Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ciência, Política e a Pandemia

Crédito: Pch.Vector/Freepik

Este artigo analisa as campanhas de desinformação como propaganda no Brasil e na Hungria entre janeiro e julho de 2020 [1]. Elas se baseiam em um roteiro comum de teorias da conspiração, adaptado ao contexto local, e que justificam o ataque às universidades, educação pública e instituições do sistema de ciência, tecnologia e inovação. Tal fenômeno não é recente, mas tais campanhas trouxeram consequências às políticas para a saúde da população durante a pandemia de Covid-19, confirmando o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) chama de “infodemia“.

O roteiro comum das narrativas utiliza mensagens cuidadosamente elaboradas e dirigidas a vários segmentos de público-alvo, que se sobrepõem e se repetem ciclicamente, compondo o ecossistema de desinformação [2]. São direcionadas a grupos de afinidades que compartilham valores e crenças e estão predispostos a sua influência. São legitimadas pelo público-alvo nas mídias sociais, ganhando força, eco, disseminação e vida fora da rede: o que acontece “online” justifica ações e comportamentos “off-line”. Um exemplo é a resistência ao uso de máscaras com protestos e aglomerações em vários locais no mundo incentivadas pelas redes sociais. Mundos paralelos se cruzam no cotidiano e várias distopias se encontram na realidade.

Desinformação e Pandemia na Hungria

No poder desde 2010, o primeiro-ministro Viktor Orbán exerce uma “democracia iliberal”, com forte viés conservador, religioso fundamentalista, nacionalista, anti-imigrantes, flertando com o autoritarismo e ameaças aos direitos fundamentais. A maioria no parlamento permitiulhe aprovar mudanças na legislação e estabelecer uma autocracia cada vez mais autoritária. Para ele, o “workfare state”, contrário ao “welfare state” promovido pela Europa Ocidental, tem sido a solução húngara para enfrentar crises como a recessão econômica (2008), a imigração (2015) e a pandemia (2020).

Sua influência sobre os vizinhos-membros da Liga de Visegrád [3] e a sua aproximação ideológica a Trump, Putin, Erdogan e Xi Jinping são criticadas pelos demais países da União Europeia. Assim como o Brasil, a Hungria tem uma dependência econômica relevante da China mas, diferentemente de Bolsonaro, Orbán trata o parceiro como um aliado estratégico. Seus inimigos declarados são oponentes políticos, a imprensa, os não-cristãos, os nãohúngaros, sobretudo os refugiados islâmicos, a comunidade LGBTQI+, a academia, as ONGs, o judiciário, os comunistas, a “semi-marxista” União Européia e as multinacionais. Todos são monitorados, cerceados ou atacados continuamente pelo premier.

Orbán defende que as escolas formem e perpetuem o “Homo Christianus” húngaro e combatam ideologias de gênero. Seus levantes contra a academia e a ciência, tal como no Brasil, são recorrentes. As acusações de doutrinação nas universidades, o estímulo à delação e perseguição aos professores, a redução do orçamento das universidades e pesquisas públicas, a nomeação de reitores e burocratas da sua confiança, a revisão dos currículos escolares, o apoio às ciências duras em detrimento às humanas e a reestruturação da priorização e financiamento de pesquisas para proteger os interesses do contribuinte são alguns exemplos da sua agenda. Seu desmando mais polêmico foi a expulsão da “Center European University – CEU” e de seu patrocinador George Soros do país.

O país não chegou a ser um epicentro na primeira onda de Covid-19, pois decretou um estado de emergência severo e autoritário. Em fevereiro, o premier reconheceu os perigos do vírus e, contrário ao ceticismo da população, superestimou a capacidade do sistema de saúde do país inclusive pela sua experiência passada com a gripe Influenza, embora não fosse pertinente tal comparação. Utilizou-se de narrativas xenófobas na pandemia, como fez Bolsonaro, mas mirou os imigrantes e refugiados considerando-os a pior ameaça aos húngaros.

Em março, Orbán reconheceu a gravidade da pandemia e adotou medidas drásticas, quando o primeiro caso foi detectado em um estudante iraniano. Pela imagem de um governo soberano e eficiente, rapidamente decretou um rígido controle de circulação e fronteiras e o fechamento de empresas. Estrategicamente, centralizou em si todos os poderes por tempo indeterminado e instituiu punição para quem promovesse informações falsas. Na prática, prendeu quem se manifestasse contra ou crítico aos planos do governo para a contenção da Covid-19, inclusive em redes sociais. A narrativa de preservação da economia em detrimento da saúde pública estava presente, mas não impediu que tudo fosse paralisado, exceto as escolas, que foram fechadas dias depois contra a vontade do governo.

O controle das narrativas, o desmonte da oposição, o cerceamento da liberdade de imprensa e a falta de transparência vêm sendo construídos ao longo do governo de Orbán, mas se agravou com a centralização do poder na pandemia. Em julho, o último jornal relevante de resistência, o Index, foi “reestruturado”, provocando protestos em Budapest. A imprensa aliada promovia a eficiência do governo no enfrentamento da pandemia, enquanto as agências internacionais e o circuito alternativo mostravam um sistema de saúde em crise e o crescente autoritarismo, xenofobia e , colocando em xeque a propaganda de gestão eficiente do governo.

Seguindo a flexibilização de outros países europeus e ávido pela retomada da economia, Orbán decretou a volta à “vida normal” no país e encerrou a centralização emergencial de poderes no verão. A reabertura das fronteiras e a negligência com as máscaras e com o isolamento social resultaram em uma segunda onda severa, causando a apreensão do bloco europeu. Embora o governo siga relativizando o número de mortes, o Gráfico 1 mostra que a situação tem se agravado. No entanto, Orbán mantém o otimismo em seus discursos e o foco na economia, que viabilizou seu projeto político autoritário associado ao chamado “milagre econômico”.[4]

O roteiro “Deus, Pátria e Família” no contexto da Hungria congrega i) conservadorismo, marcado pelo fundamentalismo religioso caucasiano-cristão, anti-islamismo e homofóbico, ii) nacionalismo, em defesa da identidade nacional contra imigrantes, refugiados, multiculturalismo, globalismo e corporações multinacionais, e iii) autoritarismo, com a supressão e ataques aos direitos políticos, civis e fundamentais. Bolsonaro representa a “nova política” e, paralelamente, Orbán é “anti-sistema”. Os dois governantes demonstraram sua admiração mútua inúmeras vezes, como em 2019, quando o Brasil se juntou à III Cúpula da Demografia de Budapeste em defesa da família tradicional branco-crista e pró-vida, da demografia e da cultura ocidental.

Gráfico 1 – Evolução da pandemia de Covid-19 na Hungria entre janeiro e outubro. Fonte: OMS, extraído em 01/11/2020

Desinformação e Pandemia no Brasil: cronologia

No Brasil, as narrativas [5] estão associadas ao combate à “doutrinação comunista” e à 5 “corrupção” e atacam os direitos humanos, o “politicamente correto”, a “ideologia de gênero” e o setor público. São capazes de deteriorar as relações familiares, de amizade e convivência, em um longo processo de dissolução da sociabilidade. A equipe de governo de Jair Bolsonaro, presidente eleito em 2018, foi designada para implementar rapidamente sua agenda de extrema-direita em todas as áreas, do meio-ambiente à educação. O desmonte articula narrativas de difamação institucional [6], contenção de recursos e intervenções nos quadros 6 técnicos, como ocorreu com Anvisa, CNPq, CAPES, INPE e ICMBio.

Esse processo se intensificou durante a pandemia. O negacionismo científico, inclusive desdenhando da própria doença, foi usado com objetivos políticos num espiral de autoritarismo crescente. Até mesmo o Sistema Único de Saúde, o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde (OMS) tornaram-se alvos. A exoneração de ministros e técnicos, desqualificação das medidas de profilaxia e defesa de medicamentos não homologados são alguns dos desmandos do presidente, que também acusa a OMS de usar a pandemia para implantar o comunismo no mundo e aposta na falsa oposição entre saúde ou
economia.

Gráfico 2 – Evolução da pandemia de Covid-19 no Brasil entre janeiro e outubro. Fonte: OMS, extraído em 01/11/2020

Abaixo podemos acompanhar a cronologia da desinformação em paralelo com a evolução dos casos no Gráfico 2.

Janeiro: “Governo vigilante”

As narrativas sobre a misteriosa doença são controladas pela grande imprensa e despertam curiosidade mas nenhum compromisso do público. O debate segue com ironia, humor e afastamento nas redes sociais, quando o epicentro da doença é a China. Essa é a primeira fase do negacionismo e pode ter atrasado os cuidados e a profilaxia no Brasil. O governo assume um tom tranquilizador, de “governo vigilante”, e a imprensa denuncia a negligência brasileira em contraste à eficiência chinesa no controle e tratamento de seus doentes.

Fevereiro: “Sopa de Morcegos”

O estilo de vida chinês é culpado pela origem do vírus com a notícia da “sopa de morcegos”, publicada pela imprensa e multiplicada pelas redes sociais. A teoria rapidamente alimenta a narrativa bolsonarista de ataques xenófobos e conspiratórios. As narrativas sobre o “víruschinês” ou contra a China, “bastião do comunismo”, persistem, se fortalecem e se somam a outras narrativas ao longo da pandemia, causando constrangimentos entre os países nos meses seguintes. Segue a negligência e surge uma gama de remédios milagrosos. O carnaval é celebrado, apesar do alerta máximo decretado em janeiro pela OMS, e o governo federal reluta em repatriar brasileiros que viviam em áreas de risco na China.

Março: “O Brasil não pode parar”, “velhofobia” e “curas mágicas”

Apesar da primeira notificação confirmada de óbito por Covid-19 em 12 de março, o Brasil não concilia interesses e nem coordena ações de enfrentamento, como a Europa fez ao ver a Itália se tornar o novo epicentro da doença. De um lado, empresários bolsonaristas inundam as mídias sociais com vídeos que minimizam a doença em detrimento do “tsunami” econômico iminente. Segundo eles, o Brasil não seria severamente impactado pelo vírus por ter clima quente e densidade demográfica muito menor que a Itália. Além disso, a doença seria fatal apenas para os fracos, doentes e velhos. Bolsonaro coloca em xeque a credibilidade da OMS, distorcendo as recomendações em favor das suas narrativas. O governo federal lança a campanha “O Brasil não pode parar”, incentivando o retorno à vida normal e isolamento vertical [7]. Por ordem judicial, a campanha foi apagada [8] por conter desinformação, mas o Procurador Geral da República arquivou o caso.

De outro, governadores e prefeitos, inclusive aliados do governo, temendo as projeções e o caos visto em outros países, implementam ações preventivas de isolamento social e são declarados inimigos pelo próprio presidente.

Emergem as “curas mágicas”, passando pela recomendação de vacinas para pets em humanos e medicamentos como a cloroquina (“o remédio de Trump”). As “curas” fortalecem a militância de grupos contrários às políticas de isolamento e medidas de proteção, e a promoção do medicamento pelo presidente, concomitante ao que acontecia nos Estados Unidos, levou ao aumento da automedicação da população, alta nos preços e até a falta do medicamento, provocando suspeitas por parte do Ministério Público.

As mensagens “espirituais” associadas ao Apocalipse surgem nas redes, enquanto a defesa do “isolamento vertical” é associada a memes e piadas que promovem a “velhofobia”.

Abril: “O vírus do globalismo comunista” e o “Placar da vida”

O negacionismo e ataques de bolsonaristas à hospitais, profissionais da saúde, cientistas, povos indígenas, ambientalistas e políticos são denunciadas às organizações internacionais. Pesquisadores do Instituto Fiocruz reúnem-se na OMS para coordenar ações, enquanto o chanceler brasileiro acusava a organização de usar o “comunavírus” ou “vírus-ideológico” para destruir a soberania nacional e implantar o “globalismo comunista”.

O presidente usa a decisão do Supremo Tribunal Federal, que atribuiu a governadores e prefeitos exclusividade sobre as medidas restritivas durante a pandemia, para culpar seus adversários políticos pelas mortes, circula sem máscara, promove aglomerações e flerta com o autoritarismo ao apoiar manifestações em prol da intervenção militar. Ele segue negando os riscos da doença que chama de “gripezinha” e insiste que suas consequências foram superdimensionadas com uso “fake-news” por seus adversários.

Em mais uma ação publicitária para apoiar sua narrativa, o governo federal lança o “Placar da Vida“, que tira o foco das mortes e destaca o número de curados de Covid-19. A inversão procura demonstrar que o impacto da doença fora superestimado por seus adversários (cientistas, acadêmicos, imprensa, governadores, prefeitos, OMS, etc).

Maio: “Invisibilizar” mortes e distribuir cloroquina

No dia 7 de maio, com mais de 1.000 mortes diárias por Covid-19, a então Secretária da Cultura de Bolsonaro e atriz Regina Duarte, confirma a narrativa do chefe em uma entrevista para a TV, sugerindo que as pessoas celebrem a vida, ao invés de falar em morte.

No dia 20 de maio, com dois ministros e muitos técnicos exonerados e sem ministro nomeado, o Ministério da Saúde publicou o protocolo de tratamento de Covid-19 a pedido do presidente Bolsonaro, que incluía “orientação para prescrição e uso precoce das medicações de cloroquina e hidroxicloroquina”, apesar dos riscos comprovados e falta de evidências sobre sua eficácia. A opinião pública não reage à atuação do presidente na pandemia em maio e Bolsonaro se vê obrigado a mudar sua estratégia em junho.

Junho: “Deus, Pátria e Família” e os dados desaparecem

A partir de 5 de junho, o governo adota uma estratégia para dificultar a publicação do número de mortos pela imprensa, interrompendo a publicação e alterando os parâmetros de divulgação dos dados oficiais. No Twitter, o presidente justificou a correção como uma melhoria na precisão dos dados. As pesquisas científicas e a elaboração de políticas públicas são impactadas pela falta de transparência. A atuação arbitrária e a negligência de evidências nas tomadas de decisões do governo preocupa também outras áreas, como o meio ambiente, que padece com incêndios criminosos, desmatamento e ameaças aos povos tradicionais.

Para recuperar sua aprovação, o presidente abandona a resistência ao auxílio emergencial após longo atraso no pagamento, mas dificulta o repasse dos recursos federais aprovados e prejudica as ações dos prefeitos e governadores contra a pandemia. Nesse momento, Bolsonaro busca reforço dos seus asseclas evangélicos fundamentalistas, reafirmando o compromisso com “Deus, Pátria e Família” para aumentar a popularidade do governo.

Julho: O Presidente testa positivo, crise humanitária e ataque aos povos tradicionais

A imprensa internacional não poupou menções ao negacionismo e à forma como Bolsonaro vinha lidando com a pandemia ao informar que ele estava infectado. O presidente usa seu estado de saúde para minimizar a doença e defender sua narrativa. Ele traz consigo sempre uma caixa de cloroquina e chega a oferecer o medicamento para as emas que vivem no Palácio do Planalto. O presidente, ignorando as mais de 1.200 mortes diárias pela doença, insiste na culpa dos governadores pelas mortes e pela crise econômica, sem explicar porque o Ministério da Saúde repassou aos Estados e Municípios apenas 30% da verba aprovada e destinada ao combate à doença.

Atendendo a uma demanda judicial e por pressão de várias instituições, em 8 de julho, o governo aprova um plano de auxílio emergencial para índios, quilombolas e pescadores tradicionais, mas com vetos importantes como o acesso facilitado à água, à itens de higiene e camas hospitalares para tais comunidades.

Últimos meses: “já acabou” e anti-vacina

Durante os meses seguintes as mesmas narrativas se repetem e se reforçam. A partir de setembro somam-se a elas uma forte campanha contra as vacinas, especialmente a chamada “vacina chinesa”, e no final de outubro há manifestações públicas inclusive. Enquanto escrevemos este artigo, o Brasil vive um clima de “já acabou”, negligenciando os 5.535.605 casos de Covid-19 e 159.884 mortes, conforme mostra o Gráfico 2.

Bolsonarismo e o ataque às universidades e à pesquisa pública

Os ataques contínuos às universidades e instituições de pesquisa são parte da agenda política do governo Bolsonaro, desde o início de seu governo. O negacionismo e as narrativas construídas durante a pandemia não são novos e nem aleatórios, mas a sequência e confirmação desses objetivos.

A “nova-política” do governo Bolsonaro empenhou-se na reestruturação das universidades no combate a doutrinação e em fazer jus ao dinheiro do contribuinte. Fotos, vídeos e memes em circulação nas redes sociais [9] mostram as universidades como lugares perigosos (de balbúrdia, drogas e promiscuidade), onde os jovens seriam usados como “inocentes úteis” para defender os interesses políticos da esquerda, submetidos à doutrinação de professores comunistas. As campanhas de desinformação associadas a declarações públicas das autoridades, legitimaram cerceamento de recursos e intervenções, violando a legislação existente.

Durante a pandemia, os ataques se intensificaram com novos cortes orçamentários, nomeação de reitores pelo presidente e a aprovação de medida provisória [10] que suspendia a consulta às 10 comunidades das instituições federais de ensino durante o período da emergência de saúde pública. A prioridade dos projetos de pesquisa e as regras para concessão de bolsas também sofrem alterações, procurando atender a métricas utilitarista e imediatista de retorno dos recursos investidos. As posições do governo levam pessoas chaves nas agências de fomento à pedirem demissão, sendo substituídas por acadêmicos alinhados à agenda Bolsonarista e à teoria do design inteligente, que começa a ganhar espaço nas universidades federais.

Mais uma vez, as narrativas transcendem os atos do governo e mobilizam apoiadores para atacar trabalhadores da saúde, pesquisadores, reitores e cientistas, ameaçados dentro e fora das redes, inclusive de morte. O ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por exemplo, foi alvo de ameaças de simpatizantes quando o presidente tornou públicas as desavenças entre eles. Eventos virtuais promovidos pelas universidades também foram alvo de ataques de hackers que inviabilizavam sua continuidade.

A despeito de todos os ataques, universidades e instituições públicas de pesquisa têm desempenhado papel crucial de resistência e resiliência em meio à tragédia humanitária. Cidadãos de todas as idades, profissões e crenças, associações, movimentos sociais e organizações da sociedade civil têm organizado redes de solidariedade em torno a essas instituições, para defender a vida e a saúde em diferentes realidades.

Bolsonaro, Orbán e o ecossistema de desinformação

Os sistemas públicos de saúde, educação e previdência são desmontados sistematicamente pela desregulamentação e demolição das instituições públicas por governos de extrema-direita em todo mundo (Klein, 2008; Laval & Dardot, 2016; MacLean, 2017). Os conteúdos distribuídos pelo ecossistema de desinformação têm se apresentado como peças fundamentais para viabilizar esse desmonte, como temos observado nos casos do Brasil e Hungria. A atuação desses governos, dentro e fora das redes, demonstra a existência de um sistema articulado e meticulosamente construído com base na desinformação para deslegitimar as instituições.

O conceito de ecossistema de desinformação de Claire Wardle nos permite mapear o processo de produção e de difusão das narrativas e entender o funcionamento da máquina de propaganda dos governos Bolsonaro e Orbán, com foco na desinformação intencional, organizada e atuante em locais diferentes simultaneamente. A polarização e a deterioração da sociabilidade gerada por esse ecossistema de desinformação, transforma em inimigo aquele que não pensa como nós. Não é necessário inventar novos conflitos, apenas exacerbar os já existentes, como fazia o personagem Tullius Detritus na série de quadrinhos Asterix e Obelix, que criava um ambiente de instabilidade pela dúvida e discórdia, mobilizando sentimentos como medo e ressentimento.

Durante a pandemia, ambos os governantes radicalizam as narrativas que há muito já existiam. As universidades tornaram-se um alvo obrigatório por serem o esteio da democracia com seu pensamento crítico e lugar de debate. A desinformação invadiu o cotidiano, com sua rede complexa de atores manipulados de acordo com interesses e sentimentos. Bolsonaro e Orbán nomeiam seus inimigos – quer sejam eles OMS, imprensa, governadores ou União Europeia, indígenas ou estrangeiros – para que todos os conheçam e escolham suas batalhas em falsas oposições: “saúde versus economia”, “ciência versus negacionismo”, “governo federal versus governadores/prefeitos” e “globalismo versus nacionalismo”. Essa manipulação de medo e ansiedade fragiliza as pessoas e as leva a acreditar em curas mágicas e teorias da conspiração ou se ampararem no fundamentalismo religioso.

Este estudo fez uma contribuição para a compreensão do funcionamento da cadeia produtiva da indústria de desinformação, mas há ainda muito a ser pesquisado para que sejam compreendidos os elos dessa cadeia de propaganda e manipulação, fomentada por governos de extrema-direita e que extrapolam as redes sociais, se traduzem em atos concretos e corroem democracias pelo mundo.

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Graziela Ares, da Universidade de Coimbra, em Portugal.

Leda Maria Caira Gitahy, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil.

Gabriela Villen, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil.

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Notas

[1] Os websites linkados foram validados e estavam disponíveis em 03 de novembro de 2020.

[2] Os pesquisadores do Grupo de Estudo da Desinformação em Redes Sociais (EDReS) da Unicamp analisaram o ecossistema de desinformação a partir de mensagens de Whatsapp na pandemia.

[3] Grupo formado por Hungria, República Checa, Eslováquia e Polônia.

[4] Entre 2010 e 2018, o produto interno bruto total pela paridade do poder de compra (base 2011) cresceu de USD224 para USD276 bilhões e o desemprego total caiu de 11,2% para 3,7% respectivamente. No entanto, o índice de desenvolvimento humano ajustado para desigualdade (IHDI) variou de 0,755 para 0,77 no período. Dados obtidos em http://hdr.undp.org/en/countries/profiles/HUN em 17/10/2020.

[5] O termo narrativa é uma categoria nativa para Fábio Malini.

[6] Esse “assédio institucional” atinge massivamente os servidores públicos, causando adoecimento psicológico em decorrência de declarações e atos do governo federal (Mello et al., 2019 e Gediel e Mello, 2019).

[7] O isolamento vertical tornou-se popular em um vídeo editado com legendas em Português onde o Ministro da Defesa de Israel, Naftali Bennettque, afirmava que apenas os idosos estariam em risco. O vídeo foi publicado no início da pandemia israelense, mas circulou no Brasil quando Israel já estava em “lockdown”.

[8] Embora ainda esteja disponível nas mídias sociais, como no Facebook do Senador Flávio Bolsonaro (https://www.facebook.com/watch/?v=198469951450285).

[9] https://theintercept.com/2019/05/14/milicia-digital-bolsonarista-contra-universidades

[10] A MP 979/2020 (https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidasprovisorias/-/mpv/142445) foi 10 revogada pela MP 981/2020 (https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidasprovisorias/-/mpv/142497)

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Referências

Gediel, J. A. P., & Mello, L. E. de (Orgs.). (2019). Erosão de direitos: Reformas neoliberais e assédio institucional. Kaygangue Ltda.

Klein, N. (2008). The Shock Doctrine (1o ed). Penguin.

Laval, C., & Dardot, P. (2016). A nova razão do mundo (Estado de Sítio). Boitempo.

MacLean, N. (2017). Democracy in Chains: The Deep History of the Radical Right’s Stealth Plan for America. Penguin.

Mello, L. E. de, Caldas, J., & Gediel, J. A. P. (Orgs.). (2019). Políticas de austeridade e direitos sociais. Kaygangue Ltda.