Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Belarus além da grande mídia

(Foto: Roberto Stuckert Filho/PR)

Entre os analistas das relações internacionais, é praticamente consenso a premissa de que, atualmente, o uso de diversos meios de comunicação é fundamental para a difusão das agendas ideológicas dos diferentes atores que interagem no cenário geopolítico global (o que vale tanto para as grandes potências imperialistas quanto para as chamadas “organizações terroristas”).

Para entender essa questão, é fundamental recorrermos ao conceito de “guerras híbridas”, explicado minuciosamente no livro homônimo do jornalista e analista político estadunidense Andrew Korybko.

De maneira sucinta, uma guerra híbrida é caracterizada por investidas dos Estados Unidos e aliados contra outras nações, não a partir de intervenções militares diretas (de certo modo inviáveis na atual conjuntura), mas por meio de “guerras indiretas”, “por procuração”.

Segundo o historiador gaúcho Miguel Enrique Stedile, uma guerra híbrida se trata da combinação entre revoluções coloridas e guerras não convencionais. Neste novo modelo de guerra, as revoluções coloridas – largamente planejadas anteriormente e utilizando ferramentas de propaganda e estudos psicológicos combinados com o uso de redes sociais – consistem em desestabilizar governos por meio de manifestações de massa, em nome de reivindicações abstratas como democracia, liberdade, anticorrupção, etc.

Se a revolução colorida não for suficiente para combater e substituir o governo, avança-se para o estágio da guerra não convencional, aquelas combatidas por forças não regulares, sejam guerrilhas, milícias ou insurgências.

No tocante às revoluções coloridas, o modus operandi imperialista consiste em apoiar tacitamente determinadas convocações (que podem ser via mídia tradicional ou redes sociais) para que a população se manifeste “espontaneamente” contra governos considerados hostis aos interesses de Washington e aliados.

Oficialmente, uma revolução colorida tem início a partir de um “acontecimento” que deve ser, concomitantemente, controverso e polarizador. Esse “acontecimento”, incessantemente reproduzido pela mídia e nas redes sociais, levará “multidões indignadas” às ruas.

Nos últimos dias, há dois casos típicos de guerras híbridas presentes nos noticiários internacionais: o primeiro, no Líbano (que abordei na semana passada); e o segundo em Belarus (ou Bielorrússia), ex-república soviética.

Assim como ocorrido em relação à nação árabe, a cobertura da grande mídia brasileira sobre a situação política de Belarus segue a mesma linha editorial de se limitar a reproduzir estereótipos, maniqueísmos, tipificações, personalizações e lugares-comuns difundidos pelas agências de notícias internacionais.

Desse modo, como o governo de Minsk, vizinho e aliado da Rússia, é considerado hostil aos interesses de Washington e companhia, logo será representado negativamente na mídia hegemônica.

No entanto, diferentemente do Líbano, a ex-república soviética, desde sua independência, há quase trinta anos, praticamente não esteve presente nos noticiários brasileiros, fator que, em tese, favorece as manipulações midiáticas sobre o país.

Como em toda guerra híbrida, a revolução colorida bielorrussa (no caso, nem tão “colorida” assim, pois os “manifestantes” vestem branco) teve início a partir de um “acontecimento”: a (suposta) fraude no processo eleitoral vencido pelo presidente Aleksandr Lukashenko, que está no poder há duas décadas e meia.

Aliás, a acusação de que uma determinada eleição foi fraudada, quando o vencedor das urnas não é um candidato impulsionado pelos países imperialistas, já virou um dos principais clichês políticos dos últimos anos. Foi assim no Brasil, na Ucrânia, na Venezuela, na Bolívia e agora em Belarus.

É fato que Lukashenko, conforme amplamente noticiado pela imprensa, sob o aspecto retórico, possui uma postura negacionista em relação à pandemia da Covid-19; chegando, inclusive, a sugerir vodka e sauna contra o coronavírus.

No entanto, uma questão é a “personalidade” de um homem público; outra questão, completamente diferente, diga-se de passagem, é o governo de um país. As personalizações presentes nos discursos midiáticos – ao reduzirem o complexo cenário político a indivíduos, não levando em consideração questões econômicas, culturais e sociais – mais distorcem do que propriamente explicam uma determinada realidade.

Já as tipificações dos noticiários internacionais – que, por si só, já trazem um forte caráter de juízo de valores a uma determinada prática discursiva – apresentam Lukashenko como “autocrata”, “líder autoritário” e “o último ditador da Europa”.

Diante dessa realidade, como bons cidadãos céticos, é fundamental nos questionarmos se Belarus é realmente esse “inferno terreno” apresentado nas narrativas midiáticas.

Em artigo intitulado “Tentativa de golpe imperialista na ‘última república soviética’”, publicado no Diário Causa Operária, o jornalista Eduardo Vasco destaca alguns pontos que nos auxiliam a entender o porquê de Belarus ser representada de forma tão negativa nos noticiários internacionais. E isso não tem nada a ver com as idiossincrasias do presidente.

Belarus possui uma economia altamente estatizada, herdada da União Soviética. O setor público fornece 93% dos serviços médicos e 99,7% dos bielorrussos são alfabetizados. Seu IDH é o maior do Leste Europeu. A taxa de desemprego no país é de apenas 0,5% – uma das menores do planeta. “Isso é devido a que o Estado controla 80% da economia e mais da metade dos trabalhadores está ocupada em empresas estatais, ou seja, há uma grande estabilidade no emprego”, ressalta Vasco.

Evidentemente, para uma mídia que apregoa o Estado mínimo, privatizações, entrega das riquezas nacionais e cortes de direitos fundamentais da população, Belarus é um exemplo a ser combatido.

Além do mais, esta política com forte atuação estatal refuta cabalmente as tentativas de articulistas da grande mídia brasileira (como Octávio Guedes da GloboNews) em insistentemente comparar Lukashenko a Bolsonaro (eleito presidente para colocar em prática uma agenda neoliberal).

Também é importante lembrar que, para as grandes potências globais, remover Lukashenko do poder e, em seu lugar, colocar um governo fantoche, pró-Ocidente e anti-Rússia, é fundamental para que Belarus se torne uma nação “amigável” para investimentos estrangeiros (eufemismo para exploração especulativa).

Outra questão bastante destacada pelos noticiários internacionais sobre Belarus foi o fato de o campeonato nacional de futebol não ter sido paralisado por causa da pandemia da Covid-19.

Nesse caso, é possível perceber com clareza a lógica “dois pesos, duas medidas” da mídia brasileira. A Rede Globo, devido a interesses financeiros, foi uma das principais incentivadoras do início do Brasileirão, mesmo com a pandemia praticamente incontrolável por aqui, colocando em risco a saúde de atletas e de seus familiares.

Já uma crítica extremamente hipócrita feita pela grande mídia sobre a política bielorrussa está relacionada à prisão do youtuber Sergei Tikhanovsky (apontado como potencial adversário de Lukashenko na última disputa presidencial) realizada poucos meses antes do pleito.

Por aqui, em 2018, Lula, então candidato preferido pela população, foi preso justamente para não concorrer na eleição presidencial, o que pavimentou o caminho para a vitória de Jair Bolsonaro.

Mas, ao contrário das acusações em relação à Belarus, praticamente nenhum articulista da grande mídia acusou o sistema político brasileiro de “ditatorial” por impedir alguém de se candidatar ao cargo máximo do país.

Sobre a rotulação de Belarus como “ditadura”, pelo fato de Lukashenko ter sido eleito cinco vezes consecutivas, não custa enfatizar que a chanceler alemã Angela Merkel está no poder há quinze anos e os Estados Unidos, “principal democracia do planeta”, possui um sistema político marcado pelo revezamento na presidência de dois partidos sem grandes diferenças significativas.

Enquanto isso, no sistema bielorrusso, lembrando novamente o texto de Vasco, há o Congresso do Povo “que reúne a cada cinco anos 2 mil delegados eleitos em seus locais de trabalho, estudo e moradia para discutir propostas e estabelecer estratégias políticas para o país”.

Algo mais semelhante a uma democracia direta, como os diversos tipos de fóruns que existem atualmente em países como a Venezuela (ironicamente, também um Estado “ditatorial”, segundo a mídia).

Certamente, não vamos encontrar as informações apresentadas acima nos noticiários geopolíticos da grande mídia, pois suas pautas já vêm prontas, são propostas pelas agências internacionais de notícias; logo de acordo com o pensamento ideológico das potências imperialistas. Não há espaço para o contraditório.

Evidentemente, não proponho aqui uma análise maniqueísta sobre a geopolítica global, tampouco construir uma narrativa apologética para a figura de Aleksandr Lukashenko. Os antagonismos com as grandes potências não nos impedem de constatar que Belarus, como qualquer outra nação do planeta, também possui seus aspectos controversos.

O que pretendo com esse texto é somente denunciar as grotescas manipulações dos noticiários internacionais, que, conforme já mencionei, via de regra, apresentam visões unidimensionais sobre o complexo cenário das relações internacionais.

Sendo assim, é oportuno parafrasear o velho Leonel Brizola, “Quando vocês tiverem dúvidas quanto a que posição tomar diante de qualquer questão geopolítica, atentem: se a mídia hegemônica for a favor somos contra. Se for contra, somos a favor”.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Professor da Escola Estadual “Adelaide Bias Fortes” e coordenador da área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV).