Será que vamos ver as carteiras europeias, enlutadas na Rússia e na Ucrânia, abrirem em breve novas concessões nas Índias Ocidentais, nas Américas, nos países do Eldorado? O mundo dos investidores, de Frankfurt e Luxemburgo passando por Londres, Madri, Milão e Paris, está em estado de choque. A guerra fratricida entre russos e ucranianos mina com uma terrível e cruel eficácia os empréstimos russos em sua versão atualizada. Revistas especializadas, escritórios de bolsa de valores, empresas de consultoria estão agitadas e procuram obviamente novas oportunidades em outros lugares. Por que não, dizem eles, mudar de rumo e encontrar a rota de Colombo e Vespúcio?
As consequências deste conflito devastador vão, paradoxalmente, tirar as Américas latinas de seu langor econômico? Euros e dólares vão agora em fluxo para o Leste-Oeste, seguindo os conselhos do eminente professor Trifólio Girassol? [1] Os comentários são em todos os casos mais e mais encorajadores e até otimistas. Em 8 de março, a carta do “índice da Bolsa de Valores” tocou a remobilização em direção ao Ocidente latino-americano nesses termos: “A invasão ucraniana, qualificada de operação especial por Moscou, reforçou a aversão ao risco em toda a Europa emergente, mas poderia contribuir para o super desempenho atual da América Latina”. “Investir”, publicação com título explícito, em 11 de março, fez o seguinte diagnóstico: “A América Latina (…) no índice MSCI ACWI (para All Country World Index) pesa apenas 1% do total. No entanto, é nesta região do mundo que se esconde uma das grandes ações da bolsa vencedora da guerra na Ucrânia”. O mercado de ações, segundo esta organização, teria progredido em março 11% nas Américas Latinas, enquanto perdia 13 pontos nos países desenvolvidos. No mesmo dia, em 11 de março, Kristalina Gueorguieva, diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), assinalou que um “certo número de países da América Latina, exportadores, podem se beneficiar do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, para aumentar suas vendas para o exterior”.
Em 28 de março, o presidente do Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), Mauricio Claver Carone, declarou diante da Assembleia anual da instituição que “a América Latina e o Caribe têm a possibilidade de desempenhar um papel fundamental na facilitação da circulação das matérias primas”. O PDG do gestor de ativos “BlackRock”, Larry Fink, participou em 4 de abril de um seminário destinado a reorientar os investimentos abandonados em relação à América Latina. A reorganização do mundo, provocada por essa guerra, beneficia essa região do mundo, disse ele. E mais particularmente, acrescentou, e nessa ordem, do México, do Brasil e da Colômbia.
É obvio que a guerra mudou o mercado das matérias primas agrícolas, como também de energias e, sem dúvida também, em breve, de minerais. Produções em que tanto a Rússia como a Ucrânia ocupavam um lugar majoritário, e que um certo número de países latino-americanos pode se beneficiar com o desaparecimento brutal de grandes concorrentes. Os custos do trigo, da soja, do petróleo, do gás e do cobre estão descontrolados. Todas as exportações restantes seguem iguais, graças aos seus cereais, argentinos, brasileiros, uruguaios, e ao seu gás e petróleo, argentinos, bolivianos, brasileiros, colombianos, equatorianos, mexicanos, peruanos, venezuelanos. Estes todos ganharam na loteria. A demanda de clientes estrangeiros incomuns, de acordo com uma consultora brasileira, Safras e Mercado, “foi sentida, o que não é normal, de repente, no primeiro semestre”. Os rendimentos dos países exportadores, em volumes constantes, se tornaram abruptamente verticais. Isto permitirá o financiamento de produtos importados com um alto valor agregado. O fim oficial da pandemia iniciou um recomeço. Alstom no México, com o trem maia e poma, no Brasil com a renovação de um teleférico urbano no Rio de Janeiro, ambos podem ter aberto, sem saber, o caminho para um grande retorno.
Os gargalos, constantemente congestionados, desaparecem em um passe de mágica. O oleoduto transandino Argentina-Chile, fechado há 16 anos, foi reaberto em 5 de abril. A Espanha, a França e a União Europeia recusaram-se a importar cereais geneticamente modificados. A urgência da alimentação animal está movimentando as rotas. Os Estados Unidos, em nome das liberdades, impuseram sanções severas à Venezuela. Eles estão agora revisando em modo acelerado os seus critérios. Os dois governos iniciaram um contato exploratório em 5 de março em Caracas.
A aposta, no entanto, permanece incerta. Isso se assemelha, disse um consultor mexicano, Gilberto Garcia, “ao cachorro que morde o próprio rabo e se sente bem. Você vende matérias primas, você recebe muito dinheiro, mas você deve importar a um preço mais alto”. Os países sem recursos primários exportáveis no Caribe, na América Central, continuam bloqueados. Cuba acolhe tradicionalmente os turistas russos, 7% dos fluxos totais em 2020. Eles vão perder a demanda. Aqueles que vendem às partes em conflito sofrem. Rússia e Ucrânia compravam bananas, camarões e flores do Equador, por exemplo. A guerra privou Quito de importantes mercados. Pior ainda, as sanções suspendendo a Rússia do sistema de pagamentos interbancários SWIFT complicam as transações agrícolas com a América Latina, seja por meio da venda de cereais, ou da compra de adubos. Primeiro exportador mundial de produtos agrícolas, o Brasil importa 60% desses adubos nitrogenados para a Rússia.
O impacto da guerra também é duplo. A inflação pode consumir o que é recolhido na venda do trigo e do petróleo. “A inflação (…) alimentar em particular (…) é o principal desafio da América Latina, e dos mais pobres da região”, para Ilan Goldfajn, alto funcionário do FMI. Os subúrbios das grandes cidades argentinas estão crescendo. E no Peru as manifestações contra o alto custo de vida ameaçam a estabilidade de um poder já instável. No entanto, um dos principais beneficiários do aumento dos preços do cobre, do gás e do petróleo é o Peru.
Finalmente, cuidado com os anacronismos históricos. A assimetria de poder entre os países da América Latina e os Ocidentais, para usar uma terminologia retomada pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia, já não permite repetir a conquista de Eldorado. Uma distância foi tomada por vários anos entre os colonizadores históricos e seus herdeiros. A Rússia, diplomaticamente prejudicada pelas consequências de sua guerra com a Ucrânia, informou que, apesar de tudo, retomou as ligações aéreas com a Argentina, o Brasil, a Costa Rica, o Peru, a Venezuela e o Uruguai. O México, por outro lado, anunciou a manutenção das suas relações aéreas com Moscou. A China não está em guerra aberta e, por isso, não tem nada para retomar. Ela está aqui, e bem aqui na América Latina, com seus bancos, suas empresas e seu Instituto Confúcio.
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Notas
Texto publicado originalmente em francês, em 8 de abril de 2022, na seção ‘Analyses’, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Russie et Ukraine, eldorados perdus. Nouvelle ruée vers les châteaus du nouveau monde?”. Disponível aqui. Tradução de Edson Santos de Lima e Rafael Borges com revisão de Luzmara Curcino e Jocenilson Ribeiro.
[1] Nota dos tradutores: no original “professeur Tournesol”, faz referência ao professor e personagem da série “As aventuras de Tintim”
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.