Pior do que conflitos e confrontos, a rápida e generalizada gelatinização da conjuntura, torna tudo igualmente grudento, frouxo, mole. Ânimo, vida cotidiana, impasse político, recessão, inflação, ajuste fiscal, governo, oposições, direita, esquerda, instituições, tudo desanda e escorre, inconsistente, viscoso.
Desta incrível e apavorante ficção-cientifica não escapa a própria narradora — a imprensa — a partir da equivocada opção por aderências e pastosas homogeneizações. Mirrada, emaciada, estafada, a sobra da velha e brava testemunha da nossa história, abriu mão da sua função referencial.
Gelatiniza-se até mesmo a ameaça de impeachment da presidente da República — agora duplicada pela ostensiva tabelinha Dilma-Lula, assessorada por um terceiro ator, o vice Michel Temer, que não chega a ser um paradigma de consistência. O acúmulo de presidentes só pode produzir geleias, alguém deveria ter reparado nisso em 2010.
Sólida, por isso transparente, a única que resiste ao desmanche e fluidificação, é a ex-candidata à presidente da República, Marina Silva, justamente a mais visada e desconstruída pelos estrategistas da principal adversária em 2014, a candidata à reeleição, Dilma Roussef.
A constatação é imperiosa: o que nos aflige hoje é fruto direto de uma das mais virulentas e desumanizadas campanhas eleitorais desde a República Velha. Assim diagnosticada, a atual gosma tem uma única terapia comprovada: firmeza, caráter. Sem os quais não se produzem transformações.
Escombros são fáceis de reunir, cimentar e reaproveitar. No caso de gelatinas agressivas e venenosas – como a que penetra nas rachaduras da sociedade brasileira — o processo exige mais intensidade, principalmente mais humanização. Lideranças.
A presidente Dilma ainda não se personalizou, ainda é um cargo, função, peça política, objeto do calendário eleitoral. Já chorou em público, já brincou, já fechou a cara, sabe-se que dá murros na mesa, esbraveja, tem simpatias, antipatias – inúmeras — nada disso isso tem sido capaz de deter e alterar substancialmente a atual maré de viscosidade que contamina e sequestra a condição humana da nossa tragédia política. Dai a dramática semelhança entre todos os atores e figurantes convertidos em marionetes ou, no melhor dos casos, robôs, indiferenciados.
Enquanto a atual situação for encarada com o timing, o marketing e os padrões morais até agora utilizados nas corridas eleitorais a gelatinização tóxica só tenderá a avolumar-se. O equacionamento de nossas aflições nada tem a ver com urnas e mandatos. O desespero das legiões de desempregados, enganados e desesperançados não será mitigado pelo troca-troca de ministros, pelo encerramento de oito pastas ou corte de 10% nos salários do primeiro escalão.
Todos indistintamente querem saber o que deu errado. Nossa democracia deu certo, o que falhou foi a escolha do processo de escolha, viciado por aberrações visceralmente antidemocráticas. Algum ser humano – e não ocupante de cargo — precisa ter a coragem para dizê-lo com clareza e convicção. Nossa experiência com o monarquismo presidencialista (ou presidencialismo monárquico) está definitivamente esgotada. Fez mal à esquerda, ao centro, à direita, sobretudo comprometeu a representatividade do sistema.
As crises econômica, política e institucional podem ser encaminhadas com razoável velocidade, as ameaças de impeachment podem ser desativadas sem arranhar as leis, desde que acompanhadas pela implementação de uma reforma estrutural capaz de garantir uma democracia mais sólida, menos vulnerável à corrupção, à volúpia do poder e à asquerosa gelatina que nos impede de enxergar caminhos e saídas.
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Alberto Dines é jornalista, escritor e fundador do Observatório da Imprensa