O Brasil dos 90 milhões em ação da época da ditadura virou coveiro de 90 mil mortos e não foi “prá” frente como cantava o hino. Hoje quase não reconhecemos, como cantava Cazuza, a cara do lugar onde vivemos. Morremos sem entender o Brasil de hoje, a não ser recorrendo a Cartola, “quando notares estás à beira do abismo […]” e a Sérgio Ricardo, “ viu/ como o mundo inteiro/ ficou pequeno/ E em nossas mãos/ virou veneno […]”. O desgoverno só pode ser lido ao contrário quando nega a verdade e afirma fake. Foi assim quando a extrema direita negou o Holocausto e os incrédulos viram Hollywood na chegada do homem à lua. Galileu também garantiu um e pur si muove à terra e Sócrates preferiu cicuta a ser condenado por suas idéias.
Há 30 anos, o presidente Médici virou manchete de jornal declarando “Vivemos em Paz. É um ambiente de paz e trabalho que, infelizmente tem sido deturpado por alguns órgãos de imprensa européia que procuram dar a falsa impressão de que o governo brasileiro não respeita os direitos da pessoa humana”.
Rodamos, rodamos e caímos na mesma armadilha, podemos redigir um tratado sobre a bestialidade humana, outro sobre a vergonha.
Não adianta tentar achar o culpado. Foi Ciro Gomes que não se aliou a Lula? Lula que repudiou Ciro? Fernando Haddad não aceitou ser vice de Ciro ou foi o contrário? Foi a sociedade remanescente da Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964 com medo da esquerda? A esquerda errou? Acabou? Concordamos com Golbery, a esquerda só se une na prisão? Onde há saída?
Enquanto isso, Bolsonaro sofre a maior derrota no Congresso pela aprovação do FUNDEB: orçamento de R$ 168,5 bilhões no ano passado, agora favorecendo 17 milhões de novos alunos. O governo planejava tirar recursos da nossa vergonhosa educação básica e média para suprir a reformulação do Bolsa Família. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Básico era aquilo que o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, chamava de “reduto comunista”, enquanto dançava na chuva imitando Gene Kelly, trocava letras como o Cebolinha e odiava a expressão “povos indígenas”. Mas o que ouvimos de Bolsonaro logo depois da derrota, enquanto caminhava sem máscara e vendia cloroquina até para as emas do Palácio, foi: “o governo conseguiu mais uma vitória. A Câmara e o Executivo mostraram responsabilidade. Foi uma votação quase unânime, 7 votaram contra. Se votaram contra, têm seus motivos”.
Não sabemos as emas, mas até o casal de araras-canindé, Waiwai e Mura, que encantavam a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio, vão se mudar para Cascais, em Portugal, com seu dono Mário de Andrade Netto (Mário Maluco) depois que seu quiosque point Palaphita Kitch fechou.
Nós, que ficamos no meio da desconfiguração brasileira, cada vez que andamos mais voltamos a 30 anos atrás.
O governo já aplicou 30 investigações baseadas na lei de Segurança Nacional, “entulho autoritário” utilizado pela ditadura militar para calar a boca de opositores. Desde junho de 2016, um projeto do então deputado Jair Bolsonaro pretende criminalizar elogio, pregação e apologia do “comunismo”.
O governo também elaborou uma “lista negra” secreta com fotos e endereços de 579 servidores federais e estaduais críticos a Bolsonaro. São assinantes dos manifestos criados este ano (os 75%?) propondo uma aliança popular antifascismo. Bolsonaro chamou quem se manifestou nas ruas contra ele de “marginais, terroristas, querendo quebrar o Brasil” e deu poderes de “inteligência” à Secretaria de Operações Vinculadas que elaborou a lista. A Seopi, subordinada ao ministro da Justiça, André Mendonça, vai distribuir os nomes a policiais civis e militares para, segundo eles, efetuarem “ações de prevenção, neutralização e repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio”.
A idéia é cada vez armar mais a população. Já foram derrubadas três portarias que pretendiam exercer o rastreamento e controle de armas e contrabando a facções criminosas. A “bancada da bala” tenta acabar até com a ouvidoria da polícia em São Paulo. Nunca se matou tanto. Só em São Paulo as mortes por policiais aumentaram 20% durante a pandemia. No Brasil, uma pessoa é morta a cada oito horas, negros e pardos à frente.
Bolsonaro só conversa com as emas desde que o ex-assessor parlamentar do Zero 1, Fabrício Queiroz, foi preso. E depois que as contas que propagavam notícias falsas de 17 bolsonaristas foram banidas do twitter e Facebook, por determinação do ministro Alexandre de Morais.
Mas o Brasil “dele” segue derretendo nossas conquistas.
Na economia, a perspectiva de uma nova CPMF baila no ar e, se vingar o projeto de somar os tributos estaduais e municipais no IVA, Imposto de Valor Agregado, os impostos entre 29 e 35% serão os mais altos do mundo. Por enquanto a unificação do PIS e Cofins já aumentaria a alíquota de 3,5% para 12%.
Atingiria inclusive a comercialização dos livros. Livros são objetos pouco familiares aos bolsonaristas que ocuparam as pastas de Direitos Humanos, Educação, o IPHAN, Fundação Palmares. Estranhos para os que esvaziaram a Cultura e a lei Rouanet, um dos maiores mecanismos de incentivo à cultura no país. Sem resolver os problemas de salários atrasados, risco de incêndio e abandono, o governo quer transferir de São Paulo para Brasília, do maravilhoso abatedouro onde se instala, a Cinemateca. E acabar de vez com a produção intelectual, leia-se comunista, da Casa de Rui Barbosa. Oito artistas, professores e produtores culturais resolveram disputar eleição no Cidadania carioca criando a “bancada do Livro”, contra a da BBB, Bala, Bíblia, Boi.
Na política, a toda hora uma nova delação apanha um político e já sobram poucos. São 19 milhões os brasileiros que desistiram até de procurar emprego, ou pela falta dele ou pelo medo do contágio, na escolha entre fome e morte. Na maior desigualdade social brasileira, 35 milhões de casas permanecem sem redes de esgoto e quase 10 milhões não contam com abastecimento de água.
Na onda do espírito da negação, que é a marca deste governo populista, diante de dez mil km² de floresta destruídas ano passado e desmatamento aumentado em 28% em um ano, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, concede uma entrevista ao Valor afirmando “Ninguém está aqui para descumprir a lei, muito pelo contrário”. Elogia o ministro das boiadas, Ricardo Salles, e Bolsonaro diz que Salles fica. Mesmo sabendo que, com ele, a Europa retirará subsídios à Amazônia, e que países sérios nunca aceitarão o genocídio dos indígenas. O Covid-19 já atingiu 143 etnias, matou 542 e infectou 16.656 indígenas.
De resto, passamos a barreira dos 2,5 milhões e os contaminados só fazem aumentar. No clima surreal em que faltam respiradores, remédios e sobra cloroquina e corrupção na compra de material de saúde e venda de leitos, trabalhadores da Saúde denunciaram Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional de Haia. Em resposta, a Justiça brasileira vai desenterrar um cadáver.
É o ditador paraguaio Alfredo Stroessner que se refugiou no Brasil em 1989 depois de inúmeras denúncias de crimes políticos e contra os direitos humanos. O general morreu no Brasil em 2006, aos 93 anos, e agora vai ser exumado para atender a um teste de paternidade de Enrique Alfredo Fleitas que alega ser seu filho. No ano passado, no banheiro da mansão do general, também foram desenterrados três crânios e restos humanos, prováveis vítimas entre os 2 mil desaparecidos durante os 35 anos em que liderou a mais longa ditadura da América do Sul. O Brasil nunca atendeu aos pedidos de extradição. O general foi homenageado por Bolsonaro no ano passado durante a posse do novo diretor de Itaipu Binacional.
Adianta pedir a cara do Brasil de volta?
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Norma Couri é jornalista e diretora da Comissão Mulher&Diversidade da ABI.