Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ameaça da imprensa ‘corporate’ – 2

[conclusão]

As ‘cinco irmãs’ (por enquanto…)

Mas isso não foi suficiente para deter as fusões. Todos os pontos de ‘filtragem’ desse tipo de processo estão em mãos de partidários das consolidações. Michael Powell, como lembrou William Safire em artigo memorável para o New York Times (‘As cinco irmãs’, de 2/2/2004), ‘nunca se deparou com uma fusão de que não gostasse; (…) na sua retaguarda, no Departamento de Justiça de Bush, está o general Roundheels, outro paladino pró-trustes, que sacramentou o takeover de Murdoch sobre a DirecTV em 2003′. Quanto a Federal Trade Comission do Senado, autoridade máxima para a regulamentação antitruste, tem pautado sua ação, na atual legislatura, por tergiversações, preferindo tratar de ‘abusos contra as normas de decência’ em exibições específicas das redes, do que da questão muito mais importante das regras de propriedade.

Seria essa omissão dos políticos diante da obviedade da concentração excessiva da mídia, consequência dessa própria concentração?

Parece que sim…

Como alguém que depende de votos e, portanto, da exposição ao público que só a mídia pode dar, pode ir contra os interesses de quem pode lhe facilitar ou não o contato com os eleitores?

Eis aí a grande questão que está em jogo.

O fato é que enquanto a discussão jurídica e legislativa prossegue em água morna, as fusões e incorporações vão matando jornais em ritmo alucinante e reduzindo enormemente as fontes de informação ao alcance dos cidadãos. Em 1983, quando escreveu um livro sobre o encolhimento da imprensa independente no país, o reitor da Berkley Graduate School of Journalism, Ben Bagdikian, mostrou que a grande massa dos americanos se informava com base em notícias produzidas e veiculadas por 50 companhias diferentes. Em 2004, na sétima revisão de seu livro, sobravam só seis.

** A Viacom (dona da CBS, da MTV, da Infinity Radios, da Paramount Pictures, da Simon & Schuster, da Blockbuster, e outros);

** a Disney (dona da ABC, da ABC Radio Network, da ESPN, e de muito mais);

** a Time Warner (dona da CNN, da AOL, e mais);

** a General Electric (dona da NBC, da Universal, da Vivendi…);

** a News Corporation, de Murdoch, (dona da Fox TV, da Harper Collins, do Weekly Standard, do New York Post, do London Times, da DirecTV, da Star e da Sky de TV por satélite na Ásia e na Inglaterra, associada à Globo para exploração de TV fechada no Brasil, etc.)

** e a Comcast, a maior empresa de cabo dos EUA, que, recentemente, estudava uma fusão com a Disney.

Esses conglomerados gigantes, todos com faturamento acima das duas dezenas de bilhões de dólares por ano, não são nem empresas de informação nem empresas de entretenimento. Possuem TVs, jornais, editoras; produtoras e distribuidoras de filmes e, às vezes, redes de salas de projeção; gravadoras e distribuidoras de musica assim como empresas promotoras de shows; times esportivos e estádios onde se dão os campeonatos que só elas transmitem, e assim por diante.

Fecham seu próprio jogo monopolista por várias pontas, umas promovendo as outras, misturando notícia, opinião e crítica com produção, exibição e venda de entretenimento, reduzindo a competição, exercendo uma verdadeira ditadura sobre os artistas e ditando a pauta política e comportamental da nação.

Nesse processo, a natureza e o papel do jornalismo foram completamente desvirtuados. As equipes de jornalistas são sucessivamente desmontadas e redirecionadas, a cada nova fusão, para produzir múltiplos noticiários levados ao ar em diferentes estações a partir da mesma mesa. À medida que programas noticiosos comerciais – inseridos em empresas de entretenimento cujas metas são, exclusivamente, proporcionar diversão e atrair receita – tentam manter uma audiência que tem centenas de canais à disposição, os editores de noticiário cada vez mais têm de recorrer ao sensacionalismo, ao escândalo e à simplificação, para manter os índices de audiência e o fluxo financeiro. Além disso, a fronteira, antes sagrada, entre as áreas comercial e de redação não existe mais.

E, com tudo isto, já ninguém se lembra daquilo que ha 10 ou 15 anos, era a função por excelência do jornalismo. Para disputar um emprego hoje, os profissionais do setor têm de esquecer o papel que deles sempre se esperou – o de guardiões da democracia e fiscais do poder publico, orientados por um sentido fundamentalmente ético — para se transformar em meros agentes da expansão da riqueza de um grupo de acionistas.

Quem quer ou precisa ler os portadores desse tipo de ‘missão’?

O chamado ‘Quarto Poder’, essencial ao funcionamento das democracias, está, portanto, gravemente ameaçado de se dissolver na geléia geral da corrida desenfreada atrás do dinheiro.

E isso explica suficientemente a presente crise da imprensa, em torno da qual têm sido construídas tantas teorias exóticas, mas que parece ser, antes de tudo, uma crise de credibilidade. Afinal, como o publico pode levar a sério, para nos fixarmos na versão francesa desse fenômeno, um jornal ‘socialista’ patrocinado pelo barão de Rothschild (o Liberation) e os seus dois concorrentes, o Figaro e o Monde, hoje propriedades de dois grupos econômicos focados na industria de armamentos?

Lições brasileiras para os EUA e o mundo

O resto do mundo é mero aprendiz, em relação aos brasileiros, em matéria de concentração de propriedade da mídia e, principalmente, de ligações perigosas entre ela e o poder político.

Pois é pela falta de uma legislação do gênero, que proteja os interesses dos consumidores sobre o dos detentores desses meios, que nós já estamos, há anos, mergulhados ‘no sensacionalismo, no escândalo e na simplificação’ crescentes na programação das mídias de massa, e submetidos, na maior parte dos estados do país, ao fenômeno do ‘coronelismo eletrônico’. Já ultrapassamos longe o estagio das relações perigosas entre a mídia e o poder político: no Brasil as duas coisas concretamente se confundem.

O ponto de partida desse processo foi o golpe aplicado por representantes de velhas oligarquias que, prestes a serem banidas do cenário político pela redemocratização do país após o regime militar, se auto presentearam repetidoras da Globo ou de outras redes nacionais que foram os embriões de monopólios regionais de opinião e informação realimentados com verbas oficiais de propaganda de seus próprios governos, pela manipulação dos quais esses ‘coronéis’ e seus clãs se eternizam no poder.

Contagem não muito recente mostrou que políticos controlam diretamente 1/4 das emissoras comerciais de televisão do Brasil: 60 de um total de 250. E esse número se refere apenas aos canais que detêm concessão governamental para gerar programação. A Rede Globo tem 21 afiliadas pertencentes a políticos, o SBT tem 17, a Bandeirantes, 9.

É preciso somar a isso o resultado da multiplicação em metástase das redes de telecomunicações sustentadas por ‘igrejas’ das ultimas duas décadas. Foi-se o tempo em que as novas confissões nasciam antes; hoje, a partir de operações obscuras nas áreas de concessão e autorização para transferências de canais, forma-se primeiro a rede de comunicações e em cima dela cria-se a ‘confissão religiosa’ que irá sustentá-la. Cada uma dessas redes ‘religiosas’, assim que se consolida como potencial fabricante de candidaturas, acaba criando também o seu braço político e a sua ‘bancada’ no Congresso.

Esses dois mecanismos levam à criação de máfias políticas virtualmente indestrutíveis. Nos mercados publicitários incipientes do Norte e do Nordeste do país, onde não circulam verbas suficientes para sustentar, de fato, mais do que umas poucas estações de rádio, pululam as redes de rádio e TV do esquema do ‘coronelismo eletrônico’ e das novas igrejas, que se auto-alimentam: elegem os governadores e prefeitos locais que anunciam preferencialíssimamente apenas nos seus próprios meios de comunicação, matando a concorrência de inanição. Calam, assim, todas as vozes dissonantes e se tornam ‘donos do pedaço’. E se, por acaso, alguma onda ética ameaçar varrer um ‘coronel eletrônico’ do cenário político, ela não chegará aos telespectadores, ouvintes e eleitores das suas jurisdições, que ficarão sabendo do que se passa apenas através das lentes cor-de-rosa dos meios de comunicação dos próprios acusados. Por isso, em caso de ameaça de impeachment, todos eles escolhem, rapidamente, o caminho da renúncia, tendo a reeleição como certa.

Nos períodos eleitorais, aliás, entrará, nos intervalos desses ‘noticiários’, o ‘horário eleitoral gratuito’ – espécie de prêmio de consolação concedido aos políticos ou candidatos a políticos ‘sem mídia própria’, para uso em véspera de eleição. Nesses períodos, os veículos eletrônicos de massa, ditos ‘livres’, estão proibidos de veicular qualquer tipo de informação sobre os candidatos que possa ser interpretada como uma opinião contra ou a favor de algum concorrente ou mesmo notícias que possam parecer (ou ser julgadas como) favoráveis a determinados postulantes a cargos eletivos. As notícias devem ser anódinas, como as do Diário Oficial. E todos têm de abrir espaço gratuito para as peças de propaganda elaboradas pelos próprios candidatos. Mesmo que conheçam fatos desabonadores, os comentaristas das emissoras terão de se abster de revelá-los e até de explicar determinados assuntos. Os entrevistados dos programas de rádio e tevê também deverão ser ‘policiados’ para não manifestarem suas preferências eleitorais ou partidárias.

Apesar do esforço dos jornalistas sérios das TVs – que ainda os há – para furar esse cerco, é quase impossível consegui-lo. Somente o jornalismo escrito – acessível apenas aos 15% da população que não são afetados pelo chamado ‘analfabetismo funcional’ – pode ser de fato independente no país, se quiser sê-lo. (Analfabeto funcional é o indivíduo que, embora tendo freqüentado escolas, não compreende bem o que lê e é incapaz de desempenhar as mais simples operações aritméticas, uma grande maioria no Brasil, onde o ensino publico é de baixíssima qualidade).

Mas no front empresarial, os jornais independentes estarão circunscritos a disputar as migalhas de um mercado açambarcado por uma única rede que, graças aos expedientes descritos e à ‘bonificação’ que paga aos publicitários que a elegem como mídia para veicular seus anúncios, detém, em média, bem mais que 50% da audiência nacional e de 70% do bolo publicitário.

Também nesse campo as redes ‘religiosas’, que vivem apenas subsidiariamente de verbas publicitárias privadas e, assim, podem praticar preços vis para disputá-las, são um poderoso inimigo da imprensa independente.

Não existe, por outro lado, nenhuma restrição à propriedade cruzada de diferentes meios de informação numa mesma praça ou em âmbito nacional.

O esquema de poder que vive das distorções das leis de propriedade da mídia no Brasil explica boa parte do atraso institucional do país e da longevidade política dos responsáveis por ele.

A reversão desse processo é praticamente impossível, pois a política de comunicações do país é definida entre os ‘sócios’ das empresas a ela sujeitas, detentores de mandatos legislativos. E impedir a concorrência de se estabelecer, em vez de ampliá-la, tem sido sua preocupação primordial. Pelas normas por eles estabelecidas, proprietários de redes de TV aberta podem ser donos, também, dos sistemas de distribuição de TV a cabo ou por satélite, e sem a obrigação de carregar concorrentes, escândalo proibido em todo o resto do planeta. Por enquanto, a política para TV fechada no Brasil, de exclusiva responsabilidade de quem detém a outorga dos sistemas de carregamento (a Globo), é de mantê-lo caro para os consumidores, de modo a não dividir a audiência hegemônica que ela detém na TV aberta, e inacessível para os canais de concorrentes.

Recém-associada à Sky de Murdoch, a Globo, que já tem a Net, carregadora nacional de TV a cabo, fez com ele um acordo para privilegiar, nesses dois sistemas que controlarão mais de 90% da oferta de TV por assinatura do país, as produções domésticas de ambos.

Os donos de todos esses privilégios podem, igualmente, ser donos de jornais e rádios nas mesmas praças que atingem com suas TVs e subsidiar-se mutuamente em práticas que claramente caracterizam ‘dumping’, tanto nos preços que cobram pela publicidade uns dos outros que todos veiculam, quanto nas possibilidades de mídias cruzadas que podem oferecer aos anunciantes em detrimento dos concorrentes.

E possível reverter o processo?

É demais pensar nesse tipo de padrão no resto do mundo?

Tomara que seja…

Mas não é o que nos sugerem exemplos como o da Itália e mesmo o dos Estados Unidos, hoje reduzidos a cinco ‘Globos’. A máxima do ‘crescer ou morrer’ não é mais que a tradução do instinto predatório do bicho homem que, a Historia mostra, não se detém ou modera senão por imposição legal.

Sem ela, não demora e sobrarão quatro mega empresas na arena da mídia, e depois três, e depois duas, e…

Essa perigosa redução cria um círculo vicioso que é velho conhecido do Brasil, e que se auto-alimenta. A manipulação da mídia abaixa o senso crítico médio da população e prepara o terreno para novas violências.

O poder de corrupção dos grupos de mídia gigantes não vem só do dinheiro; vem principalmente do monopólio da mediação entre eleitores e eleitos que vai se estabelecendo; vem do poder de promover ou abafar pleitos difusos (como o da necessidade da pluralidade de idéias para a saúde das democracias); vem da capacidade de promover ou derrubar pessoas, negócios, valores ou comportamentos. E deixar esse instrumento a solta e a disposição das ambições políticas em disputa justamente no momento em que os Estados Unidos, sozinhos no exercício de uma forca militar sem perspectiva de contestação possível, parecem estar gostando alem do limite do que é saudável de exercer o poder, é um risco que o mundo não precisava correr…

Mas os Estados Unidos são, também, o país que primeiro sentiu a necessidade de por limites às ambições desmedidas. A lei antitruste – o Sherman Act de 1890 – nasceu da revolta dos fazendeiros contra os donos de ferrovias que passaram a lhes apertar o pescoço, desde 1870, quando sentiram que eles não tinham outra alternativa de transporte.

A cultura antitruste é um dos ícones da democracia norte-americana. Talvez, a conquista mais cara e que mais distingue o caráter revolucionário da forma de governo que seu povo criou.

Se algo pode deter e reverter o processo de concentração de propriedade da mídia atualmente em curso, é a força da cidadania na democracia americana. Acuada pelas sensações de insegurança e de discriminação pelo resto do mundo e enlevada pelo apelo patriótico com que se responde a esses dois problemas neste momento conturbado da história do país, a cultura democrática de que ela é portadora parece estar adormecida. Mas certamente não está morta. E não ha nada que justifique que ela não se dê conta, mais cedo ou mais tarde, de que a ameaça encerrada na concentração da propriedade da mídia é muito mais perigosa que a que pode vir das manobras monopolistas da Microsoft, por exemplo, que o povo dos Estados Unidos mantém sob permanente guerrilha judicial.

E o resto do mundo?

É provável, como antecipa Domenico De Masi, que a bandeira contestatória das próximas gerações venha a ser ‘o direito de desacelerar’, que só será obtido com o recuo dos limites para a competição econômica.

Como se conseguirá isso dentro do atual modelo de democracias representativas mutiladas por sistemas de comunicação viciados é algo que ainda está por ser demonstrado.

‘L´espéce d´ oppression dont les peuples démocratiques sont menacés ne ressemblera à rien de ce que l´a précedée dans le monde’. (O tipo de opressão de que os povos democráticos estão ameaçados não se parecerá com nenhuma das que a precederam no mundo.) Alexis de Tocqueville, La Democratie em Amerique, 1832

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Jornalista, diretor do Grupo O Estado de S.Paulo