Se você é da minha geração sabe o que estou dizendo. O medo impregnou o Brasil entre 1964 e 1985 quando o golpe nos pegou de surpresa, fechou o Congresso, cassou políticos, perseguiu, deu sumiço, exilou, torturou, matou adversários. “Chame o ladrão, chame o ladrão”: na música de Chico Buarque, é o que pede à mulher o camarada que avista a polícia chegando, invertendo a ordem das coisas. O ladrão seria mais confiável: “Acorda, amor/Eu tive um pesadelo agora/Sonhei que tinha gente lá fora/Batendo no portão, que aflição/Era a dura, muito escura viatura/Minha nossa santa criatura/Chame, chame, chame lá/Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”.
Em outra estrofe avisa em linguagem truncada que “se eu demorar uns meses, convém, às vezes, você sofrer/Mas depois de um ano eu não vindo/Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”. Na roupa de domingo a mulher iria rezar na Igreja porque o marido estaria ou desaparecido ou “suicidado”.
Chico assinou “Acorda, Amor” em 1974 junto com Leonel Paiva, mas usou o pseudônimo Julinho da Adelaide e driblou a censura que não percebeu o jogo duplo da música.
E por que o general Mourão dá menos medo do que o capitão? Não há indícios de que Mourão (ou o Exército Brasileiro) tenha intenção de dar um golpe, como Bolsonaro ameaçou várias vezes. O general tem apagado incêndios colocando-se à frente do chanceler Ernesto Araújo e do ministro Ricardo Salles em vários imbróglios, como aconteceu na Venezuela entre Nicolás Maduro e Juan Guaidó, e na questão amazônica. Acaba de convidar civilizadamente Leonardo di Caprio a conhecer a floresta de perto depois que o ator criticou a Amazônia. Está cotado para cabo eleitoral do seu partido, PRTB, nas eleições.
Enquanto o presidente responde a um repórter do Globo “a vontade é encher a tua boca com porrada, tá” ao ouvir a pergunta sobre os depósitos feitos pelo ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz à Michelle, o vice-presidente faz uma live com a imprensa estrangeira. Enfrenta, responde, não simula cinismo, desrespeito ou falta de educação. Tem sua pauta e convicções que nem sempre são as que conhecemos mas o general acredita no que diz.
Mourão acredita num governo fictício. Ou está falando sozinho, ou enxerga e prevê um Brasil diferente do nosso. Certamente diferente daquele que Bolsonaro governa há um ano e meio.
Militares foram o Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill e o general de Gaulle que, usando a força aliada à razão, venceram o indomável Adolf Hitler na Segunda Guerra. Para recuperar o orgulho nos militares valer ler Churchill – Caminhando com o Destino, Andrew Roberts, Cia das Letras, e Charles de Gaulle, Julian Jackson, Zahar, recém lançados.
O capitão Bolsonaro não estimula apreço à farda quando deixa rolar sob seu comando um relatório com 600 nomes de antifascistas com consequências nefastas, afinal travado como arapongagem pela ministra Cármen Lúcia do STF.
Sem qualquer restrição a não ser que todos os correspondentes se vestissem adequadamente e fossem pontuais, o vice-presidente concedeu esta entrevista. Em pauta vários entraves: A NASA, agência espacial dos Estados Unidos, aponta 54% das queimadas da Amazônia como consequência direta do desmatamento. Os estudos revelam que a pandemia chegou às aldeias e os indígenas, sem memória imunológica, morrem em 24 horas, o Covid matando dois por dia. Angela Merkel não quer acordos com o Mercosul por causa das queimadas. Os donos do dinheiro não abrem a bolsa se as empresas não operarem com sustentabilidade e a Amazônia não retomar as fiscalizações canceladas.
Mas não é esse Brasil que o general quer veicular lá fora.
Ao Observatório da Imprensa o vice-presidente, que também preside o Conselho Nacional da Amazônia, respondeu sobre o termo “genocídio” aplicado ao extermínio dos indígenas. Não teria sido essa a intenção do governo ao publicar 195 atos para simplificar as regras de fiscalização nas reservas de olho na maior jazida de nióbio do mundo e nos minérios do subsolo dessas terras?:
“Nem indígenas nem quilombolas podem ser expulsos de suas terras. A Amazônia tem mais de 1,2 milhões de km de terras demarcadas para 750 mil indígenas. Inclusive eles exploram esse material, como os Cinta Larga com os diamantes em Roosevelt, Rondônia”
Segundo o ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, almirante de esquadra, respondendo ao Observatório em outra entrevista, os indígenas não serão removidos porque é um direito constitucional. Mas estão exercendo atividade ilegal ao explorar o subsolo. De acordo com a Constituição, os povos indígenas têm direito apenas ao uso do solo, o subsolo pertence à União. “É uma atividade ilegal que aumentou muito, inclusive em relação ao ouro. Estamos combatendo o crime mas a última palavra cabe ao Congresso”, insistiu Bento Albuquerque, sem deixar claro as consequências para os povos indígenas.
O vice-presidente não vai tão longe. Mas contesta o termo “genocídio” aplicado pelo ministro Gilmar Mendes.
“Falar em genocídio é um absurdo. Genocídio é empregado para Hitler em relação aos judeus, aos turcos no massacre dos armênios, a Ruanda nos anos 90, a Stalin oprimindo as populações minoritárias. Nós? Temos feito todo esforço para impedir o Covid.”
Mourão não concorda com o desleixo do governo nem com a morte de indígenas, coloca a culpa nas dimensões do país que dificulta o combate à pandemia. E discorda que o país não esteja comprometido em combater as queimadas. Fala em “nós” sem explicar se o plural majestático incluiria o ministro das boiadas, Ricardo Salles. Para ele, os fatos negativos ficam por conta da mudança de rumo político do Brasil.
“Durante 24 anos o país foi governado pela centro-esquerda, agora, somos centro-direita. Então cai tudo na conta do governo. Não somos um agrupamento de hunos. O presidente é comparável ao Átila Huno e a crítica é sempre a mesma, de que a Amazônia não cumpre normas. Os fatos são interpretados de acordo com a concepção política.”
Ele afirma, “é um pacto da nossa geração respeitar a capacidade de recursos naturais, esse o grande tema geopolítico do século XXI. Brasil não é o vilão no quesito meio ambiente. Temos mais de 60% de cobertura vegetal do país intactas e a Amazônia é a última fronteira intocada do século XXI. Tem de ser preservada”.
E insiste, sem explicar novamente o plural: “Temos de cumprir nossa parte da legislação dentro do bioma Amazônia”.
Ricardo Salles?
“O ministro tem uma visão de quesito ambiental ligada à parte econômica, quer recursos que paguem pela manutenção da floresta em pé. Claro que isso incomoda os ambientalistas e Salles está sendo transformado em vilão. Os desmatamentos estão diminuindo, mas já herdamos muito estrago, vamos ter de recuperar”.
Reconhece, “é claro que começamos atrasados.”
Para Mourão, tanto faz se Trump ou Biden, Cristina ou Fernandez estejam no poder. “Os Estados Unidos são aliados históricos, a Argentina é nossa parceira fundamental”.
E sobre o número excessivo de 6.150 militares no poder, Mourão considera uma desinformação.
“São necessários. A maioria está no INSS para fazer análises dos processos de aposentadoria, 2.200 respondem pela Defesa e Segurança Institucional”.
A Defesa, ele explica, empenhada no cuidado com as agressões externas. Mas o problema potencial se concentra num único país: “Venezuela”.
Já ouvi de colegas a surpresa por um vice de Bolsonaro se expressar com clareza, objetividade e português sem palavras chulas. Se concorda com o Brasil que ele acredita ou não é outro problema, mas a diferença faz parte da democracia.
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Norma Couri é jornalista e diretora da Comissão Mulher & Diversidade da ABI.