Pior momento não haveria: eu continuava a leitura do livro de memórias do centenário sociólogo ainda vivo Edgar Nahoum, 700 páginas de quase um quilo. Um sinal do WhatsApp me chamou a atenção para a entrada de alguma nova informação no grupo Panorama, criado há algum tempo pelo colega jornalista Carlos Brickman, do qual fazem parte principalmente jornalistas, de direita, centro e esquerda, como eu.
Edgar Nahoum, quem é ligado em sociologia já percebeu, é mais conhecido como Edgar Morin, nome usado quando fazia parte da Resistência dos franceses à ocupação da França pelos nazistas de Hitler. Seu livro, “As lembranças vêm ao meu encontro”, não é um livro de sociologia, mas o relato do seu percurso desde sua juventude como estudante em Paris, suas opções políticas, sua participação na luta contra o invasor alemão e contra o governo do marechal Pétain, em Vichy, seus amores, sua vida intelectual, suas dificuldades financeiras depois da Libertação da França até se tornar professor no Centro Nacional de Pesquisa Científica e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, seus livros, etc. etc. porque sua vida tem sido fecunda.
Morin sentiu de perto o regime criminoso nazista: fala dos campos de concentração, do extermínio de tantos amigos, uns por serem resistentes, outros por serem judeus. Bastava ser judeu, homem, mulher ou criança, para sofrer perseguição, prisão e ser fuzilado ou morrer de fome, ficar pele e osso, como mostravam fotos da época da derrota de Hitler pelos aliados. Em síntese, eu estava lendo as memórias do judeu Nahoum Morin, um sobrevivente da época do nazismo.
No Brasil, é normal se ler e se comover com os relatos de Edgar Nahoum sobre os judeus da resistência francesa aos nazistas. Na maioria de nós, de famílias mais antigas, o judaismo não é tão distante como muitos podem pensar. Logo no começo da colonização, muitos judeus portugueses fugiram para o Brasil para escapar às perseguições e morte que se acentuaram com a Inquisição. Eram os marranos, descendentes de judeus sefaraditas convertidos à força ao cristianismo. Estão presentes nos sobrenomes de muitas famílias católicas e de políticos importantes. Com meus sobrenomes maternos Nunes, Bueno e Pereira, deles faço parte.
Não se pode esquecer a presença holandesa no Nordeste, de 1630 a 1654, quando foram expulsos pelos portugueses e chegaram à Nova Amsterdã, hoje Nova Iorque. Durante a presença holandesa no nordeste brasileiro, os judeus gozavam de relativa liberdade e foi em Recife a criação da primeira comunidade judaica nas Américas. Os marranos ou cristãos novos portugueses saíram da clandestinidade e se juntaram aos judeus holandeses em Recife. Tiveram de retornar à clandestinidade com a expulsão dos holandeses.
A presença de nomes judaicos é ainda viva no interior de São Paulo, onde se encontram famílias Hessel, Jacob e D’Avila, vindas da Europa no século XVIII, que deixaram o catolicismo e são hoje evangélicas. Ainda mais recente, no fim dos anos 40 e nos anos 50, convivi com muitos colegas judeus, filhos de famílias sobreviventes do Holocausto, em Santos, no Colégio Estadual Canadá. Lembro-me bem do primeiro da classe no curso ginasial, Jayme Diamant, e de Henrique Debsky.
Tudo isso escrito até aqui não me fez esquecer o título e nem o tema principal. Mas era preciso porque aconteceu numa emissão de Rádio com YouTube, de grande audiência. Hoje a Jovem Pan se transformou numa das maiores propagandistas conceituais e ideológicas do governo Bolsonaro e de sua sustentação, se reforçando com o ex-ministro Ricardo Salles e com o comentarista ex-CNN, Alexandre Garcia.
Voltemos, então, à mensagem vinda pelo WhatsApp. Era um vídeo de 24 segundos, reproduzindo uma fala no programa da manhã da Jovem Pan. O recado do meu colega Luiz Gomstein dizia: Vejam que absurdo, é loucura o que o Bernardi fala na Jovem Pan. Abri, vi, ouvi e levei um choque.
Mas vamos saber primeiro quem é Bernardi.
José Carlos Bernardi era, nesse momento, um dos importantes comentaristas da Jovem Pan. Segundo o expediente da Jovem Pan, “jornalista, cristão, empreendedor social e comentarista político”. De acordo com o site Forum, Bernardi se dizia “comentarista cristão”.
E o que Bernardi disse? Isso:
“É só assaltar todos os judeus que a gente consegue chegar lá. Se a gente matar um monte de judeus e se apropriar do poder econômico dos judeus, o Brasil enriquece. Foi o que aconteceu com a Alemanha no pós-guerra.”
Toda a mídia brasileira publicou e comentou. Havia uma divergência entre alguns comentaristas: para uns era uma frase racista, para outros antissemita. Para mim, é um tanto mais. É racista, é antissemita, mas é principalmente criminosa e de incitação ao crime. Para a antropóloga Adriana Dias “é uma apologia ao nazismo”. Essa frase é tão aviltante, tão insuportável, que em poucas horas seu autor foi demitido da Jovem Pan e de um cargo comissionado na Assembleia Legislativa de São Paulo, no gabinete do deputado Campos Machado (PTB).
Uma semana depois do ocorrido, embora Bernardi tenha sido jogado fora por seus amigos, apoiadores de outras tantas análises políticas extremadas, não se pode imaginar ser essa frase um lapso momentâneo, um escorregão de raciocínio. O atual governo já vulgarizou o vocabulário da maldade e vem fazendo uma reinterpretação nazifascista da História e da nossa história. A tal ponto, que um de seus defensores ideológicos, num momento de excitação, colocou para fora o que todos eles pensam. O que é um Holocausto para quem provocou e defende ainda o genocídio?
A história dos nossos índios e negros e pobres é também uma história de extermínio, de exploração, de pilhagem e de escravidão. Se todos nós brasileiros temos todos um pouco ou muito de sangue dos judeus fugitivos da Península Ibérica para escapar do extermínio, temos também sangue dos índios, que viviam desde muitos séculos nestas terras antes de Cabral. E hoje o que acontece? Estão sendo roubados de suas terras, estão sendo expulsos dos lugares onde viviam, ou pior que isso, estão sendo assassinados com suas crianças. E temos sangue dos negros escravizados que, mesmo libertados continuam sendo tratados como pessoas de segunda classe.
Estamos sendo hipócritas se condenamos Bernardi, em nome dos crimes cometidos contra os judeus, sem condenarmos a espoliação dos indígenas, roubados e expulsos de suas florestas e suas terras. Hipocrisia se não condenarmos a exploração dos negros, marginalizados no trabalho mal pago, induzidos tanto índios como negros a abraçarem a religião dos invasores.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.