Tuesday, 17 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O jornalismo no fim da Nova República

*Antes de qualquer coisa: este não é um texto em defesa de Lula, tampouco pretende discutir aspectos de sua condenação ou seu encarceramento. É apenas um pequeno registro para entender o 7 de abril que nós, profissionais da imprensa, temos de usar para reafirmar a importância de nossa profissão, discutir trajetos e revisar estratégias.

Comemoro meu décimo segundo dia do jornalista. Começo a contá-los pelo ano de 2006, quando, já na faculdade, tive minha primeira experiência na área. Desde lá, mudei de cidade, passei por diferentes áreas e, com o tempo, veio uma vontade maluca de estar do outro lado da sala. Resultado: faz uns três anos e meio, sou professor. Preparo alunos para as redações e tento — como milhões de outros — fazê-los olhar para sua própria identidade profissional de forma menos maniqueísta, enxergando contradições, problemas, coisas a superar; problemas a resolver, individual e coletivamente, que se confundem com nossas próprias vidas e com o que idealizamos para nosso lugar no mundo.

Esse exercício problematizador deveria ser um processo permanente. Não se trata, e é sempre preciso afinar o discurso, de desmistificar o ideário da profissão por completo, e sim reconhecê-lo como parte dos dilemas com que lidamos. Significa entender que é preciso atualizá-lo para transformar um mundo de fronteiras cada vez maiores, muros cada vez mais altos e ruídos cada vez mais perigosos. Jornalismo 100% neutro, imparcial, objetivo? Especularidade, pureza total? Isenção plena? Watchdog, informação pela informação, vigilância pela vigilância? Não, precisamos de bem mais que isso.

Mais do que na época do publicismo ou da segunda Revolução Industrial, ter princípios e saber defendê-los é fundamental — e isso atravessa, sim, como nos enxergamos no mundo e como exercemos nossas atividades. Como nos manifestamos num mundo dominado — em todos os sentidos — pelos artifícios da linguagem, ela própria um lugar de luta pela cidadania.

Tudo isso é para pensar no lugar em que nós, jornalistas, estamos no Brasil. Vivemos tempos tenebrosos para a nossa democracia, em uma fase que — de modo incisivo, mas legítimo — muitos, inclusive eu, chamamos de a queda da Nova República, um processo iniciado dois anos atrás com o controversíssimo impeachment da presidente Dilma Rousseff. E somos, todos nós, obrigados a superar as contradições da imprensa e julgar sua participação no que houve nos últimos anos: tomar posição e defendê-la sem abrir mão do pluralismo, da legalidade, do espírito crítico e da defesa irrestrita do caráter formativo da comunicação jornalística.

Manifestantes a favor e contra a prisão do ex-presidente Lula, protestam na porta da sede da superintendência da policia federal no Paraná. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Hoje, o líder político mais popular da história recente desse país tenta, enquanto escrevo este texto, sair da sede do Sindicato dos Metalúrgicos, a uns 12 km da minha casa, para se entregar à Polícia Federal. Ele foi condenado em processo amplamente divulgado, recorreu em diversas instâncias, perdeu e, quando você ler este texto, estará entregue às autoridades. Vai, ao menos temporariamente, para trás das grades. Recebi uma mensagem da minha esposa hoje cedo, avisando que Lula iria finalmente falar. Parei o que estava fazendo, embora um tanto cansado dos dois dias inteiramente dedicados a acompanhar essa história. Ouvi seu discurso e, não necessariamente por ele, mas por tudo e todos nós, fiquei profundamente triste e incomodado.

Lula, até as bactérias anaeróbias sabem, é extremamente sagaz com as palavras – tanto que fez um discurso repleto de clichês e agressões à atuação dos nossos colegas de imprensa, mas não me senti ofendido, e sim provocado. Mas, já disse, não é de Lula que este texto trata. Com frases que desceram arranhando, nosso mais conhecido político brasileiro soltou umas bordoadas que nos permitem refletir, cuidadosa e demoradamente, sobre o atual lugar do jornalismo em uma sociedade fraturada.

O que as revistas nos dizem – e como reagimos

Aqui, uma breve pausa para lembrar das revistas que mais admirava quando escolhi a profissão. A primeira, a Superinteressante, continua sendo muito querida – meus alunos de disciplinas práticas bem sabem disso. A segunda era Veja, e em nada isso me envergonha. Gostava das colunas do Diogo Mainardi, das críticas da Isabela Boscov; das reportagens que fingiam relevar o que estava à sombra, num famoso e amplamente estudado (Muniz Sodré vem à mente na hora) processo de mascaramento ideológico. Mentalizava o processo de produção daquele negócio e me imaginava, de algum modo, mergulhado nele, rasgando o tecido que separa o espaço público de pequenos grandes desmandos.

O tempo, claro, se encarregou de pôr em crise minha cabeça. Já tive posições diferentes das de hoje — apenas recentemente votei em partidos de esquerda, e meu primeiro voto no PT foi em Fernando Haddad, em 2016, para a prefeitura da cidade em que moro. Venho de uma família tradicionalmente alinhada a partidos de direita. São coisas das quais não me desvencilho, e minha relativa oscilação entre a centro-esquerda e a esquerda hoje são reflexos desse — sempre incompleto — processo de maturação de ideias. Reconheço, porém, que a esquerda é protagonista de nossa história pós-Ditadura e que sou filho dessa época, junto de meus colegas e amigos mais próximos. Hoje, leio Veja para poder criticá-la. Sempre recomendo aos alunos que o façam, embora ela seja, em muitas ocasiões, um exemplo do tipo de imprensa que precisamos combater. Mas enfim, bola para a frente…

O que se diz da imprensa – e como a sociedade nos vê

Voltemos a Lula, que toma Veja como objeto empírico para onde direcionar toda a sua raiva à imprensa e ao tratamento por ela dado, regra geral, às várias esquerdas. Ele está certo? Sim, embora não o expresse da melhor forma. Veja, como a Época, como a revista ISTOÉ, como o Estadão, como a Folha de S.Paulo — um jornal incrível em que trabalhei por dois anos —, como a TV Globo e como todas as marcas e organizações jornalísticas, comete erros ao confundir ponto de vista e opinião, ao aliar-se a forças que não compreende plenamente e ao repetir erros históricos, movendo imaginários como quem estivesse fazendo coisa banal. E, o pior de tudo, com o bom e velho artifício do discurso iluminista de tirar as coisas das sombras, quando no fundo a elas servem. A imprensa, é bem sabido, falha ao transitar pelos corredores do poder sem tomar cuidado com a direção para onde olha, com as mãos que aperta e com as forças que incentiva por meio de seus processos de linguagem.

A questão central disso tudo é que — a despeito do monstruoso volume de informação circulante — nós, jornalistas, nunca fomos tão desacreditados, tão atacados e alvo de tanta desconfiança desde que me entendo por gente. Já vivi vários desses momentos; horas em que, ao ouvir gente de todo espectro ideológico e todo nível de proximidade dizer que a imprensa só mente, é vendida e distorce, me senti desrespeitado ou provocado, como se minha profissão fosse causa e não meio de denúncia dos problemas que hoje vivemos. Como se meus alunos estivessem indo abraçar o capeta ao pegar seus diplomas. Da ofensa, pouco a pouco, parti para a autocrítica.

O discurso de Lula, hoje, causou essa mesma inquietação. Fato é: o que dizem de nós é o que nós, em certa medida, fazemos ou deixamos de fazer. Precisamos falar sobre isso. Há alguma razão nessa descrença geral quanto ao jornalismo — a mesma que afeta, por sinal, as mais diversas instituições, do judiciário às entidades de defesa dos direitos humanos. Dê uma volta pelos grupos de WhatsApp em que foi involuntariamente incluído, pelas seções de comentários de sites noticiosos e pelos espaços públicos — praças, metrôs, ônibus, escritórios — e saberá do que se está falando.

A sala de aula é como as ruas: um lugar fenomenal para se notar esses humores sociais quanto à imprensa. Os jovens, futuros comunicadores, vivem, material e simbolicamente, a crise de nossa área. Alguns já estão descrentes antes do primeiro emprego. Sabem, e cabe a nós reforçar isso, que se trata de uma transição, um ciclo do qual estamos saindo (em termos econômico-financeiros – assunto à parte) ou pelo menos que devemos enfrentar com coragem (em termos ideológicos). Mas querem, com razão, respostas que cabe à classe prover, para que possam — como a sociedade inteira — acreditar e dar valor ao jornalismo.

O lugar que precisamos retomar

A chuva de informação pobre de valor, falsa, distorcida, incompleta, contaminada e deturpada; a polarização, alimentada dia após dia pelo uso inadequado dos diversos meios de comunicação; a espetacularização do processo político e sua contaminação pelos humores sociais; o infocalypse, em suma, como um cara chamado Aviv Ovadya denominou a entropia moderna da sociedade da informação, gerada por seus próprios processos. Tudo isso manifesta a perda de valor de nossa matéria-prima: a informação precisa e qualificada. Um processo que só cabe a nós reverter, provando que o jornalismo existe, é mais importante do que nunca e vale a pena como profissão e meio de acesso a narrativas do mundo.

Para virar o jogo, não devemos — não podemos — nos apegar ao ideário das luzes do século XIX; os processos mais complexos que vivemos, o modo com que as pessoas trocam ideias e formam opiniões, a velocidade com que lidamos todos os dias, os entraves econômicos, tudo isso deve ser levado em conta. Muito do que temos vivido, apesar dos retrocessos, pode nos ajudar a construir algo novo. E esse novo não me faz pensar em outra coisa que não o jornalismo aprofundado, interpretativo, distante da informação pura. Engajado, cívico, desprendido da pressão presentista pós-moderna e da pretensão de transparência — que, hoje, só servem à construção de fake news, farsa, espetáculo e ruído.

O jornalismo de que precisamos deve ter posição e se reconhecer, como outros campos do discurso, como lugar de disputa, exercício de poder e construção diária da cidadania. Deve revelar sua opacidade, sua contradição existencial de falar de processos sempre correntes e maiores que si. Deve, acima de tudo, apostar suas energias na democracia, essa força que demoramos tanto a consolidar e que é permanentemente posta sob ameaça, por aqui e pelo mundo. Talvez seja ela o único conceito do século XIX que ainda caia bem.

Se assumimos tal perspectiva, a estratégia a ser adotada para sermos relevantes, confiáveis e respeitados também precisa ser outra.

A história da imprensa nos ensina que, dum primeiro momento focado na formação de opiniões em pequena escala, passou-se a uma era de conteúdo produzido em escala industrial, marcada pela ênfase declaratória e pelos artifícios deontológicos da profissão – neutralidade, isenção, transparência e por aí vai. No século XX, a dominância cedida para o live, a ininterrupção e a onipresença fez a tônica dos vários jornalismos em vídeo, em som e multimeios. Basicamente um jornalismo pautado pela visão.

Esses jornalismos, arrisco dizer, não são mais o que transforma, tampouco o que move o mundo: são o que está em nossos gadgets e nos acompanha, como registro breve, frágil e de baixo valor agregado do presente. É a ele que assisto agora, em segundo plano, enquanto escrevo, com os canais de notícias 24 horas exibindo o comboio policial que leva Lula ao Aeroporto de Congonhas, enquanto fogos estouram e gente ensandecida grita nas ruas do meu bairro. Eles acham que democracia é ver uma prisão ao vivo por drones.

O lado em que precisamos estar

Esse jornalismo, caros colegas, é aquele de que precisamos para tirar da lama um país fraturado, cheio de forças em colisão frontal, com pessoas desorientadas, histéricas e surdas, descrente com sua própria capacidade de operar como coletividade? É ele que nos ajuda a entender os meandros da condenação de Lula ou os riscos de abraçarmos candidatos alinhados ao fascismo? É ele que nos ajudará a avaliar melhor as opções, repensar as bases do processo político e — acima de tudo — assegurar eleições livres, plurais e com participação popular em todos os espectros ideológicos? Não.

Esse jornalismo que mostra, ao qual estamos habituados, não serve para formar. O jornalismo que se diz neutro confunde, amansa consciências e não leva a lugar nenhum; no máximo, faz o leitor sobreviver e chegar vivo ao fim do dia, imerso em seu mundinho de ideias pré-moldadas e confiante em sua experiência apequenada.

Precisamos de comunicadores que expliquem, que interpretem, que repensem, que não se restrinjam a reproduzir aspas e jogar o caos discursivo atual na cara das audiências. Acima de tudo, é preciso que sejamos excelentes narradores e — como dito lá no começo — reforcemos o caráter formativo da comunicação, assumindo um lugar social que é nosso e de mais ninguém, sem ter vergonha de parecer pretensioso. O que se chamou anteriormente de jornalismo interpretativo parece uma saída possível – não como nicho, conforme as teorias do século passado, mas como modus operandi obrigatório.

O jornalismo a que precisamos nos apegar não tem mais como ficar em cima do muro. Nosso lado é o da defesa irrestrita, sem relativizações e com tudo o que há aí dentro, da democracia. Que cada um tire, a partir daí, suas próprias conclusões do que isso significa em um 7 de abril como esse, em que tristeza e euforia profundas tomam conta de pessoas diferentes em seus princípios e valores pelos quatro cantos do Brasil.

Democracia: palavra bonita e a mais importante a que devemos nos apegar. A História dirá se cumprimos com nossa obrigação e dela fizemos parte — ou se apenas ajudamos leitores a chegar ao dia seguinte.

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José Augusto Mendes Lobato é jornalista e professor universitário, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (PPGCOM-USP), mestre em Comunicação pela Cásper Líbero.