Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Me engana que eu gosto!

Foto: Alan Santos/PR

Ou Bolsonaro vive num mundo paralelo, ou é cínico demais, ou não regula bem da cabeça. Seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU está mais para um comício pela reeleição, dirigido aos seus apoiadores desprovidos de informação e de crítica.

De um lado é ridículo, quando fala em povo crente em Deus e nos seus costumes sociais conservadores, como se os representantes dos outros países do mundo estivessem interessados nisso (mesmo porque não há uma só religião no planeta). Mas torna-se também risível quando afirma que o Brasil estaria à beira do socialismo, como se fosse uma praga, ignorando haver ali, entre os 190 países representados, muitos países socialistas ou de tendência socialista.

Jair Bolsonaro, único presidente ainda não vacinado entre todos os reunidos em Nova York, adepto do negacionismo, responsável pelo atraso na vacinação do povo, prestes a ser denunciado por prevaricação no combate ao coronavírus, por uma CPI do Senado, não tem consciência de ser um dos responsáveis pela morte de centenas de milhares de brasileiros por atraso na distribuição da vacina?

E não se envergonha de, diante de um mundo interessado em acabar com a propagação do vírus, se declarar contra o passaporte sanitário? De continuar a defender, contra tudo e contra todos, o tratamento preventivo com a cloroquina e outras drogas, já comprovadamente ineficazes?

Na mesma linha de suas declarações absurdas, é a de que não há mais corrupção no Brasil, mesmo se sua própria família está envolvida no escândalo das “rachadinhas”? Me engana que eu gosto, mas se torna escandaloso ir a Nova Iorque para contar lorotas e mentiras, como se os diplomatas dos outras países não lessem os noticiários!

Mas Bolsonaro não se envergonha com as notícias publicadas sobre o Brasil porque, como disse logo no começo, “o Brasil é muito diferente do que publicam os jornais”.

Chega a ser dramática a cena, quando Bolsonaro afirma que o Brasil aplica uma política ambiental completa, como se ignorasse que seu ex-ministro aplicou uma política de desmatamento derrubando florestas com as serras e com incêndios para aumentar os espaços destinados ao potente grupo agropecuário, para o plantio de soja e criação de gado destinados à exportação. Essa destruição incontida das florestas é um dos fatores responsáveis pela crise hídrica atual, a falta de água que está reduzindo a distribuição de eletricidade e encarecendo seu uso doméstico.

O cinismo é insuportável quando se refere aos indígenas, quando se sabe estarem sendo expulsos de suas terras por garimpeiros e mesmo por agricultores armados. A outra versão mentirosa é a de que são os indígenas que desejam terras para se dedicar à agricultura.

Bolsonaro delira quando afirma que o Brasil recuperou a credibilidade internacional, quando ocorre justamente o contrário, restringindo os investimentos diante dos riscos políticos institucionais e do retorno da inflação.

Esquecendo-se de que roupa suja se lava em casa, Bolsonaro tenta culpar os governadores pela crise de desemprego por terem aplicado a política de confinamento da população em suas casas, contra o coronavírus. Esquecendo-se de acrescentar de que sem confinamento, como ele queria, o número de mortos seria muito maior.

Para finalizar, Bolsonaro, nessa altura já um Pinóquio de nariz comprido, acrescentou duas mentiras — a de que no dia 7 de setembro houve as maiores manifestações de todos os tempos no Brasil. E de que eram pela Democracia. Não foram as maiores e nem eram pela democracia, mas para provocar uma crise institucional, com fechamento do Legislativo e do Judiciário.

Porém essas mentiras não interessavam aos chefes de Estado e diplomatas reunidos na ONU, em Nova Iork; na verdade, foram dirigidas às redes sociais bolsonaristas de fake news. Muitos de seus seguidores devem ter vibrado e se identificado com ele, ao ver fotos do seu presidente populista comer pedaço de pizza em pé, na rua. Mas ver não enche barriga: muitos outros prefeririam ter um pedaço de pizza em casa.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.