Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O verão de Angela Merkel

(Foto: Fotos Públicas – Fórum Econômico Mundial / Sandra Blaser)

Filha de um pastor evangélico luterano e uma professora de inglês, Angela Merkel cresceu sob um regime que estrangulava qualquer iniciativa do cidadão em prol da “coletividade” e entendeu, bem cedo, como é importante ficar calado e ouvir, ouvir, ouvir. Disciplina era uma habilidade existencial no regime opressor da Alemanha Oriental.

Angela estudou em uma escola pública no vilarejo de Templin, na região de Brandemburgo (vizinha de Berlim). Era uma das melhores alunas da escola e foi a única menina a disputar olimpíadas de matemática na ex-União Soviética.

Ela aprendeu bem cedo que, para se destacar na Alemanha, só mostrando serviço e aparecendo pelo esforço e pela perseverança, valores bem vistos pelos leões do Politbüro. Outra qualidade, não menos importante, era saber a hora de pegar onda na dinâmica dos fatos ou de simplesmente ficar quieta, esperando a tempestade passar enquanto fingia que nada era tão dramático assim. Esse último critério foi o que possibilitou manter uma gestão ainda mais longa que a de seu mentor, Helmut Kohl, que governou o país entre 1982 e 1998.

Em 2002, ela brilhou com sua paciência e contenance ao sair do caminho para que o ex-ministro da Baviera fosse aclamado candidato pela União (CDU e CSU). Mas Edmund Stoiber perdeu e Merkel foi se colocando em posição, como faz na beirada do campo um jogador com a astúcia dos que sabem esperar sua hora de fazer a diferença.

Emoções nunca fizeram parte de seu portfólio nem mesmo durante a cerimônia de posse, em 2005, como a primeira mulher na história do país a ocupar o cargo de chanceler.

Quando algo parecido com o expressar de alguma emoção aflorava, Merkel desconcertava. Os momentos podiam ser os mais pueris, como visitar um jardim de infância e ler para os baixinhos ou durante a tradicional cerimônia dos reis magos, no dia 6 de janeiro. O olhar de Merkel para aqueles magos vestidos a caráter já se tornou um símbolo para o seu pouco jeito de lidar com o mundano. Os programas de sátira política descobriram adubo para a criação de esquetes e personagens usando sua falta de desenvolvimento emocional. Em contrapartida, Merkel é dona de imensa habilidade analítica e pode, rapidamente, entender e delinear assuntos complexos.

“Merkel, fria como gelo” – Merkel, eiskalt – foi o apelido que a imprensa encontrou para a chanceler que, lá atrás, quando era membro da “Mesa Redonda”, o primeiro ensaio de algo parecido com uma administração poucos dias depois da queda do muro de Berlim e seus desdobramentos da ordem mundial, ela já exibia exímia eficiência em articular e negociar, em dar as cartas. Dali, ela saiu para ocupar uma pasta no gabinete de Kohl.

Carisma zero

Nas maiores crises durante sua gestão, como o fechamento de inúmeros pacotes financeiros para os países endividados da UE e, especialmente, aquele verão fatídico de 2015, com a crise dos refugiados, Merkel manteve cabeça fria, o semblante inabalado e sua brilhante análise calculista. Até mesmo frente à situação dramática de refugiados presos na Estação Ferroviária de Budapeste, ao mesmo tempo sem poder entrar na Hungria, confrontada com uma verdadeira chuva de críticas, ela sempre tinha a resposta na ponta da língua: “naquele momento, não havia alternativa”. Acrescentou o aspecto “humanitário” e usou adaptação livre da frase de Barack Obama em sua campanha eleitoral para presidente dos EUA: do Yes, we can para Wir schaffen das (“a gente consegue”, em tradução livre). Com essa medida, em 2015, iniciava a ainda silenciosa erosão do poder merkeliano, que tinha como inimigo paralelo a vertiginosa ascensão da direita populista e extremista, cujo hino era e continua sendo “Merkel tem que sair”.

Nervos de aço

A segunda etapa da erosão viria através do inimigo que mora ao lado: Horst Seehofer, chefe do CSU da Baviera, membro do governo (em coligação com os socialdemocratas) e, o que a imprensa gostava de esquecer, subordinado às ordens da chanceler, a quem ele, sistematicamente, sabotava. Foram três anos de picuinha semanal, exacerbando a paciência dos alemães, que não suportam picuinhas e querem ver serviço, algo que Merkel executava com maestria antes Seehofer iniciar uma sentida e infinita DR.

Fim de linha em 2021

Depois dela anunciar o fim da carreira, a picuinha parou e Seehofer também anunciou o encerramento de sua vida política. Agora que Merkel agendou sua saída, não tem mais graça fazer política em Berlim – assim é a lógica de um homem imprevisível e que ainda continua no comando da pasta da política do interior em pleno 2019, com todos os desafios que o zeitgeist vai colocando no caminho.

Coerente e fiel à sua postura de alinhavar tudo, de ser a protagonista de decisões, sempre foi seu desejo agendar o fim da carreira e não ser escorraçada pelo eleitorado ou por adversários políticos. Tudo parecia andar conforme planejado. Annegret Kramp-Karrenbauer foi a candidata escolhida para comandar o CDU, Merkel continuaria chanceler e a mídia agia como se isso fosse continuar para sempre.

Total perda de controle

Mesmo antes da terça-feira, 18 de junho, com a visita de apresentação do novo premiê da Ucrânia em Berlim, Merkel já apresentava mudanças físicas visíveis, como sinais de exaustão e falta de concentração.

As imagens de tremor descontrolado no jardim da Chancelaria Federal, em tarde de um calor “infernal” (segundo meteorologistas proveniente do deserto do Saara), rodaram pelo mundo, causando desdobramentos em todas as direções. Sem controle do movimento do próprio corpo, Merkel foi alvo das câmeras e notícias por uma fraqueza que a faz humana. Durante todo o tempo anterior, a mídia havia comprado e vendido abrangentemente a foto de Merkel imbatível, implacável, calculista.

No âmbito político, fraqueza e fragilidade já foram alinhavando especulações. A indiferença do ucraniano em não apoiá-la e nem mesmo prestar atenção ao ocorrido tornou-se uma nota de pé do circo midiático. O foco eram as pernas tremendo e os pés tentando se manter firmes no chão.

Logo depois do primeiro ataque, durante a coletiva com o visitante da Ucrânia, e depois das conversas em particular, Merkel alegou que teriam “faltado copos d’água” e que “agora” estaria tudo bem. Como nesse dia fazia em Berlim um “calor infernal”, não foi difícil de acreditar na versão.

Poucos dias depois, veio outro ataque de tremor durante um evento protocolar no palácio presidencial. Bem mais preparado do que o setor protocolar anterior, um funcionário levou a Merkel um copo d’água (aquilo que, supostamente, faltara no primeiro ataque). Depois de sinalizar aceitá-lo, ela o negou. Logo depois, a agenda a levaria para Osaka. Lá chegando, seu maior rival, Donald Trump, a cobriu de elogios, dando a ela o rótulo de “uma pessoa maravilhosa”. Houve tempos em que ele a acusou de “destruir a Europa”. O semblante de espanto com a ingenuidade de uma colegial que acaba de ser elogiada pelo rigoroso diretor a traiu. Lá mesmo, no Japão, Merkel se deparou com claros sinais de perda de articulação e deu ares de deslocada, sem muito ânimo para conquistar novos aliados.

Seu ex-pupilo Emmanuel Macron, aluno aplicado e ambicioso, parece ter perdido a paciência de esperar tanto para arregaçar as mangas e implementar as reformas que a UE necessita. Vida que segue, também na política. O tradicional eixo França e Alemanha, em 2019, está reduzido a uma fachada protocolar sem muito conteúdo.

Há poucos meses considerada a última garantia de defesa da liberdade dos valores ocidentais, em Osaka Merkel se viu deslocada, sem seguidores e muito menos aliados, e ainda com o “peso morto” da galopante fragilidade física exibida nos ataques de tremor um dia antes de embarcar. A ciência da comunidade internacional sobre o agendamento do fim da carreira da chanceler só arredondou uma dinâmica que ainda está em curso como um navio em alto mar, prestes a perder seu capitão. Mais um ataque de tremor da chanceler e a discussão sobre o sucessor se transformará numa carrossel político-midiático.

A mídia alemã semeia especulações para todos os lados sobre se Merkel estaria capacitada para governar até 2021 e sobre quem seria um potencial candidato, além de não poupar pautas em forma de entrevista com médicos neurologistas que ensinam como evitar ataques de tremor. Os famosos das classes A, B e C têm seu momento de glória, saem de seus porões, explicam como foi “trágico” o momento de suas vidas e dizem como fizeram para superar os ataques, quase numa dialética de #SomostodosMerkel. Quem há pouco tempo nem tinha conhecimento de sintomas como o de Merkel está sendo condenado a fazer um curso intensivo, ministrado pelos mais diversos setores da mídia, inclusive aqueles meios que vestem roupa de seriedade. No fundo, o intuito é o mesmo: likes, cliques e vendas.

A hora da vingança

Para quem guarda desafetos longos ou recentes da chanceler, a hora é essa. O mais assíduo dos oportunistas em reportagens e nas mídias sociais é o ex-chefe do Serviço de Segurança, Hans-Georg Maaßen. Quanto mais fica clara a fragilidade da chanceler, mais ele se vê enlouquecido para jorrar seu veneno, como sempre empacotado em retórica sofisticada e eloquente. Em 9 de julho, ele rotulou a imprensa livre alemã de “manipulada propaganda estatal”.

Em tuíte publicado no dia 11 de julho, logo depois do ataque de tremor da chanceler exibido ao vivo e em cores por câmeras famintas e direcionadas para suas pernas e pés, Maaßen postou: “O estado de saúde de um chefe de governo não pode ser de âmbito particular. Os alemães têm direito de saber se seu governante está apto a exercer seu cargo de forma plena”. A tese não é de todo errada, mas necessita de questionamento. A declaração de Maaßen é calculada do início ao fim. Ele faz a sua parte para o desdobramento da pauta: se Merkel consegue se manter no poder em plena forma até 2021 ou não. A pergunta sobre quem deverá descascar o abacaxi não demora. É um dominó midiático que só precisa de um empurrãozinho.

Chegada da fatura

Ocupar um cargo de chanceler durante quase vinte anos não passa despercebido. Para ninguém. Rugas, mudanças de fisionomia, perda ou ganho de peso e linguagem corporal como uma característica foram eternizados pela fotógrafa Herlinde Koelbl, que acompanha políticos por décadas com a afiada lente de sua câmera, da qual não foge nenhum detalhe.

Não deixa de ser irônico: a mulher mais obcecada por poder, que atravessou desertos para alcançá-lo, tem agora que se render à rebelião de seu próprio corpo. Suas declarações aos microfones de que “está tudo bem” e que “ninguém precisa de preocupar” ninguém mais na Alemanha acredita.

Durante a coletiva, depois do terceiro ataque de tremor em somente três semanas, Merkel foi questionada por uma jornalista finlandesa – e lá se vislumbrava, de novo, a menina que foi indagada sobre um assunto pessoal sem a proteção do habitual distanciamento de assuntos políticos.

Berlim-Copenhague

A teimosia em seguir no caminho escolhido por ela já se mostrou uma pilastra na personalidade da chanceler, mas Merkel, de ingênua, nada tem. Como não tem controle do seu próprio corpo, ela decidiu mudar o protocolo a partir da visita da nova chefe de governo da Dinamarca. Em lugar de ouvir os hinos em pé, ela agora o faz sentada ao lado do político a ser recebido no jardim da chancelaria. O alívio ao ouvir o hino e ter o controle de que as câmeras de todo o mundo não poderiam ver tremor algum ficou nítido no semblante da chanceler, que tentou até o seu limite não ter que mudar o protocolo.

Merkel está prestes a se ausentar de Berlim no período de recesso e a imprensa amarela não decepciona: “Qual será o livro que Merkel levará para ler durante as férias?” No jargão da mídia alemã, vigora a expressão usada no período isento de escândalos, em suma, de notícias que vendem. Essa expressão se chama “buraco do verão” (Sommerloch). Quando os parlamentares curtem as férias e as fotos de celebridades de Hollywood nas praias do mundo ou o casamento já ocorrido ou iminente de Heidi Klum com Tom Kaulitz, da banda Tokyo Hotel, não alcançam o número desejado de vendas, é preciso inventar pautas, instigar a especulação – e nada como estimular o medo de ficar órfão da “Mutti” (apelido dado a Merkel pela mídia) antes do tempo que ela determinou. Nesse verão de 2019, a chanceler se mostra o foco perfeito para seguir na onda oportunista de instigar o medo e a imprensa arrisca até mesmo uma disputa precoce sobre quem vai ocupar o escritório de Merkel no quinto andar da Chancelaria Federal, no centro de Berlim.

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Fatima Lacerda é jornalista e assina a coluna semanal “Conexão Berlim” no Mídia Ninja.