Manipulação de fatos, ausência de pluralidade, registros de censura e mal planejamento da produção jornalística na TV pública da Espanha. Esta é a síntese documento que detalha 23 exemplos que marca a cobertura tendenciosa do conflito independentista na região da Catalunha.
A análise, divulgada na última semana de outubro, foi elaborada pelo Conselho de Informativos da Corporação de Rádio e Televisão Espanhola – RTVE, tomando por base o mês em que ocorreu um plebiscito (01/10/2017) que contou com cerca de 2,3 milhões de pessoas — 90% dos quais favoráveis ao independentismo — e foi praticamente ignorado pela reportagem e programas da emissora pública. O documento alerta para a gravidade da “renúncia da TV Espanhola em ser o referente informativo de uma jornada histórica, em um momento crítico e de inquestionável interesse jornalísticos”, destaca.
Pela legislação espanhola vigente (17/2006), os Conselhos de Informativos (CdI) da RTVE “são órgãos de participação destinados a garantir o controle interno, a defesa da independência profissional, a promoção da independência editorial e o amparo dos profissionais da informação da Corporação RTVE” e “configuram o serviço do rádio e televisão estatais como um serviço essencial à vida democrática”.
Dentre as competências do CdI destaca-se o “amparo aos profissionais da informação audiovisual” e o alerta ao “Conselho de Administração das possíveis manipulações e más práticas informativas” (CONSEJOS de Informativos da RTVE). Nas 72 páginas do relato, o Conselho pede a demissão dos diretores e da equipe nomeada para dirigir a emissora, defendendo que eles sejam eleitos.
E o que diz o documento?
Lembra das imagens que giraram o mundo na web, TVs ou mesmo capa de impressos, registrando a repressão policial no plebiscito de 1º de outubro? Bem, nada disso entrou na cobertura da TVE. O documento afirma que os espectadores da TV pública buscaram sem êxito especiais informativos que contariam o que estava ocorrendo, em um momento especialmente crítico do processo soberanista e cujo interesse é inquestionável sob todos os pontos de vista, mas especialmente, pelo jornalístico.
No final de setembro, uma análise do El Diário já alertava que, diferentemente das emissoras comerciais (Antena 3, Telecinco, LaSexta e Telemadrid), que alteraram a programação para cobrir a mobilização catalã, a TVE não fez nada de especial na cobertura do domingo (01/10) que deixou cerca de 900 pessoas feridas com agressões policiais na região da Catalunha. O detalhe, neste contexto, é que a TVE é a única rede do País com estrutura pública para produção noticiosa 24 horas por dia, ainda que isso seja questionável pelo formato que reprisa boletins periódicos, como acontece com emissoras all News 24h em diversos países do mundo.
A crítica lembra que a emissora se limitou a reproduzir uma entrevista da vice-presidente do governo da Espanha (Soraya Santamaria) de que “não houve nenhum referendo na Catalunha”, ignorando que, além de 2,3 milhões de pessoas saírem às ruas para votar contra uma campanha pública para evitar o plebiscito, o domingo acabou com centenas de pessoas agredidas pela polícia. Nos painéis para avaliar o cenário político, a emissora pública não ouviu os organizadores do plebiscito, se limitou em reproduzir imagens amadoras de celular ou postadas na web e ignorou a violência policial para evitar votações em colégios na região.
O documento afirma que os telejornais do primeiro de outubro violaram o Estatuto de Informação da Corporação RTVE e o Manual de Estilo, que “obriga identificar as informações para garantir o rigor ao veicular imagens amadoras ou gravadas por mobiles sem indicar origem”. A análise aponta ainda adulteração de conteúdo em entrevista do porta-voz da Generalitat da Catalunha (governo regional), que teria “inventado” legenda para rodar nos caracteres da tela.
O informe aponta, ainda, falta de fonte entre pessoas que foram às urnas durante o plebiscito, bem como de imagens próprias nas diversas cidades da região. Se o mundo todo mostrou as imagens da violência, o que justifica o silêncio da TVE? Censura, sugere a análise. “As imagens (de agressões) foram capa em meios de todo o mundo e ocultá-las fragiliza o princípio da veracidade e pluralidade a que está obrigada a TV pública”, critica o documento do Conselho. O mesmo silêncio foi registrado na TVE na noite de domingo, quando o presidente da Generalitat fez um pronunciamento público condenando a violência policial determinada pelo governo central.
O informe passa, cuidadosamente, as várias edições de telejornais que foram exibidas, apontando equívocos, problemas e escolhas que revelam uma produção mais preocupada em atender aos interesses políticos e eleitorais do grupo que governa o País e menos voltada ao interesse público. A análise detalha as escolhas editoriais da TVE, dos boletins, informes a partir de Madrid e não direto da Catalunha, reprodução de imagem não identificadas, ausência de pluralidade nos painéis e debates sobre a situação política, em que convidados seriam apenas aliados às versões oficiais e ausências de independentistas e defensores de outras posições sobre o conflito catalão.
Nos dias seguintes, a cobertura não muda o tom de acordo com o estudo realizado, ignorando ou subestimando manifestações de rua e mesmo a greve geral, que paralisou boa parte dos serviços em toda a Catalunha na terça (03/10) ao mesmo tempo em que abria destaque para defensores das vozes oficiais (PP, Ciudadanos ou movimentos ‘unionistas’) sem preocupação com pluralidade e consistência na cobertura dos fatos e análises políticas.
Intervenção na mídia catalã gera protestos na Espanha
A ameaça de intervenção na TV da Catalunha gera protesto e crítica de profissionais, representantes de entidades corporativas e demais setores sociais e políticos, incluindo membros do próprio conselho da TVE. Dentre as medidas para barrar o movimento independentista, anunciadas em 21 de outubro, o governo da Espanha — formado por uma frente de direita do Partido Popular, Ciudadanos e, agora, também com apoio dos ‘sociaistas’, PSOE — destaca-se o ‘controle’ diretivo da Corporación Catalana de Medios Audiovisuales (CCMA), que inclui a TVE3, a agência noticiosa e a Catalunya Rádio.
Pela justificativa do governo espanhol, o objetivo seria “garantir a transmissão de uma informação veraz, objetiva e equilibrada, respeitosa com o pluralismo político, social e cultural e também com o equilíbrio territorial; assim como com o conhecimento e respeito dos valores e princípios contidos na Constituição Espanhola e o Estatuto de Autonomia da Catalunha”.
Logo após o anúncio da intervenção, sindicatos e centrais profissionais divulgaram um comunicado coletivo contra qualquer interferência editorial na TVE e rádio Catalunha. “Os meios de comunicação pública devem servir aos cidadãos e não aos governos”, denuncia o documento que expressa apoio aos trabalhadores do setor, lembrando que o partido dirigente (PP) não teria credibilidade para intervir. “Nos últimos cinco anos de gestão com o que o Gobierno Central faz no controle da linha editorial dos programas noticiosos da TVE, Rádio (RNE) e meios interativos (iRTVE), são inúmeras as denúncias por manipulação informativa”, alerta nota dos conselhos. O mesmo tom registra a nota dos conselhos das emissoras públicas da Catalunha.
É neste contexto que a mídia pública está no centro das medidas de intervenção política, econômica e administrativa no conflito independentista da Catalunha. E os profissionais da área, que já manifestaram resistência ao uso eleitoral dos espaços e canais de mídia custeados pelo dinheiro público, parecem dispostos a marcar posição contrária aos interesses dos grupos políticos que, neste momento, administram o governo central da Espanha.
Não se trata de um debate isolado, pois a mídia pública – que não é sinônimo de estatal na maioria dos países europeus – possui uma tradição e histórico de lutas, particularmente em uma época em que a TV não registra mais os índices de audiência com força de adesão pública, como ainda acontece no Brasil, e se revela cada vez mais segmentada.
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Sérgio Gadini é jornalista, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), atualmente realiza um pós-doutorado na Espanha, junto à Universidad Complutense de Madrid, com apoio e financiamento da CAPES.