A música brasileira é pagã, imoral, idólatra, esquerdista, degenerada ou coisa parecida? Imagino como reagiria o ministro da Educação, Milton Ribeiro, um presbiteriano dos bons, da linha reacionária, acusado de homofóbico, se escutasse ou visse pelo youtube o Johnny Hooker, interpretando Flutua ou, na mesma linha, A Gente Junto, com Ana Vitória.
Se pudesse, no mínimo tiraria do ar, do som, da imagem e do mercado.
Agora, qual seria a reação dos líderes evangélicos, Silas Malafaia, que berrava querer um ministro tremendamente de direita (em outras palavras de extrema-direita ou neo-nazifascista) e do Edir Macedo, diante das sem-vergonhices, quando não esquerdices, cantadas e mostradas nos clips de música brasileira dos novos compositores, da nova safra em formação?
Por essas e outras, a direção dos evangélicos tem um objetivo — transformar a música popular brasileira, MPB, pagã e pecadora, em GLD, ou gospel de louvores a Deus.
Composições para serem cantadas em festinhas de aniversários, noivados e casamentos, sem agarrações e beijações, como mandam a Bíblia e as atuais autoridades sanitárias para nos proteger do coronavírus.
Só se… Só se a reconversão do presidente Bolsonaro ao Centrão repercutir mal na expansão do evangelismo que, há alguns meses, se previa como capaz de ultrapassar, os 50% da população brasileira.
Porém, na hipótese de prosseguir a evangelização brasileira, nos moldes norte americanos, não serão mais possíveis, por ofenderem a Deus, os grandes sucessos carnavalescos populares irreverentes como o capcioso Mamãe eu quero mamar, cantado por Carmen Miranda, em 1950, e o irreverente Eva me leva pro paraíso agora, de Haroldo Lobo, desrespeitoso com a história bíblica de Eva no Paraíso. Esses dois sucessos seriam colocados no index, e ficaríamos com aquela dúvida — se Deus existisse seria um cara sério demais, sem jogo de cintura?
Seria assim, tipo tristeza não tem fim? Como dizia Vinicius de Moraes, a felicidade do pobre parece a grande ilusão do Carnaval. Mesmo assim, A Felicidade, esse grande poema seria condenado ao ostracismo por não falar no amor de Deus e pecar por citar o Carnaval.
Nessa destruição iconoclasta da nossa cultura musical, não escapariam nem aqueles versos poéticos pungentes do Humberto Teixeira “quando a lama virou pedra e mandacarú secou”, contando o drama dos retirantes da seca nordestina, na voz do Luiz Gonzaga. Assim como Asa Branca.
Muito menos as canções da boemia, como a do apaixonado pela mulher do cabaré, Quem há de dizer, cantada pelo Rei da Voz, como era conhecido Chico Alves.
Mas a música popular brasileira, tem sido de resistência — Chico Buarque com Construção, Geraldo Vandré com Disparada, Gilberto Gil com Domingo no Parque, Caetano Veloso cantando Alegria, Alegria. Com uma pausa romântica de Roberto Carlos, da Jovem Guarda, cantando Calhambeque em plena ditadura militar.
E há as músicas da bossa nova, como Chega de Saudade, de João Gilberto; e Garota de Ipanema, de Tom Jobim. Existem ainda as canções bregas, a música sertaneja, Tom Jobim, Jair Rodrigues, Nara Leão, Elis Regina, Raul Seixas, Marisa Monte, a Legião Urbana com Que País é Este; Cazuza e tantos outros cantores, compositores, condenados ao ostracismo musical para dar lugar aos gospels.
Será mesmo? Não acredito! A inspiração brasileira é mais forte e mais livre.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.