Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O País dos machos, dos capitães e da guerra

Pouco depois de exaltar o machismo dos agricultores ao enfrentar o vírus — “vocês não pararam, não entraram na conversinha mole de ‘fica em casa’. Isso é para os fracos”, o presidente viu sua aprovação subir de 29 para 40% nas pesquisas mês passado. E foi em frente devastando o país para melhorar sua imagem pelo avesso.

A Casa de Rui Barbosa, centro importante de produção de cultura que está sendo desmontado, acaba de ser brindada com um novo diretor-executivo, o capitão de Mar e Guerra, Carlos Fernando Corbage Rabello.

Na Agência Nacional de Cinema (Ancine), congelada nos últimos tempos, o superintendente de Prestação de Contas é o capitão de Mar e Guerra, Eduardo Andrade Cavalcanti de Albuquerque.

O secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, que tem a Lei Rouanet nas suas mãos, é o capitão da Polícia Militar da Bahia, André Porciúncula Alay Esteves, fã de Olavo de Carvalho e de Carlos Bolsonaro, que faz coro aos colegas com um discurso de “guerra cultural”.

O ponto alto da contratação do coronel do Exército, Lamartine Barbosa Holanda, para estar à frente da Fundação Nacional das Artes (Funarte), foi ter assinado um vídeo da indústria de material bélico nacional. Lamartine prometeu um ciclo militar na Cinemateca Brasileira, que tem o maior acervo audiovisual da América do Sul, e apresenta como credencial o roteiro de um filme de ações militares do Exército com a introdução “O inimaginável aconteceu. O terror. A guerra. Prepare-se. O Brasil acima de tudo”.

Por ter sido operador “de Guerra Eletrônica” entre 1988 e 1994, o militar de reserva Eduardo Zaratz, especialista em defesa aérea, tornou-se diretor do Departamento de Promoções da Diversidade Cultural da Secretaria Nacional de Economia Criativa. Vai decidir as políticas para grupos LGBT+, atacadíssimos pelo governo dos machos que não pegam vírus e se pegarem é o vírus que sai correndo, cloroquina nele.

Nossa inacreditável ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em pleno século XXI,  recebeu, sem edital de concorrência, R$ 240 mil para o programa beneficente AMBT (Associação de Missões Transculturais Brasileiras, em cujo endereço consta um restaurante). O mimo veio das mãos de Michelle Bolsonaro, mais conhecida pela música dos Detonautas, “Micheque”, que o governo tenta censurar (“Hey Micheque, conta aqui prá nós, a grana que entrou na sua conta é do Queiroz?”). Michelle preside o programa Pátria Voluntária, que recebeu da Secretaria de Comunicação da Presidência os R$ 7,5 milhões que haviam sido doados pelo frigorífico Marfrig especificamente para a Secretaria de Saúde comprar 100 mil testes rápidos da Covid-19.

É ou não é coisa de macho “passar a boiada” diante da população incauta pela dor da doença? “Tudo o que a gente faz em termos de bom senso, equilíbrio e racionalidade eles rotulam como desrespeito ao meio ambiente”, queixou-se o Ricardo Salles pela decisão de anular os editais de proteção das restingas e manguezais. Para o ministro do meio ambiente deve parecer sensato, equilibrado e racional os 18.259 focos de incêndio do Pantanal de janeiro a setembro deste ano, maior registro da sua história, e o segundo pior setembro em queimadas na Amazônia: 32.017 focos de calor, aumento de 60% em relação a setembro passado. Mas segundo o governo “é a menor área queimada dos últimos 18 anos”.

E que atitude mais corajosa do que destituir os indígenas de sua própria terra, com violência de macho mais do que dobrada no ano passado? Com a desculpa de Salles aprendidas de John Wayne em westerns da nossa história, “vamos fazer com que o índio se integre à sociedade”. A continuação da frase seria “para tomarmos suas terras, plantarmos soja à vontade e explorarmos o riquíssimo solo em diamantes e minérios”.

Na Amazônia, o governo transferiu o comando das operações contra o desmate aos militares, que não podem fazer autuações. Criou um grupo de trabalho formado por cinco PMs e dois técnicos que farão a fusão do IBAMA com o ICMBio, extinguindo os dois. O primeiro cuidava da fiscalização e licenciamento, o segundo de 334 unidades protegidas. “O IBAMA não atrapalha mais… Servia, com todo respeito, para multar os caras, mais nada”, Bolsonaro, o macho, se vangloriava — da fusão. E para calar a boca dos ambientalistas internacionais, vai unir o Ministério do Meio Ambiente ao da Agricultura, mas a coordenação da política ambiental fica com o vice, Hamilton Mourão — dizem as más línguas, para ser queimado junto com a floresta.

A agenda populista avança. Para sua Renda Cidadã que é a Renda Bolsonaro, a renda dos votos de ouro nordestinos, Bolsonaro quer arrancar dinheiro tanto quanto Salles arranca grama. Quer furar o teto de gastos aconselhado pelos seus novos soldados no Congresso, mas não consegue, tem Paulo Guedes no meio. O desemprego a 13,8% já é o maior em 25 anos. Não conseguiu burlar os endividados dos precatórios nem os estudantes que se beneficiariam da verba do FUNDEB, mas não conseguiu, tem a Constituição no meio. “Não tem de onde tirar”, explica o vice Hamilton Mourão que, por ser mais claro e inteligente, já anda na mira da ciumeira do presidente, que tem ego de macho.

Bolsonaro conseguiu colocar um conservador no STF de maioria progressista. Na linha de Amy Coney Barrett, a juíza ultraconservadora indicada por Trump no lugar da mítica RGB (Ruth Bader Ginsburg) para a Suprema Corte, a intenção do presidente é conseguir barrar o aborto até de anencéfalos ou de mulheres vítimas de estupro, e conseguir reverter a criminalização da homofobia, a aprovação da união homoafetiva, cotas raciais etc…. As nossas conquistas. Kassio Nunes, o ministro indicado a conselho do senador também do Piauí, denunciado por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, é ainda fundamental para absolver ou reduzir a pena de políticos como os seus Zeros, em especial as “rachadinhas” de Flávio.

Não são só 500 pastores registrados os novos candidatos às urnas nas próximas eleições. O número de policiais civis, militares e membros das Forças Armadas da ativa e reserva é o maior dos últimos 16 anos. Só para o cargo de prefeitos são 388. E vice-prefeitos e vereadores, 6.723. Todos à espera do seu voto este ano. Não foi à toa que neste país armado em pé guerra, o governo revogou três portarias que visavam controlar a produção de armas e munições. Uma glória para Bolsonaro e seus zeros, assíduos nos clubes de tiro, com poses ao lado de metralhadoras e dedo em forma de gatilho nas fotos que ilustram o país dos machos.

É verdade que a pandemia e o isolamento inspiram filmes de terror, nem precisava. Nossa realidade dispensa a virtual. Ao agradecer a premiação de seu filme “Aos Pedaços” no Festival de Gramado semana passada, Ruy Guerra, 89 anos, figura estelar da nossa cultura, desabafou ao reclamar do ar “podre” que tomou conta do Brasil:

Não posso deixar de falar da escuridão que estamos vivendo. Um governo que dizima as populações indígenas e quilombolas. Um governo racista que promove uma avalanche de destruição. Obrigado ao festival por abrir essa janela por onde respiramos um pouco de ar puro”.

Miguel Reale Júnior também alerta a oposição a se organizar, não entregar o jogo “asfaltando o caminho do autoritarismo digital”. O advogado e professor insiste na lembrança de que já fomos 70% com manifestos antifascistas enquanto o discurso delirante, fake, machista de Bolsonaro vai aumentando pontos até a eleição.

Nós, enquanto imprensa, no meio da guerra, seguimos a lição de Harold Evans, morto dia 23 de setembro aos 92 anos, cujo obituário na última revista The Economist definiu o trabalho de um dos maiores editores britânicos do The Times: ele passou a vida “atacando o diabo”.

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Norma Couri é jornalista.