Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

2016 e a tangente à curva

Ninguém sabe exatamente quando o tempo passou a ser circular nem quando um artigo que se pretende sério passou a ter de ser iniciado da mesma forma de um conto de ficção científica, mas qualquer um que deseje contar o ano de 2016 sentirá necessidade de primeiramente derribar-se das medidas convencionais do tempo e aceitar apenas embarcar num dado momento da jornada. Casualmente, neste 2016.

Em janeiro, ainda dentro da paisagem distópica e aterradora da tragédia do rompimento da barragem de Mariana, o ano começava (ou o tempo continuava) não muito diferente do que terminaria para aquelas pessoas atingidas: sem sinal de quaisquer providências nem de punição dos responsáveis. A despeito das muitas manifestações populares e de promessas governamentais nunca cumpridas, o cenário de “lama, luto e impunidade permaneceu intacto, como se precisasse ser assim para que se atestasse a ineficiência institucional quando o que está envolvido é a vida das pessoas e a sobrevivência do meio ambiente. A tragédia de Mariana é para o Brasil uma das suas incógnitas temporais: ninguém sabe precisar em que momento da história recente ela foi gestada pela negligência na construção e em sua fiscalização nem muito menos se há um prazo para que os danos causados às pessoas e ao ambiente sejam finalmente reparados.

Também no verão passado, o até hoje mal compreendido vírus Zika iniciava seu trânsito (ainda não encerrado, diga-se de passagem) pelo Brasil. Porém, também é provável que ele viesse circulando no Brasil desde a Copa do Mundo de 2014 tendo chegado por aqui através de visitantes das ilhas do Pacífico, onde se havia manifestado anteriormente. Partindo do sertão nordestino, sua rápida propagação fez com que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretasse no começo do ano estado de emergência global em função dos crescentes casos de microcefalia, logo a seguir denominada “síndrome congênita do Zika”. Mais recentemente, embora a OMS recentemente tenha retirado o alerta global, pesquisadores declararam esperar que os casos de microcefalia e da síndrome de Guillain Barré, outra intercorrência do vírus, aumentem em outras regiões do Brasil, principalmente na região sudeste. Também a epidemia do Zika parece ter uma origem imprecisa e, dado o mínimo esforço em debelar o vetor da doença, previsão nenhuma de acabar. Os dados sobre a população desassistida  no sertão paraibano igualmente colaboram para um cenário muito distante de ser solucionado.

A batalha do impeachment

Como uma ilha encravada no meio da circularidade de 2016, realizaram-se no Rio de Janeiro, entre agosto e setembro, a Olimpíada e a Paraolimpíada. Apesar de algum pessimismo da opinião pública e do terrível desabamento da recém-inaugurada ciclovia Tim Maia, os eventos transcorreram sem maiores contratempos. A Paraolimpíada, provavelmente por uma baixa expectativa de retorno publicitário, sequer teve sua abertura televisionada pelos canais abertos, o que motivou intensos protestos na comunidade de pessoas com deficiência no Brasil . Mas ainda que ambos os eventos tenham sido bem-sucedidos, logo ao seu final o estado do Rio de Janeiro já viria a decretar estado de calamidade financeira. Com os megaeventos encerrados, era a hora de conferir o saldo final e o prejuízo recaiu amargamente nos serviços públicos e salários do funcionalismo. A crise econômica, como uma caixa de Pandora retida a muito custo, podia já ser aberta e espalhar seus horrores.

Desde o ano anterior, que terminara com os movimentos em torno da Agenda Brasil capitaneada pelo senador Renan Calheiros e com o movimento “Fora Levy”, anunciavam-se já problemas mais sérios na área econômica que logo iriam repercutir nas finanças dos estados e também dos municípios. Além do Rio de Janeiro, o Rio Grande do Sul também decretou estado de calamidade financeira e outros 15 estados estudam fazer o mesmo. Contas no vermelho, parcelamento nos salários e projetos de ajuste fiscal no âmbito estadual fazem do cenário uma paisagem desoladora que o governo federal repete no seu âmbito e vem buscar deter através da PEC 55, projeto de ajuste em tudo semelhante ao PLP 257/2016, originado em 2014, mas que passou a contar com a oposição de sindicalistas, movimentos sociais e dos partidos que deixaram o governo logo após o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a posse de seu antigo vice, o presidente Michel Temer, ao final de agosto.

Toda essa impressão de circularidade, todavia, poderia ser quebrada através da observação do movimento político na esfera federal, tendo em vista que o ano foi iniciado com uma composição de governo e terminou com outra. Ainda que por um determinado tempo tivessem sido o mesmo, numa composição de forças organizada anteriormente, precisamente no ano de 2011, quando se formou a chapa encabeçada por Dilma Rousseff, do PT, e tendo como vice o atual presidente, Michel Temer, do PMDB, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff pode ser apontado sem dificuldades como o grande divisor de águas do ano na política nacional, assim como as eleições municipais de outubro a confirmação da tendência de rejeição ao governo anterior e aos partidos de esquerda.

Com a opinião pública aparentemente dividida apenas entre apoiadores e detratores do impeachment, com a polarização política levada ao extremo e contando com uma intensa batalha jurídica e grandes manifestações populares como background, o processo realizou todo o percurso previsto na Constituição Federal, desde a aprovação do pedido numa Câmara dos Deputados ainda presidida pelo ex-deputado Eduardo Cunha, até a aprovação final no Senado, com 61 votos favoráveis e 20 contrários.

Um governo sem um projeto claro

O pedido de impeachment protocolado pela advogada Janaina Paschoal e pelos juristas Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior tramitou por longos meses e, ao lado do avanço da Operação Lava-Jato, dinamitou as relações políticas no país inteiro, cuja estagnação econômica iria despencar logo em seguida para números negativos. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetou uma queda de 3,3% no PIB brasileiro para 2016 e um cenário de estagnação para 2017. Para o Fundo Monetário Internacional, o ano deve fechar com uma taxa desemprego em torno dos 11,2%. O mesmo movimento parece ter dinamitado também as relações pessoais de um modo geral. Nas redes sociais, os efeitos da saturação informativa  evoluiram, às vezes, para um acirramento sem precedentes que aqui mesmo no Observatório da Imprensa foi equiparado a uma “briga de foice.

Ao final de novembro, o mesmo Hélio Bicudo autor do pedido de impeachment de Dilma Rousseff declarou em entrevista à revista Época que “o impeachment de Temer já deveria ter ocorrido” . A Lava-Jato, operação iniciada em 2009, depois de investigar nomes do antigo governo do PT, em operações de caixa 2 e outros crimes administrativos, passou a investigar também doações feitas a políticos do PSDB, figurando inclusive na capa da revista Veja . No âmbito da investigação, políticos como o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e os ex-governadores do estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho e Eduardo Paes, foram presos em operações levadas a efeito pela Polícia Federal. De acordo com o MPF, outras operações devem ocorrer ainda em 2016 e prolongar-se em 2017, envolvendo centenas de políticos e empresários, tendo-se em vista o desvio de bilhões de reais das contas da Petrobras , além da celebração do maior acordo de leniência com a Odebrecht, que resultará no pagamento da multa nem um pouco irrisória de sete bilhões de reais.

Um ponto completamente fora da circularidade foi sem dúvida o trágico acidente envolvendo o time de futebol catarinense da Chapecoense, que vitimou setenta pessoas na Colômbia, onde seria disputada a final da Copa Sul-Americana. A comoção popular chegou ao mundo inteiro, dentro e fora do esporte e uma homenagem  protagonizada espontaneamente pelos colombianos na data em que se disputaria a final simbolizou a perplexidade que atravessou o país inteiro, rendendo imagens tocantes da população que se reuniu no estádio Atanasio Girardot. Uma vez que o soterramento do Rio Doce Mariana aconteceu em 2015, apesar de haver se prolongado durante todo o ano, o desastre da Chapecoense provavelmente terá sido mesmo o grande evento trágico do ano, a despeito de outras tragédias duradouras e já velhas conhecidas, como a da população indígena e a da discriminação racial, mas principalmente pelo imponderável que há em tragédias assim.

Se em algum momento houve realmente alguma linearidade na história recente, 2016 pode talvez ser encarado como o ano em que simplesmente se deu continuidade a um ou vários processos já em curso. Seja no afunilamento institucional no campo político, no crescente embate entres os poderes de Estado ou no hiato administrativo caracterizado em um governo sem um projeto claro, é como se o tempo simplesmente pudesse desaguar no próximo janeiro e seguir seu curso ininterrupto. Dessa forma, é bem possível que tanto a tragédia humanitária em torno do Xingu e da usina de Belo Monte, a epidemia de Zika e de outras doenças virais transmitidas pelo aedes aegypti em decorrência de más condições sanitárias tenham vindo mesmo para ficar, assim como a Lava Jato e a conflagração política e o amplo dissenso político, notado principalmente no acirramento de opiniões nas redes sociais.

Tangenciar os problemas

O mais curioso, ou não tão curioso assim, é que justamente a operação Lava-Jato tenha recebido os maiores “investimentos” para sua eliminação. Trata-se do esforço empreendido pelo poder legislativo em derrubar o pacote anticorrupção , conjunto de medidas de ampliação da capacidade de investigação e o endurecimento de penalidades para com políticos envolvidos em crimes de corrupção. Tendo reunido interesses e partidos tão diversos quanto o espectro de investigados pela própria Lava-Jato, ainda assim não foi um movimento suficiente para evitar que o STF aceitasse denúncia de 2006 e transformasse o presidente do Senado Renan Calheiros em réu nem tampouco em ter reunido no início de dezembro dezenas de manifestações em todo o Brasil, tendo o combate à corrupção e a imagem de Renan como focos principais . Mais uma prova de que mesmo um fato de tal ineditismo nem sempre obedece a uma lógica cronológica coerente.

Com a credibilidade dos partidos políticos parecendo cada vez mais residual e apesar de ser perceptível um maior prejuízo para os partidos de esquerda, ainda assim a população parece ainda não conseguir distinguir a emergência de nem um novo projeto político, mas apenas o reavivamento mortiço de antigas figuras que, curiosamente, parece mesmo que serão as que levarão o Brasil ao futuro. Mesmo que políticos pareçam no mais das vezes apenas pessoas que dão voltas em torno de si mesmas numa composição formada por nomes e imagens desgastadas (diga-se de passagem em todos os poderes e esferas), é justamente com a desconfiança popular em alta e as contas e serviços públicos em baixa que o país caminhará para 2017 para dirigir-se muito em breve a um novo processo eleitoral.

Ponto a ponto e caso a caso, como em sucessivas marcações da circularidade histórica, ao fim de mais um ano o que parece escassear não é propriamente o tempo, mas as possibilidades de pontos de corte radicais na circularidade das vicissitudes históricas e políticas nacionais. Tangenciar os problemas às vezes parece indispensável e o mais sábio a fazer, mas também pode acabar por competir num afastamento de toda e qualquer centralidade. Acontece na astronomia com os satélites desgovernados. Sobre qualquer outra analogia o autor exime-se da responsabilidade.

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Lucio Carvalho é autor de Inclusão em Pauta (Ed. do Autor/KDP), A Aposta (Ed. Movimento), do blogue Em Meia Palavra (http://emmeiapalavra.com) e coeditor da Inclusive – Inclusão e Cidadania (http://www.inclusive.org.br)