Logo na primeira semana de 2020, o mundo se surpreendeu com a notícia do bombardeio aéreo estadunidense contra um comboio militar iraniano nos arredores do aeroporto de Bagdá (capital do Iraque), que levou a óbito, entre outras pessoas, o general Qasem Soleimani, chefe da Guarda Revolucionária do Irã e um dos homens mais poderosos da nação persa. De acordo com o governo dos Estados Unidos, Soleimani teria orquestrado a invasão à embaixada estadunidense na capital iraquiana ocorrida dias antes e “estava desenvolvendo planos para atacar diplomatas americanos e membros do serviço no Iraque e em toda região”. Por sua vez, Teerã negou veemente qualquer tipo de participação nessa invasão ou que possua planos para atacar cidadãos dos Estados Unidos no Oriente Médio.
Conflitos de versões à parte, é fato que, como todo acontecimento geopolítico de grande magnitude, a repercussão da investida bélica dos Estados Unidos contra as forças iranianas causou pânico, desinformação, opiniões superficiais, análises maniqueístas, fake news e, como não poderia deixar de ser, manipulação midiática em favor de um dos lados em disputa.
Em sites de busca como Google, Bing e Yahoo, aumentaram substancialmente as pesquisas pelo termo “Terceira Guerra Mundial”. Nas redes sociais, foram produzidos diversos memes sobre um possível grande conflito em âmbito planetário. Em vídeos no YouTube, repentinamente surgiram vários “especialistas” em geopolítica do Oriente Médio. E, nos principais jornais impressos e televisivos, os antagonismos entre estadunidenses e iranianos foi o principal assunto abordado.
Como os noticiários geopolíticos produzidos em nosso país são, em sua maioria, totalmente submissos aos interesses imperialistas, a mídia brasileira buscou construir a narrativa de que os ataques estadunidenses ao comboio iraniano (sem um contexto formal de guerra, diga-se de passagem) não se tratou de um ato criminoso (ou mesmo “terrorismo de Estado”), mas de uma retaliação de Washington às provocações do Irã (país governado por “xiitas fanáticos”).
Desse modo, não faltaram matérias apontando que o Irã é uma ditadura, que Soleimani era temido e/ou odiado pela maioria de seus compatriotas, que o “regime” de Teerã é impopular (pois recentemente foi alvo de “protestos” de seus cidadãos) e que os Estados Unidos realizaram um “ataque preventivo”, com o “cândido” objetivo de evitar mais um conflito armado no mundo islâmico.
Em contrapartida, fatores geopolíticos importantes – como a destruição do Iraque após a invasão estadunidense e o interesse de Washington sobre o petróleo iraniano – foram estrategicamente negligenciados do grande público.
Também chamou bastante atenção o grande número de professores universitários e ex-embaixadores ouvidos pelos noticiários que nada mais fizeram do que somente referendar (com um aval pseudo-intelectual) os posicionamentos pró-imperialistas da imprensa hegemônica. Assim, em troca de aparecer na tela da GloboNews, acadêmicos lançaram mão de suas capacidades analíticas para defender a ação criminosa de uma superpotência contra uma nação soberana.
Outra questão a se destacar diz respeito ao léxico geopolítico da grande mídia. Palavras como “democracia”, “terrorismo”, “retaliação” e “ataque preventivo” não são utilizadas nos noticiários para descrever o andamento das relações internacionais, mas com o tácito intuito de tentar induzir o público para um determinado posicionamento.
Consequentemente, as guerras travadas pelo imperialismo no Oriente Médio não são realizadas com o objetivo de ter acesso privilegiado às riquezas naturais da região (sobretudo o petróleo), mas para levar “democracia” aos “povos oprimidos por governos tiranos”. O ataque dos Estados Unidos às forças iranianas não foi um ato criminoso, mas, conforme já frisado, pode ser classificado como “retaliação” e “ataque preventivo”. E o assassinato de Soleimani justifica-se por ele “apoiar atentados terroristas”.
Já a chamada “personalização da notícia” – isto é, reduzir toda a complexidade do xadrez geopolítico às ações isoladas de um determinado chefe de Estado – é uma estratégia discursiva que contribui mais para confundir do que propriamente para explicar as relações internacionais. Nesse sentido, o telespectador mais desavisado pode chegar à errônea conclusão de que o atentado estadunidense contra os militares iranianos foi apenas mais um dos atos impensados do excêntrico Donald Trump, ao invés de ser analisado como mais um capítulo do histórico de arbitrariedades dos Estados Unidos contra os povos do Oriente Médio. Não nos iludamos, os Estados Unidos são uma potência inerentemente intervencionista, independentemente de quem esteja ocupando a Casa Branca.
Por outro lado, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, o professor da Universidade Federal do ABC, Igor Fuser, um dos intelectuais não seduzidos pelos brios da GloboNews, desmascarou as falácias propagadas pela grande mídia. Segundo o docente, “o Iraque é um país soberano que não foi consultado, foi atropelado nessa ação militar dos Estados Unidos. O Irã é outro país soberano. O general assassinado é uma importantíssima autoridade no Irã. Não é um terrorista, não é uma pessoa fora da lei. Uma figura contra a qual nunca houve nenhuma denúncia internacional. Nenhum processo. Foi um ato terrorista. Os Estados Unidos não aceitam nenhum país no mundo que contrarie os seus interesses. […] O Irã tem um governo com forte apoio popular. Não é uma ditadura. Tem um governo eleito, tem parlamento, tem partidos políticos”.
Além do mais, conforme mostraram as imagens da multidão presente no funeral de Soleimani, o ex-chefe da Guarda Revolucionária era uma personalidade extremamente popular em seu país.
Revertendo o ataque ocorrido em Bagdá, imaginemos se o exército iraniano bombardeasse um comboio dos Estados Unidos e/ou matasse um de seus principais líderes militares; um nome do alto escalão da CIA, por exemplo? Quais seriam as manchetes dos jornalões brasileiros? Como seria a cobertura das principais emissoras de televisão?
Pode-se questionar o caráter teocrático do governo de Teerã e o conservadorismo da religião islâmica. Porém, vale lembrar que o Irã jamais invadiu outra nação, contribuiu para desestabilizar os seus vizinhos, patrocinou golpes de Estado mundo afora, tentou assassinar presidentes estrangeiros ou seu programa nuclear foi responsável pelo lançamento de bombas atômicas contra alvos civis. Já em relação aos Estados Unidos – “autodeclarada maior democracia do planeta” -, não podemos dizer o mesmo.
Embora seja uma questão demasiadamente complexa, a paz no Oriente Médio só será alcançada quando as tropas imperialistas se retirarem completamente da região. Em outros termos, isso significa conceder aos povos islâmicos a prerrogativa de decidir o seu destino sem a interferência ocidental.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV. E-mail: ffernandesladeira@yahoo.com.br.