Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

De onde menos se espera

(Foto: Júlio Nascimento/PR)

Nossa História contemporânea um dia vai virar livro e nos envergonhar em cada capítulo.

Quem imaginou que ouviria um discurso como o de Bolsonaro na abertura da 75ª Assembléia Geral da ONU no papel da vítima de uma campanha brutal contra a Amazônia? Alegando que nossa floresta é úmida e não propaga fogo em seu interior. E que a culpa é dos indígenas e dos caboclos. “O Brasil já está isolado”, diz o ex-embaixador Sérgio Amaral, “o presidente da França já apoia a iniciativa de criar a figura do ecocídio no Tribunal Penal Internacional”.

E quem imaginava que havia uma cristofobia no Brasil quando, não faz muito tempo, éramos um dos maiores países católicos do mundo? Bolsonaro ofende as outras muitas religiões como o judaísmo, as africanas e asiáticas ao declarar que o Brasil é laico mas o governo é cristão.

Quem não se envergonha daquele riso forçado do presidente insinuando que a mulher de Emmanuel Macron é feia comparada com a sua, e sugerindo fazer cocô dia sim, dia não, para reduzir a poluição ambiental? Ou acusando o Greenpeace pelo vazamento de óleo no litoral do Nordeste e Leonardo DiCaprio pelas queimadas?

“Não sei onde o Brasil está mais mal avaliado no Mundo”, diz o ex-ministro “saído” Luiz Henrique Mandetta, “se é em saúde ou no meio ambiente, tá duro, pau a pau”. Devemos chegar a 180 mil mortos no pior cenário previsto por Mandetta no livro Um Paciente Chamado Brasil (Objetiva), e poderíamos ter parado nos 30 mil se tivéssemos na presidência uma Primeira Ministra de políticas duras como a neozelandesa Jacinda Ardern. Mas no discurso da ONU, Bolsonaro garantiu que não faltaram leitos em hospitais.

Quem não tem medo de alguém “terrivelmente evangélico” ou “alguém que toma cerveja comigo no fim de semana” que ele vai indicar para o lugar do ministro Celso de Mello no TSF?

Quem não se surpreendeu com o palanque armado em Roraima para o ex-chefe da CIA e atual secretário de Estado americano, Mike Pompeo, xingar o ditador Nicolás Maduro e conquistar o eleitorado latino para Trump nas próximas eleições? Ou ouvir do chanceler Ernesto Araújo que não ouvimos o que ouvimos, foi “erro de tradução”? Protestaram vários chanceleres anteriores, de Fernando Henrique Cardosos a Aloysio Nunes, passando por José Serra, Francisco Rezek, Celso Amorim e Celso Lafer.

Ouvimos o Secretário de Cultura, o ator de Malhação, Mário Frias, criticar “reações histriônicas e estéreis de segmentos da sociedade e da cultura exclusivista nacional… e a relutância em aceitar uma nova política cultural para o país”.

Que nova Cultura é essa, pasta ocupada antes dele por um cultor do nazismo e uma saudosista da tortura (“todo mundo faz, Stalin… por que olhar para trás?”). A Fundação Palmares está encabeçada por um apoiador da escravidão. No Centro Técnico Audiovisual, uma dentista “de direita”. Na Funarte um coronel reformado. Na Casa de Rui Barbosa a jornalista que fez uma carta chorosa alegando ter impedido o importante think tank de pegar fogo… e desmontando tudo relacionado ao saber. No IPHAN, uma profissional do turismo e hotelaria.

A Educação não fica atrás. Houve um Ministro, Henrique Pires, que pediu demissão, um colombiano que queria formação integralista das crianças cantando o hino nacional filmado, um Abraham Weintraub que dançava na chuva como Gene Kelly farejando maconha plantada nas universidades. Agora temos o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, que considera homossexuais uns desajustados em famílias idem.

No Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves incentiva arruaceiros a impedir o aborto mesmo que a vítima tenha 10 anos e seja vítima de estupro. No primeiro escalão do governo, Damares é a mais popular nas redes com 1,1 milhão de seguidores no Twitter e 1,6 milhão no Instagram. Mas a ministra não repassou os valores de 2019 destinados à Casa da Mulher Brasileira para atender vítimas de violência doméstica (R$19 milhões), nem movimentou o valor que estava reservado para comunidades remanescentes de quilombolas e indenização a parentes de mortos e desaparecidos políticos.

Na família do presidente eleito para acabar com a corrupção —  que até agora só acabou com Sérgio Moro — só se sabe que Zero Um recebeu R$ 250 mil de assessores do pai, declarou doações à mãe de R$ 733 mil, e pagou com dinheiro vivo 12 salas comerciais na Barra da Tijuca. Que Bolsonaro teve seu imóvel pago pelo ex-assessor e que parentes de sua ex-mulher fizeram 4 mil saques de R$ 500,00. Que o Zero Dois alega ter menos dinheiro que na eleição anterior apesar dos três imóveis no Rio e jura não ter nada a ver com disparo de mensagens fake ou atos antidemocráticos. Que Zero Três comprou dois apartamentos na Zona Sul pagando em cash, e que as campanhas da família também foram sustentadas por dinheiro vivo, como assim os Bolsonaro fazem toda transação de inúmeros imóveis e doações de assessores, mulheres, ex-mulheres — a mãe dos Zeros, Rogéria e a ex-mulher Ana Cristina Valle, somando aí um apartamento para a primeira mulher, duas casas, um apartamento e dois terrenos para a segunda mulher. Que em vídeo, dançando e ironizando “maconheiros”, Flavio e Eduardo debochavam enquanto o Ministério Público Federal aguardava Flávio na acareação com o empresário Paulo Marinho para esclarecer as acusações de “rachadinhas”, leia-se corrupção.

Na Economia, o investimento estrangeiro despenca 85%, o número de desempregados aumenta mas Paulo Guedes, na mira de Bolsonaro, cada vez inventa um nome novo para a CPMF na busca de saída para financiar o Renda Brasil — e a popularidade do presidente. Embora Bolsonaro tenha deixado claro entre os assessores “até 2022 está proibido falar em novo programa social”. A raspagem afeta áreas de pouca importância para o governo como Educação, Cultura, Agências de Fomento às artes e ciência e o presidente do CNPq, Eduardo Vilela, já prevê risco de apagão nas pesquisas em curso, “ciência não é algo que se pode fazer sem dinheiro”. Empresários bolsonaristas estudam financiar uma rádio pró-governo.

A animação da tropa é a nova pesquisa IBOPE onde Bolsonaro registra aumento de popularidade de 29% para 40%. O que dá mais vergonha, porque como seu ídolo Donald Trump, Bolsonaro despreza direitos humanos, valoriza a mentira e tem um descaso assustador pela educação, cultura, meio ambiente, saúde e política externa. “Se você não sabe para onde vai, qualquer caminho te levará lá”, aconselhou o gato de Cheshire em Alice no País das Maravilhas.

Não faz muito tempo o Magazine Littéraire incluíu Bolsonaro no elenco de mentirosos famosos como Trump, Putin (veneno, eu?), Boris Johnson, Erdogan. E no recente jornal humorístico Charlie Hebdo, que acaba de ser ameaçado com mais um atentado pelas charges de Maomé, Bolsonaro está caricaturado “obrando” sobre o planeta, “o homem que ama tanto a natureza quanto a democracia”. Os americanos já praticam o Freedom Kick, Chute da Liberdade, jogando pelada virtual no Indecline com a cabeça de Trump, Putin e Bolsonaro no lugar da bola. No caso de Bolsonaro, um adolescente vê vídeos onde o presidente está sentado numa escadaria estampada com o grafite de Marielle Franco. Guarda o celular e ao caminhar de skate pelas ruas paulistas chega ao cemitério onde desenterra, enrolada num saco de lixo, a cabeça de Bolsonaro, que usa na pelada no lugar da bola.

Segundo Bolsonaro, trata-se da tal campanha internacional para destruir a “nossa” imagem, liderada pelas ONGs e pela mídia comunista. E quando se relaciona ecos do autoritarismo, totalitarismo e patrulhas ideológicas de hoje nos textos de George Orwell — 1984 e A Revolução dos Bichos, publicados há 71 e 75 anos, até que Bolsonaro e seus ministros têm razão em taxar em 20% o preço de capa dos livros e fermentar horror ao Jornalismo, Cultura e Educação. Um dia abrindo um jornal antigo, um livro, vendo uma peça ou assistindo a um filme, o mundo vai ficar sabendo.

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Norma Couri é jornalista.