E se a carta de Bolsonaro pedindo desculpas ou perdão foi só encenação para durar algumas semanas? E se Bolsonaro for engolido por Michel Temer, cuja tranquilidade poderia apagar o incêndio do ódio lançado no país pelas redes de fake news bolsonaristas?
Nas manifestações do Sete de Setembro, Bolsonaro proferia ameaças e impropérios contra o ministro do Supremo, Alexandre de Moraes. Cuspia fogo e quando abria a boca se podia ver mesmo as profundezas do inferno, cujo calor do momento aumentava com o combustível das redes do ódio. No seu delírio do poder, se julgava o rei, o déspota, ou ditador todo poderoso.
Mas seus vassalos não eram guerreiros de lança nas mãos, montados em cavalos de raça. Na maioria, eram simples motoristas dirigindo os enormes caminhões dos patrões agropecuários, caminhoneiros dispostos a entrarem com seus veículos, motores roncando e buzinas soando, derrubando portas e paredes do STF e do Congresso. Seria uma espécie de motim motorizado no vazio de um feriado, sem inimigos à vista, quando é mais fácil ser valente. Mas com belas fotos, verde-amarelas.
Mesmo se no calor do momento, Bolsonaro arreganhava a boca e mostrava seus caninos pontiagudos, com a benção dos pastores evangélicos ali ao lado, o cenário não estava completo como se programara. Suas mímicas de arminhas não convenciam, estavam sem balas, faltavam os soldados e faltavam os policiais armados, faltavam novecentas mil pessoas. O Golpe falhara como um balão murcho ou outra coisa, murcha.
De volta para casa, debaixo do riso e vaias dos inimigos e da imprensa, Bolsoignaro tinha se transformado no Bolsoralo. O valente déspota perdera toda sua majestade. A moto ficara sem gasolina. E como se não bastasse a vergonha do fiasco, Barroso, Fux, Moraes desafiaram — não vai mesmo cumprir decisões do STF? Verdade? Tenta pra ver. Isso dá impeachment!
Bolsoralo não dormiu. E como vai ser minha dinastia destituída, pensava, cada filho numa prisão diferente? Nem o dedo queria mais fazer arminha! Não caiu da cama, mas a cama ficou molhada de tanto suor.
Foi quando se lembrou do Temer, o Michel, também neoliberal. Foi ele quem colocou o Moraes lá no STF, quem sabe consegue limpar minha cagada. Chamou o Temer por telefone, na linha direta, alguém instruído, bem-educado, alta classe, mas não pôde conter sua linguagem de boteco:
“Porra Michel, fiz uma cagada com teu amigo Alexandre, caralho! E agora, pode me livrar dessa? Ele é teu amigo, pô!”
E o Michel, com aquele sorriso do lado direito do rosto, malicioso e meio-cínico, sentindo o peixe no anzol, foi direto: “Mas Bolsoralo, disse Temer circunspecto, você ofendeu o ministro, e ainda mais na frente da boiada em Brasília e São Paulo! Isso é coisa que se faça? O ministro está um leão, e boi tem medo até de rato!”
“Porra, e o que faço agora, peço perdão de joelhos?”
Temer assustado, reagiu: “Mas o que é isso, tenha mais brio, você é o presidente! Você precisa pedir desculpas, mas sem perder a honra, senão o gado vem aí na chifrada. Escreva uma carta se desculpando.”
“Mas Michel, nunca precisei escrever nada para chegar até aqui ao Alvorada. Não sou analfabeto, mas essas coisas de escrever carta, complica…”
“Bom, se você quiser eu serei o ghost writer de sua carta”…
“Gosto do que? não entendi…”, respondeu Bolsoralo
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“Presidente, em inglês isso quer dizer que posso escrever a carta como se fôsse sua”.
A carta foi feita, naquela fórmula jurídica apropriada ao tamanho da ofensa, feita não só ao ministro Moraes como a todos os brasileiros não pertencentes à manada. “No calor do momento” é uma fórmula usada nos fóruns para justificar atos violentos e xingações, e pode diminuir de até 10% o tempo de prisão numa condenação. Isso o velho raposa Temer não explicou ao desesperado presidente.
Para reforçar o pedido de perdão, o presidente conseguiu falar com Moraes. Mas ninguém gravou, sabe-se lá o que falou para se desculpar de ter usado o quase palavrão canalha…
Logo depois foi divulgada a Carta à Nação, nem o Ciro Nogueira leu antes, e milagre, a tempestade passou, pelo menos por algum tempo. Bolsonaro tirou aquela coisa de quatro linhas da Constituição e substituiu pelo respeito aos três pilares da democracia. Enfim, pôde respirar e ficou se dizendo, como moleque apanhado fazendo besteira — não faço mais, não faço mais!
Só que… só que o Michel Temer virou herói, o “bombeiro” que apagou o fogo. Tanto que o Oinegue da Bandeirantes, matreiro que é, viu no repentino retorno de Temer, o risco do ex-presidente, ladino e esperto, querer usar do atual inesperado prestígio como pacificador, para se tornar a outra opção da direita para evitar a explosiva polarização Bolsoralo – Lula.
Temer não tem trânsito e nem boa imagem na esquerda, onde é chamado de vampiro, e embora tenha sido preso por corrupção, foi absolvido e se tornou elegível. Sua posição neoliberal parecida com a posição defendida por Bolsoralo, sem os desvarios do presidente, seria uma atração mais segura para a direita. Porém Temer não tem popularidade para vencer uma eleição, talvez razão pela qual não quis ser candidato em 2018.
Mesmo assim, Oinegue perguntou no online ao vivo:
“E, então, ex-presidente Temer, essa sua vitória não lhe reabriu o apetite para se candidatar à presidência? ”
“Olha, aqui, agora, isso não está no meu horizonte, mas sabe-se lá, vamos deixar o tempo passar…”
Passou o sábado, passou o domingo. É verdade que a voz grave do ex-presidente ficava às vezes difícil de se entender, mas não vi ainda nenhum comentário sobre essa resposta nada ambígua.
Ou seja, o ghost writer com sua calma, sua pacificação, matreirice, esperteza de raposa da política, deixou ao Oinegue lançar sua candidatura como o esperado nome para a terceira opção. Se a direita neoliberal entendeu o sutil recado, o valente Bolsoralo vai se arrepender de ter telefonado ao Temer e assinado a Carta à Nação. Política tem dessas coisas. Em todo caso, Bolsoralo já era…
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.