Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O Brasil ganha ou perde com o acordo Mercosul-União Europeia?

Ministro das Relações Exteriores. (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Gramaticalmente, o Brasil já perdeu, desde o começo. Perdeu um “s”, porque, na pronúncia da nossa língua, um “s” entre vogais soa como “z”. O certo seria Mercocossul, abreviação acrográfica de Mercado Comum do Cone Sul, mas o som cheirava mal. Evitou-se, portanto, o “cocô”, e o Brasil cedeu, aceitando quebrar a regra, mas sem coragem de colocar no lugar dois “ss” ou um “ç”. Em síntese, já começou mal, mesmo dentro de casa na América Latina. Bom, tanto faz, lá fora Brasil se escreve com “z”, o que é bem pior, mas já nos acostumamos com isso.

Temos de ir nos acostumando porque ainda bem pior é o (des)prestígio do nosso presidente no exterior. Cada batatada ou comentário homofóbico, racista, antiambientalista, tem repercussão garantida, seja para provocar risos ou para gerar apreensões.

Em seis meses, o Brasil deixou de ser o “país do futuro”, como sonhava o austríaco Stefan Zweig, para se tornar o país do atraso, governado por uma extrema-direita retrógrada religiosa. Nada a ver com o “cacau, suor e carnaval” de Jorge Amado, nem com o país do café ou do futebol, riquezas que já não nos pertencem. Uma das últimas atrações nos encontros internacionais, tipo Fórum de Davos ou G-20, foi Lula, a versão brasileira de centro-esquerda do líder trabalhista Lech Walesa. Dilma e Temer passaram despercebidos.

Sem cultura internacional, sem jogo de cintura, sem carisma, só a cara fechada e falando pouco para evitar estragos, a viagem de Bolsonaro a Osaka teria sido um verdadeiro fiasco não fôsse a assinatura do presidente no acordo de livre comércio do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) com os países da União Europeia.

As negociações com os europeus vinham se arrastando há vinte anos e, de repente, para alegria do francês Emmanuel Macron e da alemã Angela Merkel, tudo se resolveu em dois dias e, ao que tudo indica, sem qualquer preparação prévia de Bolsonaro. Um verdadeiro milagre, que evitou a Bolsonaro voltar de mãos abanando, devido provavelmente às orações fervorosas dos fiéis evangélicos em favor do “messias” brasileiro.

Nesse caso, é de se perguntar se Deus entende de economia ou se tem mais simpatia pelos europeus. Porque, analisando bem os efeitos de uma aplicação desse acordo com os espertos europeus, sempre restam algumas dúvidas quanto às vantagens que possa trazer ao Brasil e, por redundância, aos países do Mercosul. Será que – parodiando a célebre frase do senador Juracy Magalhães, em junho de 1964, como embaixador da ditadura em Washington, “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” – poderemos também dizer “o que é bom para a União Europeia é bom para o Brasil”?

Nem sempre, mesmo porque, em termos de economia internacional, as regras são mais de lobo para cordeiro. Por isso mesmo, nem os economistas de FHC, de Lula (que interromperam as negociações) ou Dilma deram o nihil obstat para o acordo. Será que Bolsonaro foi o cordeiro bom para a tosquia?

Não se pode ser taxativo, pois as negociações foram secretas, porém as suspeitas de um mal acordo subsistem. Despertam essas suspeitas as vivas reações contrárias de criadores e agricultores franceses, belgas, irlandeses e poloneses por se considerarem as primeiras vítimas da inundação do mercado por gado, aves e produtos agrícolas mais baratos, embora produzidos sem respeitar as exigentes regras de produção vigentes na Europa. Por isso mesmo, protestam também os ecologistas europeus, esse pessoal detestado pelos envenenadores dos produtos agrícolas e pecuários brasileiros.

Nesse estranho acordo entre lobo e ovelha, no qual os mais fortes entram em condições iguais aos países economicamente mais fracos, o Brasil comemora a livre exportação da monocultura da soja e da carne do gado criado solto nos pastos roubados às terras indígenas ou da Amazônia. O Brasil é também o maior produtor em avicultura no mundo, com 1,5 bilhão de aves criadas fora dos padrões europeus. O custo na agropecuária brasileira é mínimo, os empregados ganham pouco e não têm garantias sociais. O lucro será incalculável. Pergunta ingênua: haverá um retorno dessa riqueza em euros para o povo?

Esse é o lado lucrativo do acordo. Por certo, os europeus farão vista grossa ao desflorestamento no Brasil e aos abusos contra os indígenas. Poderão surgir, é verdade, certas reações localizadas de alguns países, proibindo determinadas importações por terem excesso de fertilizantes, por abusos nas granjas de aves, mas não serão suficientes para bloquear o acordo.

E como será a contrapartida dos lobos? A primeira grande diferença está em termos de categoria – no Brasil, os beneficiados com o acordo serão produtores; na Europa, serão indústrias. Em outras palavras: de um lado, produtos primários; do outro, manufaturados. Ao lado dos produtos primários, ganham as categorias dos criadores, fazendeiros, granjeiros, mas o país não ganha nada. Esse tipo de relação não mudou desde a época do Brasil Colônia. País que aceita esse tipo de relação não progride, regride.

Portugal já se rejubila com a exportação de têxteis e de calçados – feitos, é claro, com o couro dos bovinos em abastança do Brasil e que será importado mais barato que banana. Existem grandes indústrias de calçados brasileiras? Que se cuidem, pois a concorrência não será só portuguesa, mas europeia. Mesma coisa com os tecidos.

Porém, a invasão maior será dos produtos industrializados. Será aplicada a política de Juscelino Kubistchek ao contrário. Um tiro na indústria automobilística – os automóveis e caminhões chegarão e desembarcarão prontos no porto de Santos por preço mais em conta do que se fabricados no ABC paulista.

Que outros setores serão afetados? Além da indústria automobilística, que inclui as autopeças, haverá o dos grandes equipamentos industriais, o da química, o dos produtos farmacêuticos e do vestuário. Também os produtos alimentícios europeus chegarão aos supermercados mais baratos que os nacionais, liquidando as fábricas brasileiras de chocolate, biscoitos, conservas, bebidas alcoólicas, águas minerais, cervejas, e acabando com a concorrência dos produtores gaúchos de vinhos aos franceses. Será que os queijos mineiros poderão resistir diante da invasão dos queijos franceses e equivalentes?

Se entregarem a Petrobras, se as indústrias de mineração forem europeias e assim por diante, o que sobrará para o os brasileiros e suas indústrias? O que será do próprio capitalismo nacional? Vão acabar com todo avanço da industrialização brasileira? Socorro, Getúlio, socorro, Juscelino, acabou o sonho do Brasil grande potência!

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Foi criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.