Nos últimos dias, a onda de protestos desencadeada no Líbano após a mega-explosão ocorrida na região portuária de Beirute (capital do país) tem sido uma das temáticas mais debatidas nos noticiários internacionais, tanto na grande mídia, quanto na chamada imprensa alternativa.
Em tempos considerados “normais”, talvez à exceção de descendentes de libaneses e dos indivíduos que acompanham as movimentações das relações internacionais, a maioria do público tende a não demonstrar muito interesse sobre a situação política do Líbano.
No entanto, o poder chamativo de imagens como a mega-explosão e os confrontos entre policiais e manifestantes fazem com o que o Líbano entre na agenda pública nacional (pelo menos enquanto o país estiver presente nos jornais). Isso significa que o chamado “cidadão comum” provavelmente tecerá algum tipo de comentário sobre o que está ocorrendo naquela nação do Oriente Médio.
Diferentemente das notícias sobre acontecimentos nacionais, em que as pessoas, de maneira geral, têm certa noção do que está sendo apresentado, logo possuindo maior margem de manobra para se contrapor aos discursos midiáticos; os noticiários geopolíticos possuem determinadas peculiaridades, sendo a principal o distanciamento do receptor em relação aos fatos.
Nesse sentido, o primeiro desafio colocado para a mídia diz respeito a como tornar inteligível para a audiência a complexa política do Líbano (que, por sua posição geográfica como país limítrofe a Israel, pode ser considerado peça-chave no xadrez geopolítico do Oriente Médio, além de possuir um histórico de guerras civis e um sistema de governo que obrigatoriamente é composto por cristãos maronitas, muçulmanos xiitas e muçulmanos sunitas).
Além do mais, na grade de programação, os noticiários internacionais possuem espaços menores do que os dedicados à outras temáticas.
Sendo assim, levando em consideração o tempo reduzido para apresentar uma notícia, como tornar familiar para o telespectador uma realidade (aparentemente) bastante diferente da nossa?
É aí que entram em cena o que os analistas dos discursos geopolíticos da mídia chamam de “atalhos cognitivos”, que correspondem a determinados recursos linguísticos, analogias e enquadramentos utilizados pelos veículos de comunicação para facilitar a interpretação do público.
Porém, não nos iludamos! Os atalhos cognitivos são mais do que recursos criados para fornecer segurança hermenêutica. São armadilhas ideológicas estrategicamente forjadas para difundir tacitamente uma determinada agenda geopolítica (no caso da grande mídia brasileira, completamente a serviço dos interesses das grandes potências, trata-se de difundir a agenda imperialista para o Oriente Médio).
Embora o Líbano não seja considerado necessariamente como “inimigo” do Ocidente – como são, por exemplo, Coreia do Norte e Irã – a influência do Hezbollah e a proximidade com Síria, Hamas e Irã tornam o atual governo libanês um obstáculo para as pretensões de Estados Unidos e aliados, principalmente se formos levar em conta as animosidades entre Beirute e Tel Aviv.
Portanto, remover os atuais mandatários e, posteriormente, colocar no poder líderes fantoches, que sejam totalmente submissos aos ditames de Washington e companhia, é fundamental para a política de dominação imperialista sobre os povos do Oriente Médio. É nesse contexto que podemos entender as narrativas midiáticas que abordam os recentes acontecimentos no Líbano.
Vejamos mais detalhadamente os discursos dos noticiários internacionais.
Após a grande explosão que ocorreu na região portuária de Beirute, o governo do Líbano levantou três hipóteses: negligência, acidente ou interferência estrangeira (tendo em vista os antagonismos entre Líbano e Israel, por exemplo).
Na mídia, apenas as duas primeiras possibilidades foram levadas a sério. Considerar a hipótese de ataque estrangeiro (mesmo considerando os ganhos geopolíticos para Israel com a desestabilização de seu vizinho boreal) é “acusação sem argumentos” ou “teoria da conspiração”, termo pejorativo utilizado para desqualificar quem denuncia as ações dos Estados Unidos e seus aliados.
Revertendo a questão, não é difícil supor que, caso uma explosão de tamanha magnitude ocorresse em território israelense, os articulistas da imprensa hegemônica logo apontariam o dedo para o Líbano ou alguma organização muçulmana taxada como “terrorista”.
Divergências sobre as causas da explosão à parte, é curioso constatar que, poucos dias após o infeliz acontecimento na região portuária de Beirute, “manifestações espontâneas”, “apartidárias”, “sem lideranças claras” e “contra a corrupção estatal” tomaram as ruas da capital libanesa.
Diga-se de passagem, movimentos bastante similares ocorreram recentemente aqui no Brasil, na Ucrânia e no Egito – países cujos governos, assim como o do Líbano, não eram “necessariamente inimigos do imperialismo”, mas precisavam ser removidos. Mas, para não ser rotulado como propagador de “teoria da conspiração”, vou dizer que se tratam de “meras coincidências”.
Também não deixa de ser notório observar como a mídia cobriu as manifestações. Não precisa ser especialista em geopolítica para concluir que, em geral, qualquer tipo de protesto em que os manifestantes depredem os patrimônios público e privado é taxado pelos articulistas midiáticos de “ato de vandalismo”.
Outra estratégia discursiva corriqueira para deslegitimar movimentos sociais consiste em ocultar as pautas que levam centenas ou milhares de pessoas a irem à s ruas (o que gera a impressão de que determinados manifestantes são apenas “arruaceiros”).
Entretanto, as “manifestações espontâneas” no Líbano foram retratadas positivamente nos noticiários, inclusive com bastante destaque para as demandas dos manifestantes. Segundo os articulistas da grande mídia, os libaneses (sim, os manifestantes representam toda a população do país, pois a metonímia é um dos atalhos cognitivos dos noticiários) estariam fartos de um “governo corrupto”, “clientelista”, “adepto a conchavos” e de um “sistema político anacrônico”.
Não importam os “danos ao patrimônio”. O que é uma vidraça quebrada perto da renúncia de um aliado do Irã, que posteriormente poderá ser substituído por alguém próximo às grandes potências?
Também chamou a atenção uma manchete da GloboNews que dizia “policiais entram em confronto com manifestantes”, o que responsabilizava as forças repressivas pelo enfrentamento, prática raríssima em coberturas desse tipo de acontecimento. Alguém consegue imaginar, por exemplo, um editorial da grande mídia com a seguinte frase: “PM entra em confronto com MST”.
Mas, toda manipulação midiática que se preze não deve só levantar um problema; é preciso também apontar uma solução para que o roteiro da narrativa midiática fique completo.
Para isso, novamente é preciso recorrer a um atalho cognitivo: a personalização, que significa reduzir a política institucional a indivíduos, não levando em consideração os interesses econômicos, culturais e religiosos que estão por trás das relações internacionais.
Se existe um “problema” (as crises política, econômica e social do Líbano) a “solução” é a “ajuda humanitária internacional” liderada por Emanuel Macron. Não por acaso, a imagem do presidente francês sendo saudado como “herói” pela população libanesa foi bastante exibida nos noticiários.
Desse modo, Macron é a personificação da solução imperialista para “estabilizar” o Líbano. Trata-se do velho imaginário social do “civilizado europeu” que vem para salvar o “povo bárbaro colonizado”. E assim é finalizada mais uma cobertura dos noticiários internacionais.
Evidentemente, seria pretensioso e simplista apontar uma solução definitiva para os problemas que assolam os povos do Oriente Médio. Porém, é possível afirmar que, qualquer tipo de melhoria para essas populações deve passar, inexoravelmente, pelo fim da interferência imperialista na região, o que significa seguir o que a própria ONU apregoa (pelo menos no âmbito retórico): o princípio da autodeterminação dos povos.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Professor da Escola Estadual “Adelaide Bias Fortes” e coordenador da área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV).