Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Evangelismo, democracia e reação conservadora na América Latina

(Foto: Reuters – Martin Acosta)


As diferentes correntes evangélicas parecem beneficiar-se, em algumas partes do mundo, e notadamente na América Latina e na África, de uma influência crescente. Neste artigo, Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurès, com sede em Paris, aborda a gênese e a influência do evangelismo político – que ele designa de “nacional-evangelismo” – na América Latina e trata das consequências desse considerável aumento.
1. O EVANGELISMO NO CENTRO DE UMA REVIRAVOLTA POLÍTICA
1.1 Ascensão dos governos de direita
A América Latina vive, desde 2014, um momento democrático muito particular. A ascensão eleitoral de forças direitistas é acompanhada de uma ideologia dominante, que mistura fé e mercado em benefício de alguns poucos. Da Argentina ao Peru, passando pelo Brasil e pela Guatemala, a democracia exprime cada vez mais os interesses de “minorias” economicamente privilegiadas.
A democracia, seja no Brasil, seja na América Latina, ou em qualquer outra parte do mundo, está em crise. Seu domínio repousa cada vez menos na razão, no debate e na argumentação, e cada vez mais na manipulação do inconsciente. A democracia é minada por pressões exercidas pelas forças econômicas dominantes, que entram em contradição com aquelas, por princípio, reguladas politicamente por cidadãos iguais em direito. Não há nada de novo aqui. No entanto, a economia global, que oferece oportunidades privilegiadas às “minorias” conectadas aos fluxos financeiros transnacionais, aprofunda a contradição.
1.2 Ascensão da servidão voluntária
No cerne deste paradoxo, encontramos instrumentos culturais e religiosos que permitem mascarar os egoísmos sociais. Historicamente, as democracias estão em tensão entre razão e persuasão. As contradições políticas e sociais na democracia deveriam encontrar sua superação eleitoral após um debate entre cidadãos corretamente informados. No entanto, ao longo da história, grupos sociais politicamente diversos e minoritários também tentaram reduzir o espaço da razão para assentar sua hegemonia, às vezes por meios militarizados, às vezes com base na autoridade de algumas personalidades, como em uma democracia de tipo particular, “autêntica”, “orgânica”, “popular”, “participativa”, “racial”. Também se valeram da persuasão, instrumentalizando diversos tipos de emoções coletivas – nacionais, religiosas, pacifistas, europeístas, mundialistas – para “fabricar consensos”¹.
1.3 Instrumentalização das emoções e das paixões
Para a afirmação dessa hegemonia cultural e política se instrumentaliza hoje, tal qual no século XIX, a religião. Não se trata mais essencialmente das religiões tradicionais², católica ou evangélica histórica, mas de novas denominações. Trata-se, por vezes, de religiões “laicas”, que sacralizam um regime particular, um chefe carismático, como Simon Bolívar, ou um modo único de governo, como o da integração latino-americana ou europeia³, reproduzindo, em certa medida, os monoteísmos religiosos. Pode-se tratar também de religiões, no sentido espiritual do termo, como os evangélicos neopentecostais ou os católicos carismáticos. Essas denominações ganharam um impulso vigoroso no fim da Guerra Fria, particularmente na África⁴ e na América Latina, o que não significa que não estejam presentes nos continentes asiático e europeu⁵.
1.4 Papel crescente das religiões (neo)pentecostais
Os fatores que devem ser levados em conta para propor um quadro explicativo para a erosão da razão democrática são múltiplos. Esta nota se limita ao exame de um deles, onipresente na América Latina: a religião evangélica neopentecostal. A vitória de Jair Messias Bolsonaro, em 28 de outubro de 2018, no Brasil, colocou em evidência esse paradoxo democrático. Uma das alavancas eleitorais utilizada com sucesso por Bolsonaro se assentou na aliança, tática ou sincera, com poderosos grupos evangélicos neopentecostais.
2. A DIREITA E O EVANGELISMO (NEO)PENTECOSTAL
2.1 Alianças não exclusivas
A vitória presidencial, no Brasil, do candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, beneficiou-se do apoio da maioria das religiões evangélicas, em especial das neopentecostais. Esse apoio foi decisivo, mas não teve um caráter excepcional, porque já havia ocorrido algo semelhante antes, ainda que possamos opô-lo ao tipo de aliança que já foi feita entre progressistas e evangélicos.
2.2 Realidade das alianças entre evangélicos e progressistas
Os eleitores que se definem como evangélicos não votaram em peso em Bolsonaro, nem mesmo todos seus pastores. A organização Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito foi constituída publicamente em novembro de 2016 para assinalar sua condenação ao golpe de Estado de Michel Temer, contrariamente aos grupos parlamentares evangélicos das Assembleias Nacionais e “Regionais”⁶. Além disso, em um passado recente, como sinalizaram muitos pesquisadores e jornalistas, diversos setores evangélicos apoiaram os governos do Partido dos Trabalhadores (PT)⁷.
Esse tipo de aliança não tem nada de excepcional. Daniel Ortega, na Nicarágua, ganhou as eleições se alicerçando nos setores religiosos. A Comissão Evangélica para a Promoção da Responsabilidade Social (CEPRES) conclamou os fiéis, em outubro de 2011, a votar na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Em 2018, no México, Andrés Manuel Lopez Obrador integrou, em sua coalizão eleitoral, o Partido Encontro Social (PES), de matriz evangélica.
2.3 Alianças circunstanciais entre a esquerda e os pentecostais
Essas alianças, assinaladas por diversos analistas⁸, entre progressistas e grupos pentecostais têm, no entanto, um caráter excepcional. As afinidades majoritárias das diversas denominações pentecostais não caminham na mesma direção. Os evangélicos votam, em grande número, na direita. Convém, então, antes de tudo, compreender a lógica das aproximações constatadas entre eles e os grupos progressistas.
Os acordos estabelecidos no passado entre os partidos de esquerda e os evangélicos repousam sobre interesses conjunturais convergentes. Na eleição presidencial brasileira de 2014, por exemplo, Dilma Rousseff estava em busca de apoio. Ela participou da cerimônia de inauguração da gigantesca réplica do Templo de Salomão, construída em São Paulo pela Igreja Universal do Reino de Deus, e obteve a benevolência dessa igreja após engavetar um projeto de lei que regularia a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Os evangélicos da Nicarágua apoiaram Daniel Ortega porque ele estava engajado em dar a eles um status equivalente àquele da Igreja Católica, o que de fato fez desde sua chegada ao poder em 1979⁹. Essas convergências pontuais garantiram a cada uma das partes o benefício imediato que elas procuravam. O tempo do divórcio vem rapidamente na sequência, em razão de uma incompatibilidade essencial entre os seus respectivos projetos.
2.4 Convergências frágeis porque incompatíveis a longo prazo
Essas alianças são incompatíveis, de fato, por duas razões:
2.4.1 Uma razão cultural e política:
A maioria dessas igrejas evangélicas tem uma origem estrangeira, norte-americana, e agiram de acordo com um roteiro cultural e político estadunidense. Elas literalmente “desembarcaram” na América Latina mais por razões geopolíticas do que religiosas e foram instrumentalizadas por Washington durante a Guerra Fria, particularmente na América Central¹⁰, a fim de combater as ideologias que impediam a presença norte-americana, ideologias essas laicas – comunista, socialista, nacionalista, terceiro-mundista -, ou religiosas, como a da Teologia da Libertação. Esse apoio oficial teve uma forte incidência na América Central, território de confronto intenso, mas indireto, entre as potências mundiais de então, a Rússia soviética e os Estados Unidos. Foi nesse contexto que um militar adepto de uma igreja pentecostal, José Efraín Riós Montt¹¹, ascendeu à presidência da Guatemala em 1982.
O pontificado de Karol Wojtyla, João Paulo II, papa conservador e anticomunista, arrefeceu a ofensiva de Washington contra os defensores da Teologia da Libertação e da Igreja Católica na América Latina ao adotar um posicionamento crítico em duas instruções, de 1984 e 1986¹², por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, coordenada pelo então Cardeal Ratzinger e futuro Papa Bento XVI, também conservador e anticomunista, condenando a utilização de “ferramentas marxistas” pelos padres da Teologia da Libertação. Apesar do arrefecimento do apoio de Washington, os evangélicos latino-americanos perseveraram, com eficácia, graças ao apoio de fundações privadas e de missões evangelizadoras norte-americanas, e devido também ao dinamismo das igrejas locais latino-americanas, que rapidamente souberam convencer teologicamente seus adeptos do caráter sagrado do dízimo. Muito rapidamente, emergiu a evidência de uma contradição mais profunda.
2.4.2 Uma contradição profunda
As relações ideológicas existiam entre essas igrejas e as forças econômicas representativas do mercado e de seus partidos. O indivíduo está no centro de seus respectivos pensamentos. Os evangélicos (neo)pentecostais privilegiam a relação pessoal com Deus e valorizam o dinheiro e a riqueza como uma das formas de obter a salvação eterna. Adeptos de uma teologia conhecida pelo nome de “teologia da prosperidade”, eles consideram que cabe a cada um, individualmente, obter a bênção divina através de sua capacidade de enriquecer. Essas igrejas são, assim, também empresas religiosas. As obras terrestres de cada um, tanto dos fiéis quanto dos pastores, devem ser visíveis¹³. Elas repousam sobre um conceito de “religião do mercado”. Essa característica ganha força com o uso massivo das tecnologias modernas de comunicação, da televisão ao WhatsApp, Facebook e Twitter¹⁴.
Essas particularidades facilitaram a convergência com as forças do mercado e seus representantes, o que permitiu a essas denominações ampliar sua influência e ganhar um peso eleitoral em diferentes parlamentos latino-americanos. Em 1986, foi criada no Brasil a Frente Parlamentar Evangélica, composta de deputados advindos de diferentes partidos, e que conta atualmente com 91 membros. Alhures, os evangélicos entraram em parlamentos com suas próprias forças – como no Peru, com o pastor Humberto Lay Sun e seu partido, Restauração Nacional¹⁵.
2.5 Um discurso a-democrático e intolerante: rumo ao reino de Deus e ao fim da história, e “um caminho único para a Verdade”
Em ruptura com os conceitos da modéstia, humildade, austeridade e pobreza, que constituem o código ético pregado pelas igrejas históricas, os (neo)pentecostais legitimam seus discursos em uma refundação, supondo uma releitura do sagrado, uma reinterpretação da Bíblia, coisas que permitem encontrar o único caminho que conduz à Verdade, e de evitar os desvios para o Mal e Satanás¹⁶.
Esse discurso polarizador interdita todo diálogo inter-religioso. No Brasil, mas também no Haiti, os adeptos dessas igrejas não somente denunciam como demoníacos os cultos afro-americanos¹⁷ mas também, frequentemente, os agridem fisicamente. Inversamente, manifestam uma forte solidariedade religiosa e política com Israel, por analogia da Israel bíblica à Israel contemporânea. A Igreja Universal do Reino de Deus, no Brasil, adotou em seus templos uma arquitetura inspirada naquela das sinagogas. Essas igrejas obtiveram dos governos da Guatemala, de Honduras e do Paraguai – este último durante alguns meses – o deslocamento de suas respectivas embaixadas em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo assim a decisão anunciada pelos Estados Unidos de Donald Trump, sob a pressão e a influência das mesmas denominações. O novo presidente do Brasil anunciou também durante sua campanha eleitoral a intenção de deslocar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, decisão parcialmente confirmada apenas com a transferência de alguns serviços. A embaixada mantém Tel Aviv como residência principal. A Confraria Evangélica de Honduras (CEH) fez o comentário seguinte para felicitar a decisão do deslocamento da embaixada, tomada pelas autoridades de Tegucigalpa: “nós aplaudimos a decisão do Estado de Honduras […] que reconheceu Jerusalém como capital de Israel. […] Para nós, não há dúvida. A história bíblica e universal demonstra que Deus abençoa toda a nação que bendiz a nação de Israel. […] Rezai pela paz de Jerusalém (Salmo 122:6)” ¹⁸.
Essa intolerância religiosa vai ao encontro de uma outra, aquela de respeitar um código moral rígido, código este mais ou menos exigido de acordo com as denominações. Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, eleito em 2016 prefeito do Rio de Janeiro, reduziu o subsídio municipal concedido às escolas de samba. O carnaval é considerado um espetáculo impróprio por sua denominação. Qualquer que seja o país, todas as igrejas (neo)pentecostais e seus partidos políticos declaram-se publicamente contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Fabricio Alvarado, candidato evangélico costa-riquenho do Partido Restauração Nacional, que obteve 40% dos votos no segundo turno da eleição presidencial de 2018, expressou essa oposição do seguinte modo: “Nós somos contra o Estado laico, porque aqueles que o defendem, na realidade querem um Estado ateu. A Costa Rica enviou aos políticos uma mensagem clara: não toquem na família, nem nas nossas crianças. Nós não queremos saber nada da agenda LGBT, pró-aborto, nem da ideologia de gênero. Que esta eleição seja nosso referendo sobre o casamento que deve ser entre um homem e uma mulher”¹⁹. Desse modo, eles souberam remobilizar com sucesso o componente machista da cultura latino-americana tradicional, que, aliás, não poupou Cuba, onde o legislador foi obrigado a retirar, em janeiro de 2019, pelos resultados advindos do “grande debate” local sobre a reforma constitucional, o artigo relativo ao casamento igualitário entre pessoas, seja qual for o seu sexo.
2.6 Emergência de um nacional-evangelismo
Esses elementos da ética evangélica constituíram a base da democracia defendida e esperada por essas religiões, o que facilitou a convergência de seus partidos com aqueles da direita pró-mercado e da direita tradicionalista. Essas igrejas-partido criaram, desse modo, uma espécie de híbrido político que poderíamos qualificar de “nacional-evangelismo”.
Esse nacional-evangelismo conquistou notáveis espaços de poder nesses últimos anos. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil desde 1º de janeiro de 2019, ainda que nascido católico, se fez rebatizar por um pastor evangélico em 2016. Jimmy Morales, presidente da Guatemala, formou-se no Instituto Evangélico da América Latina. Fabricio Alvarado, citado acima, foi o primeiro candidato evangélico que chegou ao segundo turno da eleição presidencial da Costa Rica. Na Venezuela, em 20 de maio de 2018, um candidato evangélico desconhecido, Javier Bertucci, do Movimento Esperança pela Mudança, obteve 10,8% dos votos válidos. Notemos que, na Colômbia, os evangélicos mobilizaram-se a favor do ex-presidente Álvaro Uribe e de seu partido Centro Democrático para defender o “não”, ou seja, a posição contrária ao acordo de paz com a guerrilha das Farc, tema que foi submetido a referendo em 2 de outubro de 2016²⁰.
Os defensores dessa ideologia político-religiosa realizaram um encontro fundador em 8 de dezembro de 2018 em Foz do Iguaçu, no Brasil. Essa reunião de cúpula, qualificada de conservadora por seus organizadores, reuniu participantes de toda América Latina sob a autoridade política de um dos filhos de Jair Bolsonaro, Eduardo, e sob a direção moral do “guru” do presidente brasileiro, e próximo de Steve Bannon, Olavo Luiz Pimentel de Carvalho.
3. BRASIL, LABORATÓRIO DO NACIONAL-EVANGELISMO
O Brasil merece um exame à parte devido à sua dimensão geográfica e ao caráter espetacular da chegada democrática ao poder presidencial de um candidato, Jair Bolsonaro, com suas posições e declarações intolerantes, autoritárias e carregadas de referências a Deus.
3.1 Ir além dos anátemas que não explicam nada
Explicações para essa vitória não faltam. Elas, no entanto, exprimem frequentemente mais uma rejeição ideológica ou moral. Refiro-me aqui aos qualificativos que, em geral, são atribuídos ao novo inquilino do palácio do Planalto, tais como demagogo, populista, “Trump tropical” ou, de maneira mais lapidar, fascista. Esse vocabulário com conotações mais militantes e pejorativas do que explicativas não permite compreender com clareza a mecânica da ascensão ao poder de um deputado que recentemente tinha, sobretudo, a imagem do típico político que pula de galho em galho, folclórico e populista²¹. Sem ignorar, no entanto, as verdades parciais contidas em cada um desses qualificativos, a análise aqui proposta para compreender o fenômeno Bolsonaro se concentrará no fator religioso, que não foi ainda suficientemente estudado.
Afinal de contas, uma observação ainda que superficial da última eleição presidencial brasileira não pode ignorar a forte presença de referências bíblicas no discurso do candidato que venceu. A referência a “Deus” aparece logo na primeira página de seu plano de governo²²: “Deus acima de tudo”. No fim da mesma página, podemos ler uma citação do evangelho de João: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Na noite do escrutínio, no dia 28 de outubro de 2018, na ocasião do anúncio de sua vitória, as primeiras palavras de Bolsonaro fazem referência a Deus: “Eu não estive sozinho. Eu sempre senti a presença de Deus”. Promessa feita: governar com a Constituição em uma mão e a Bíblia na outra…
Essas palavras podem ser compreendidas como uma piscadela para os pastores (neo)pentecostais que apoiaram sua candidatura. Apesar de ter sido criado em uma família católica, foi a partir de sua visita a Israel, em 2016, que ele lançou sua campanha eleitoral. Em 12 de maio de 2016, com efeito, ele foi batizado nas águas do rio Jordão por Everaldo Pereira, pastor da Assembleia de Deus e dirigente do Partido Social Cristão (PSC). Filmada, a cerimônia foi transmitida no YouTube. Essa escolha é reveladora da centralidade de Israel para os evangélicos neopentecostais. O deputado Jony Marcos, membro do Partido Republicano Brasileiro e da bancada evangélica, em 7 de dezembro de 2017, expressou essa opção da seguinte maneira na BBC Brasil: “Jerusalém é, desde sempre, a cidade santa dos judeus e dos cristãos”. O programa eleitoral de Jair Bolsonaro integrou os elementos constitutivos da doutrina neopentecostal, em particular no que concerne à educação e à família, e à condenação do que eles chamam de “ideologia de gênero”.
O apoio evangélico (neo)pentecostal lhe foi garantido a partir daquele momento. Numerosos pastores conclamaram seus fiéis a votarem naquele que difundia mensagens inequívocas em “defesa da família”. Embora o capitão não fosse inicialmente seu candidato, a Igreja Universal do Reino de Deus colocou seu canal de televisão, a Record, à disposição de Jair Bolsonaro.
3.2 Um discurso político com espírito evangélico
O importante está, sem nenhuma dúvida, na adoção de uma forma de “expressão” evangélica pelo vencedor da eleição. Bolsonaro abordou todos os temas, sejam sociais, econômicos ou diplomáticos, valendo-se de um léxico neopentecostal. Ele propôs um caminho da “verdade”, “decente, liberal, fundado no indivíduo, na família, nas Forças Armadas”, que ele opôs às “ideologias perversas”, ao “marxismo cultural”, ao “gramscismo”, à esquerda, ao PT e ao Foro de São Paulo. Retomou, assim, a dialética religiosa binária dos evangélicos, de um caminho que opõe o verdadeiro ao falso, o certo ao errado, aplicando-o na política. Sua campanha foi mais profética que racional. A referência à salvação individual lhe permitiu legitimar a economia de mercado e a propriedade privada, apresentada como “sagrada”. Ele demonizou seus adversários políticos do mesmo modo intolerante praticado pelos neopentecostais em relação às outras religiões. Depositário da verdade, ele não tinha que discutir com os outros candidatos, identificados como desviados no caminho do erro. Jair Bolsonaro não participou do último debate televisionado antes do primeiro turno, organizado pela TV Globo, e foi entrevistado, no mesmo momento, sozinho, na TV Record, o canal da Igreja Universal do Reino de Deus.
3.3 Um presidente de inspiração nacional-evangélica
Seja por oportunismo, seja por convicção, Jair Bolsonaro propõe-se a governar como representante de uma extrema-direita nacional-evangélica. Se esse programa é naturalmente acompanhado de outros ingredientes comuns a muitas direitas radicais – autoritarismo, sectarismo, ocidentalismo, anticomunismo e liberalismo econômico -, no Brasil, todos esses elementos se conectam a um tronco neopentecostal e validam a definição apresentada para qualificar esse regime de “nacional-evangelismo”, formulação que remonta ao “nacional-catolicismo” do sistema franquista espanhol dos anos 1939-1975.
As primeiras medidas do presidente Jair Bolsonaro são coerentes com seus engajamentos de campanha. O convidado principal de sua posse em 1º de janeiro de 2019, o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, confirmou o lugar central ocupado por Israel para os evangélicos neopentecostais. Três dos ministros que Bolsonaro escolheu são portadores de uma ideologia nacional-evangelista: os ministros das Relações exteriores, da Educação e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pastora Damares Alves, desde a sua posse, tem assinalado que pretende trabalhar a partir de uma orientação “terrivelmente crist㔲³. Seu colega da Educação, o colombiano Ricardo Vélez, foi recompensado por tentar impor aos estudantes a palavra de ordem da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, “Deus acima de tudo”. Seu sucessor, Abraham Weintraub²⁴, compartilha as mesmas convicções. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, colocou a diplomacia brasileira, em 2 de janeiro de 2019, em seu discurso de posse, sob o apadrinhamento bíblico de João. “Eu gostaria”, diz ele, “de começar com uma frase […] absolutamente fundamental: Gnosesthe ten aletheian kai he aletheia eleutheosei humas, conhecereis a verdade e a verdade vos libertarᔲ⁵.
Essa disputa para vencer as eleições, ocupando o inconsciente das maiorias, engajou as correntes sectárias do evangelismo com criatividade e com grandes recursos financeiros. Para além do Brasil, essa disputa concerne tanto os países latino-americanos²⁶ como outras regiões do mundo, em particular a África²⁷. Essa progressão de denominações neopentecostais prospera com a crise da democracia, com a erosão da laicidade e com a instrumentalização dos medos. O controle dos meios de comunicação de massa e a utilização militante das redes sociais facilitam a difusão de narrativas persuasivas, diminuindo a importância e o rigor da razão democrática, a necessidade do diálogo e da argumentação. Todas essas coisas visam preservar as hierarquias socioeconômicas por meio de golpes de Estado com consequências humanas e materiais destrutivas, sob o risco de se aprofundarem as fraturas sociais artificialmente mascaradas. Dada a acumulação prolongada, essas fraturas darão à luz, no futuro, a explosões sociais vulcânicas.
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NOTAS
¹ David Colon. Propagande. La manipulation de masse dans le monde contemporain. Paris: Belin, 2019.
² Por “evangélico histórico” nos referimos ao Anglicanismo, Calvinismo, Luteranismo, Metodismo e à Igreja Batista.
³ Ver sobre a América Latina: Elías Pino Iturrieta. El divino Bolivar. Ensayo sobre una religión republicana. Madrid: La Catarata, 2003; e sobre a Europa: Antonin Cohen. De Vichy à la Communauté européenne. Paris: PUF, 2012.
⁴ Ver sobre a África: Camilla Strandsbjerg. Religion et transformations politiques au Bénin. Les spectres du pouvoir. Paris: Khartala, 2015. Ver também: Joseph Tonda. “Économie religieuse du pentecôtisme en Afrique centrale”. In: Courants religieux et rapports sociaux. Atas do seminário da Fundação Gabriel Péri. Paris, junho de 2009.
⁵ Ver, por exemplo, a expansão do grupo Charisma, na periferia norte de Paris, conforme Bernadette Sauvaget. “Charisma, les mystères d’une méga-église”. In: Libération, 27 agosto de 2012; e Jean Leymarie. “Charisma, l’essor d’une église géante”. In: Franceinfotv.fr, 28 de agosto de 2012; e Marc Pennec. “Au cœur de Charisma, la méga-église de banlieue parisienne”. In: Ouest France, 16 de setembro de 2013.
⁶ Em 17 de abril de 2016, uma maioria parlamentar, alegando crime constitucional, votou pela destituição da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014.
⁷ Nilza Valeria Zacarias. “Precisamos falar da fé de Leonardo”. In: Le Monde diplomatique Brasil, n° 125, 5 de dezembro de 2017.
⁸ Em particular por André Corten. “Pentecôtisme et politique en Amérique latine”. In: Problèmes d’Amérique latine, n° 24, 1 de março de 1997; e Lamia Oualalou. Jésus t’aime. La déferlante évangélique. Paris: Éditions du Cerf, 2018.
⁹ 500 pastores apoiaram, na ocasião, a candidatura de Daniel Ortega, assinando a “Declaração dos 500” em 5 de outubro de 1979.
¹⁰ Tratou-se de um apoio tanto teórico, com o Relatório Rockefeller (1969) e com Document de Santa Fe (1980), como financeiro, por meio da criação do Instituto da democracia e da religião (1981), encarregado de financiar as igrejas evangélicas e os setores conservadores do catolicismo.
¹¹ Católico de origem, Rios Montt converteu-se em 1978 à Igreja Evangélica da Palavra, extensão de uma igreja norte-americana da Califórnia, Gospel Outreach.
¹² Libertatis Nuntius (1984) e Libertatis Conscientia (1986).
¹³ Ver o manifesto adotado por um intergrupo de deputados evangélicos brasileiros em 1º de novembro de 2018, “O Brasil para os brasileiros”, em “Bancada evangélica amplia agenda moral e adota ‘cartilha Paulo Guedes’”, In: Folha de S.Paulo, 7 de novembro de 2018.
¹⁴ Ver Jean-Pierre Bastian. La modernité religieuse en perspective comparée. Paris: Karthala, 2001.
¹⁵ Ver Véronique Lecaros. La conversion à l’évangélisme. Le cas du Pérou. Paris: L’Harmattan, 2013.
¹⁶ Ver Andrea Dip. Em nome de quem?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
¹⁷ Por exemplo, o candomblé ou a santeria, cultos praticados, principalmente, nas Antilhas e no Brasil.
¹⁸ Confidencial HN, 3 de maio de 2018, “Confraria Evangélica de Honduras pede a JOH que transfira a embaixada para Jerusalém”.
¹⁹ “El shock religioso que puso a Fabricio Alvarado predicador de una iglesia evangélica como favorito para las elecciones presidenciales de Costa Rica”. In: BBC Mundo, 5 de fevereiro de 2018; Gerardo Ruiz. “Fabricio Alvarado: Nunca más se metan com la família”. In: La Nación, 4 de fevereiro de 2018; Sofia Chinchilla. “Fabricio Alvarado, Nunca dije que fuera la primera opción, salirse de la Convención de Derechos Humanos”. In: La Nación, 20 de fevereiro de 2018.
²⁰ Ver Talita Bedinelli, Ana Marcos e Javier Lafuente. “La fe evangélica abraza las urnas en América Latina”. In: El País, 13 de abril de 2018; Sally Palomino e A. Marcos. “El botín de votos cristianos en Colombia”. In: El País, 19 de janeiro de 2018.
²¹ Jair Bolsonaro é membro do Partido Social Liberal (PSL) desde 2016. Anteriormente, ele foi membro do Partido Democrata Cristão (PDC), do Partido Progressista Reformador (PPR), do Partido Progressista Brasileiro (PPB), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do Partido da Frente Liberal (PFL), do Partido Progressista (PP) e do Partido Social Cristão (PSC). [Nota do editor: Bolsonaro deixou o PSL em novembro de 2019.]
²² “O caminho da prosperidade: Proposta de plano de governo – Bolsonaro 2018”
²³ “Ministra de Direitos Humanos do Brasil se diz ‘terrivelmente cristã’”. In: La Vanguardia, 2 de janeiro de 2019.
²⁴ Nomeado em 8 de abril de 2019, esse professor de direito e advogado apresentou, no dia 8 de dezembro de 2018, em Foz do Iguaçu, durante uma cúpula dos partidos de extrema direita, a chamada “Cúpula Conservadora das Américas”, uma comunicação: “Superando o Marxismo cultural na Universidade”. Cf. “Quem é Abraham Weintraub”. In: BBC Brasil, 8 de janeiro de 2019.
²⁵ Discurso do Ministro das Relações Exteriores na cerimônia de posse.
²⁶ Amy Erica Smith. “For Latin America’Evangelicals, Bolsonaro is just the start”. In: Americas Quartely, 12 de novembro de 2018.
²⁷ Bettina Rühl. “Christliche Nächstenhiebe”. In: Internacionale Politik und Gesellschaft, 28 de dezembro de 2018.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatoire de l’Amérique Latine e pesquisador junto ao IRIS – Institut de Relations Internationales et Stratégiques, responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe.
Tradução e revisão realizadas por Simone Garavello Varella, Pâmela da Silva Rosin, Joseane Bittencourt e Luzmara Curcino. Texto publicado originalmente em francês, em 21 de junho de 2019, no site da Fundação Jean-Jaurès: Penser pour Agir. Seção Internacional, Paris.