio e Mídia Sonora da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) – principal fórum de pesquisa do país dedicado à mídia radiofônica e integrado por pesquisadores, professores universitários e pós-graduandos de Comunicação Social de todo o país, se manifestou contra a MP 744/2016 do governo Temer. O grupo entende que a EBC é um referencial não somente para a construção do sistema público de Comunicação, previsto na Constituição Federal, bem como para toda a radiodifusão brasileira.
Em nota, externam a indignação com a extinção do Conselho Curador da empresa, decisão que, em termos práticos, acaba com o caráter público da EBC. Destacam, ainda, que a medida provisória lançada pelo governo de Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), foi tomada sem nenhuma forma de consulta à sociedade. “Vai, portanto, contra tudo que se lutou ao longo das duas décadas de regime de exceção e retoma práticas sorrateiras de exclusão do cidadão e de seus representantes do debate a respeito da comunicação de massa.”
A palavra final agora sobre os rumos da EBC estará nas mãos do Congresso Nacional, que terá 120 dias para apreciar a MP da EBC. Movimentos sociais e organizações sindicais de trabalhadores em Comunicação, alguns dos quais se reuniram dia 2/9 em protesto na porta da EBC em Brasília, já planejam suas estratégias para atuar no Legislativo e também no Judiciário.
Procurada e instada a comentar as mudanças, a direção executiva da EBC nomeada pelo governo Temer, não retornou o contato.
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Chico Santana é jornalista, Doutor em Ciências da Informação e da Comunicação, pela Universidade de Rennes 1, França. Editor do blog Chico Sant’Anna e a Infocom