Em uma de suas inúmeras canções, Chico Buarque dizia que “não existe pecado ao sul do Equador”. Parafraseando o cantor e compositor carioca, recentemente agraciado com o Prêmio Camões de Literatura, podemos dizer que, nos noticiários internacionais da grande mídia brasileira, “não existe neoliberalismo no Equador” (relacionado ao país, e não ao paralelo).
Conforme é do conhecimento de todos, entre os dias 3 e 13 de outubro, milhares de equatorianos tomaram as ruas para protestar contra as políticas de austeridade econômica impostas ao país pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e colocadas em prática pelo governo. Na mídia brasileira, foi construída a narrativa de que as manifestações ocorreram após o presidente Lenín Moreno ter acabado com os subsídios para combustíveis fósseis, o que, em parte, corresponde ao que realmente está acontecendo no Equador.
No entanto, o contexto equatoriano é muito mais complexo e controverso do que mostram os poucos minutos dos noticiários internacionais. Trata-se de uma reação popular ao chamado “neoliberalismo” (palavra tabu na imprensa hegemônica), que corresponde à política econômica que, ao colocar o Estado como refém dos grandes capitalistas, causa graves prejuízos à população, sobretudo aos mais pobres, sem condições de sobrevivência com a perda de direitos sociais básicos.
Também é importante destacar a traição imposta ao povo equatoriano por Lenín Moreno, eleito com a promessa de continuar o legado da “Revolução Cidadã” iniciada por Rafael Correa, que, de alguma forma, contribuiu para a redução da pobreza e da desigualdade social. Porém, conforme afirmou o último ministro das Relações Exteriores de Correa, Guillaume Long, em entrevista ao site Outras Palavras, “logo em suas primeiras medidas como presidente, Moreno aliou-se com forças políticas da direita para aprovar medidas significativas de ‘austeridade’ e liberalização e mudou a política externa do país para uma disposição amistosa com os Estados Unidos”. Não por acaso, uma das pautas das manifestações populares era justamente a deposição de Lenín Moreno.
Aliás, esse cenário de guinada à direita visto no Equador, e na América Latina de maneira geral, nos remete ao final dos anos 1990 e início da década seguinte, quando praticamente todo o subcontinente era governado por presidentes com tendências neoliberais, como Fernando Henrique Cardoso, no Brasil; Fernando de la Rúa, na Argentina, e Jamil Mahuad, no Equador. Os resultados dessas políticas catastróficas foram o aumento do desemprego, da pobreza e a estagnação econômica. Assim como ocorre atualmente, a população também foi às ruas, nas clássicas mobilizações populares como a “Guerra da Água”, o Argentinazo e a deposição de Mahuad. Na época, o Prêmio Nobel em Economia Joseph Stiglitz chegou a dizer que nações como a Bolívia seguiram os mandamentos do Consenso de Washington (responsável pela instituição das políticas neoliberais mundo afora) e não alcançaram o tão sonhado crescimento econômico; enquanto, por outro lado, países como a China não seguiram o Consenso de Washington e viram suas economias cresceram vertiginosamente.
Voltando à crise equatoriana, diante dos incessantes protestos populares, o governo decretou “estado de exceção” em todo o país (“com o objetivo de precautelar a segurança da população e evitar o caos”), transferiu a capital de Quito para Guayaquil (na tentativa de fugir da mobilização das massas) e intensificou a repressão policial aos manifestantes (segundo dados da própria Procuradoria equatoriana, 1.192 pessoas foram detidas, 1.340 feridas e oito mortas).
Nesse sentido, é interessante constatar o estilo “dois pesos, duas medidas” das coberturas geopolíticas da mídia. Se tais acontecimentos fossem na Venezuela, não é difícil inferir que os principais articulistas dos grandes grupos de comunicação do Brasil estariam se dirigindo a Maduro como “ditador”, “sanguinário”, “caudilho” e “déspota”, entre outros adjetivos com forte carga semântica negativa. Porém, como se trata de um governo que possui o mesmo direcionamento ideológico da imprensa hegemônica, praticamente não há críticas às medidas autoritárias de Moreno.
Por fim, no domingo (13/10), após horas de negociações tendo a ONU e a Igreja Católica como mediadoras, o governo equatoriano e líderes dos movimentos indígenas que lideraram as manifestações populares chegaram a um acordo (que teve como principais premissas a revogação dos subsídios para combustíveis fósseis e a suspensão dos protestos).
Após o anúncio do acordo, a mídia anunciou que uma multidão saiu às ruas para comemorar o “fim da crise equatoriana”. Nada mais falacioso. Segundo o economista estadunidense Mark Weisbrot, “o acordo não resolve todos os problemas planteados pelos manifestantes. Por isso, é improvável que Moreno termine o ano e meio restante de seu mandato presidencial sem a repetição de sérias inquietações, caso não enfrente também os temas que este acordo omitiu”. Já uma publicação de um partido político da esquerda brasileira destacou que “para um movimento insurrecional que pedia a derrubada de Moreno, essa ‘conquista’ absolutamente parcial é, na verdade, uma grande derrota”.
E assim a nova guinada à direita na América Latina já começa a manifestar as suas primeiras reações populações. No final da década de 1990 e início dos anos 2000, a “solução” encontrada para o caos social gerado pelas nefastas políticas neoliberais – que, em alguns países, poderia culminar em sangrentas guerras civis – foi “permitir” que governos da esquerda moderada chegassem ao poder. No entanto, no atual contexto, marcado pela recente crise econômica, é impensável – tanto para as grandes potências globais quanto para os poderosos capitalistas – que mandatários que representem o mínimo entrave para o desmonte do Estado estejam à frente das nações latino-americanas.
Portanto, diante dessa realidade, qual o futuro da grave crise política, econômica e social que assola o nosso subcontinente? Mais doses de neoliberalismo? Revoluções? Golpes militares? Tratam-se de questões em aberto, pois somente o equilíbrio de forças que têm os poderosos capitalistas, o imperialismo global e os grandes grupos de comunicação, de um lado, contra os movimentos populares e progressistas, de outro, poderá nos dar a resposta.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.