Será que o povo pobre francês passou a detestar seu presidente Emmanuel Macron? É provável, e nesse caso é quase impossível uma reversão. Dois dias depois de sua mea culpa, só uma minoria dos manifestantes decidiu tirar seu colete amarelo, deixar de ir às barragens de veículos nas estradas, enquanto os restantes prometem um Ato 5, no drama pobres contra governo, cuja cena principal continuarão sendo as ruas ricas de Paris.
As novas tecnologias com suas redes sociais aceleraram o processo de desmonte ou de descredibilização das personalidades públicas, tanto quanto ajudam na criação de mitos. Marshall McLuhan tinha revolucionado, nos anos 60, a compreensão da penetração do discurso político com apenas uma frase — “o meio é a mensagem” — e as comparações decorrentes entre a força de uma mensagem pelo rádio ou televisão. Naquela época, não havia Internet.
Seguindo na mesma lógica, do meio é a mensagem, poderíamos concluir pela força convincente dos recados, vídeos, áudios, muitos deles fake news, transmitindo mensagens religiosas entorpecentes, conformistas, destruindo ou criando figuras políticas? Sem dúvida.
E não se pode ignorar ter funcionado, paralelamente ao descontentamento popular, um bombardeio de Macron pela redes sociais. O mais conhecido, editado pela extrema direita, era um fake news baseado numa notícia verdadeira – o Pacto de Marraqueche, assinado pela maioria dos países da ONU, na segunda-feira, na capital do Marrocos. Torcendo os objetivos do pacto internacional sobre migrações, o fake news anunciava uma invasão da França por 400 mil imigrantes, autorizada por Macron.
Sem precisarmos ir até a França, podemos lembrar o primeiro grande uso das redes sociais e de fake news, nas eleições brasileiras de 2014, quando a candidata Marina Silva foi pulverizada, vítima de mentiras bem manipuladas. O crescimento discreto dos evangélicos nas populações pobres brasileiras, além da utilização de programas em canais de rádios de televisões, deveu-se também à criação de spots circulando pela Internet, explorando a ignorância, a crendice e a sentimentalidade do povo em termos de amor, amizade, família, tudo centrado em Deus e Jesus.
Antes da interpretação das comunicações político-religiosas que infestam as redes sociais brasileiras destinadas aos celulares e computadores, seria importante sabermos a origem, de que estúdios criadores partem esses áudios e vídeos profissionalmente bem feitos. Eles se enquadram na visão de Georges Orwell de um mundo controlado, pois essas mensagens cafonas ao gosto brasileiro, são destinadas a dominarem o pensamento e condicionarem o comportamento das pessoas ao conformismo religioso.
Fechando nossa referência ao Brasil, onde as redes sociais favoreceram numa primeira etapa o PT, fica a constatação de que tais redes foram depois melhoradas com a participação de interesses econômicos e estrangeiros, e passaram a disseminar as seitas evangélicas acopladas com o nacionalismo e o extremismo da direita até criarem o mito Bolsonaro. O principal a destacar é uma diminuição da margem de escolha e liberdade das pessoas, induzidas a adotarem padrões de vida fazerem escolhas políticas sob manipulação.E isso não só no Brasil.
Depois desse parênteses, voltamos a Macron, cuja juventude, origem burguesa e uma eleição favorecida pelo bloqueio dos partidos políticos de esquerda, direita e verdes contra a extrema direita de Marine Le Pen, não lhe favoreceram ter uma imagem de líder populista, ao gosto dos tempos de hoje. Embora eleito com 62% dos votos, mais da metade desses votos provinham da frente unida contra Le Pen.
Em síntese, Macron não tem base popular, e uma caricatura sua publicada pelo jornal suíço, Le Temps, mostra o presidente francês como uma Maria Antonieta, intrigada pelo descontentamento popular, perguntando – “será que teremos de baixar o preço da brioche?” (o bolinho francês traduzido como o popular croissant pelos vulgarizadores da revolução francesa. Maria Antonieta, antes de ter a cabeça decepada na guilhotina, ao ser informada de que o povo estava revoltado por não ter dinheiro para comprar pão, retorquiu – “ué, mas porque não comem brioche (ou croissant)?”.
É claro, os caricaturistas exageram, Emmanuel Macron mostrou nos 15 minutos de mensagem para o povo, estar a par da miséria francesa vivida por um terço da população entre trabalhadores e aposentados. Aumentou o salário mínimo de cem francos, anulou um imposto sobre a aposentadoria para quem ganha menos de dois mil francos, acabou com o imposto de renda sobre horas extras, e pediu para os patrões concederem um extra de Natal para seus empregados. A isso se ajunta a supressão dos impostos sobre combustível que repercutiam sobre o preço da gasolina e diesel. O mea culpa incluiu uma certa humildade diante do povo sofrido da França.
Os coletes amarelos vão aceitar? Alguns sim, a maioria não. Macron terá de fazer um remanejamento ministerial, voltar aos impostos sobre as fortunas, que continua protegendo? Haverá novas manifestações no sábado em Paris, talvez sim, porém a polícia poderá ser mais severa. Haverá uma reconciliação entre o povo e Macron? Ou será o divórcio com consequências graves para a França? Difícil prever, porque Macron conseguiu se tornar também antipático e isso é difícil de se consertar.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.