O jornalista André Trigueiro talvez tenha vivido um dos grandes momentos de sua carreira na conversa com Caetano Veloso na sexta-feira, 05/06 , Dia Internacional do Meio Ambiente. Foi tanto um exercício de novos formatos e lugares para o jornalismo quanto uma abertura poética e política diante dos impasses do Brasil. Quase três horas de conversa e música, subvertendo o tempo destinado às lives pelo Instagram. Falou-se um pouco de tudo: Tom Jobim, meio ambiente, amenidades.
A quarentena faz avançar a experiência das lives como linguagem. Aprendemos a reconhecer o seu valor. A informalidade que não se alcança nos espaços institucionais da televisão e a intimidade como elemento diferencial. Nem todos aproveitam o potencial dessa nova forma de expressão, mas na navegação errante dos tempos de isolamento, as lives nos entretêm e estimulam a abertura de novos espaços simbólicos diante de uma realidade triste e trágica.
Toda noite, a sambista Teresa Cristina canta à capela e recebe convidados como Chico Buarque, Antônio Pitanga e Gilberto Gil. Tom Zé adapta sua performance de palco para a sala de casa. Num início de madrugada, Badi Assad nos brinda com teorias sobre corpo, mente, música e espírito. No café da manhã de domingo, Fernanda Takai e John Ulhoa lembram as canções lado b do Pato Fu ao lado da jornalista Patrícia Palumbo. Celso Adolfo mostra “Remanso do Rio Largo”, suas canções baseadas em Sagarana. Os arranjos incluem a busca de novos modelos de negócio para reduzir o impacto econômico do isolamento social na cadeia produtiva da cultura. Instituições e marcas buscam se associar a alguns artistas.
Mas são os formatos mais caseiros que parecem melhor funcionar. As lives são uma espécie de anti-selfie, sua dinâmica depende mais da valorização do conteúdo e da arte da boa conversa do que de imagens posadas. Aqueles que entendem essa sutileza, se dão bem.
Essa nova forma de expressão funciona como um antídoto contra o diálogo de surdos que nos trouxe ao contexto atual. Ficamos assim, na nossa intimidade, cara a cara com os artistas e pensadores que admiramos, podendo enviar nossas perguntas e considerações.
Na live de André Trigueiro e Caetano Veloso, o jornalismo também foi pauta. Ao falar sobre meio ambiente, Caetano notou uma mudança de tom no tratamento dos temas ambientais pelo jornalista da Globo News. “Você foi se tornando mais ativista”, disse Caetano em tom de elogio. André lembrou que o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usa o mesmo adjetivo para se referir, de forma pejorativa, a imprensa que cobre a criminosa política ambiental do governo. Caetano e André também se lembraram de Eliane Brum como expressão de um jornalismo literário da mais alta qualidade, desde o início da sua carreira escolhendo o lado dos excluídos nas narrativas predominantes.
Nos tempos atuais, da intimidade das lives e redes participativas, há um questionamento aos jornalistas sobre a transparência em relação aos seus posicionamentos ideológicos e políticos. Quanto mais claro for essa posição, melhor. Uma cobrança que era destinada mais aos veículos, na ordem das mídias de massa, se desloca para os profissionais da imprensa, que também se manifestam em suas redes sociais.
Como não ser ativista em relação ao combate ao desmatamento da Amazônia, ao ciclo autoritário político que se instala, ao negacionismo científico e ao racismo estrutural na sociedade brasileira? O foco da credibilidade jornalística se destina mais ao cuidado ético na verificação das informações e checagem de dados do que a uma inatingível isenção. O ativismo só não pode ser cego e surdo às evidências factuais que podem colocar em cheque suas causas. Mas assumir uma posição política é hoje também condição de credibilidade jornalística.
André Trigueiro não está sozinho na mudança de tom. Entre os seus colegas da Globo, vê-se um novo posicionamento crítico. Bolsonaro não mudou. Desde sempre é o mesmo em discursos e atos com sua defesa de torturadores, ataques à igualdade de gênero, ao combate ao racismo, dentre outros temas.
As rápidas mudanças sociais trazidas pela pandemia e as evidências de uma política errante e fascista evidenciaram uma postura mais crítica, ausente numa espécie de adesão à lógica econômica do núcleo de Paulo Guedes, quando não da normalização do comportamento do presidente. Como disse Xico Sá no Twitter: “Só confio no jornalismo brasileiro quando ele trocar a devoção ao Ministro Guedes pelo amor ao SUS, a saúde e a vida.”
Há tempos sabemos que os acontecimentos abalam as estruturas. Os protestos dos jovens americanos contra o racismo têm um elo mais profundo que toca no cerne do funcionamento da lógica especulativa dos mercados voláteis, insensíveis ao sentimento de humanidade, exposto, em escala global à Covid-19.
A Globo encontrou um novo lugar de fala, a ponto dos comentaristas do programa Em Pauta serem substituídos pelos jornalistas negros da emissora. Resultado confesso de uma foto com comentadores brancos discutindo racismo que viralizou nas redes sociais, como bem lembrou a ombudsman da Folha, Flávia Lima, em sua coluna na Folha de S.Paulo: “Sim, somos racistas”.
Enquanto na CNN, a consulesa francesa Alexandra Loas chamava atenção para a incoerência de um profissional como William Waack, desligado da mesma Globo por comentários racistas nos bastidores de uma transmissão, conduzir discussões sobre o tema. Na busca por certa coerência entre o que se é e o que se diz, irrompeu também a memória do livro publicado pelo diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, em 2006: Não somos Racistas — uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor.
As evidências da violência de nosso racismo estrutural ficaram expostas, uma vez mais, na triste e trágica morte do menino Miguel, em Recife. De novo, foram as redes sociais que expuseram a contradição das primeiras notícias divulgadas não revelarem o nome da patroa, Sari Mariana Gaspar Corte Real, que cometeu o crime de abandonar a criança num elevador, enquanto a empregada Mirtes Renata de Souza, mãe de Miguel, passeava com o cachorro a pedido de sua chefe. O menino caiu do alto do prédio. O boletim de ocorrência não registrava o nome da patroa com base na lei de abuso de autoridade e ela foi liberada após pagar fiança de R$ 20 mil. As suspeitas de que a empregada doméstica era funcionária pública fantasma da prefeitura de Tamandaré, conduzida pelo marido de Sari, ecoam a alegoria de “Bacurau”, o filme do pernambucano Kléber Mendonça Prado, ambientado num futuro distópico que se mostra próximo de nosso real.
A liberdade de tempo e formato da live de Caetano e André — livres dos pesos institucionais — tornaram o discurso mais abrangente, com as associações temáticas que fazem a criatividade do artista. Uma das sínteses possíveis se deu em torno de um significante que veio à tona. Caetano falou da necessidade de nos apropriarmos do sentido da palavra jabuticaba. Nas metáforas de Paulo Guedes e nos seus círculos, a palavra adquire o sentido de elemento que atrapalha o avanço do trator neoliberal sobre a sociedade brasileira. Muitos jornalistas reproduzem a palavra com esse sentido.
Caetano chamou atenção para a necessidade de uma inversão semântica: restituir à jabuticaba sua dimensão poética. O artista lembrou da infância em Santo Amaro da Purificação, as jabuticabeiras no quintal, a convivência pacífica e respeitosa entre as pessoas, a defesa da princesa Isabel como abolicionista. A referência é de uma cultura popular rica, diversa e sincrética que abriu espaço para nossa poesia mais refinada, no samba e outras manifestações culturais, e diz respeito também a certos modos de vida. O racismo estrutural que estamos aprendendo a identificar atravessa essas formações como um desafio a ser enfrentado para entrarmos no século XXI.
Não nos faltam motivos para estarmos tristes, machucados, desesperançados. A dimensão poética da jabuticaba é o elo que nos liga à Tom Jobim, artista homenageado na live por sua relação profunda com os temas ambientais e também, importante lembrar, à Guimarães Rosa e outros tantos criadores de linguagens que nos fazem sentir mais brasileiros.
Caetano, grande artista brasileiro, é hoje um homem na maturidade de seus 77 anos. A expressão de seus cabelos brancos é, entretanto, indissociável do jovem tropicalista que encontrou na linguagem a força da expressão de uma potência de ir em frente à despeito da opressão da ditadura militar, como nos versos de “Alegria e Alegria”, canção que o tornou conhecido em 1967.
Uma resistência a ser revisitada diante das ameaças da necropolítica no poder. É preciso buscar forças e defender nossos territórios e imaginários. O jornalismo terá de se posicionar diante desse contexto, como ação e linguagem. A jabuticaba como metáfora da nossa biodiversidade, de nossas reservas biológicas e culturais, saberes e sabores, como a Refazenda de Gilberto Gil. Antes de ser exterminada a última nação indígena.
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Pedro Varoni é jornalista e autor de A voz que Canta na Voz que Fala- Poética e Política na Trajetória de Gilberto Gil, Ateliê (2015).