Nunca um sete de setembro ocupou tanto espaço na imprensa. Pela primeira vez ficou mais importante ficar em casa do que aproveitar o feriado. Ficar, para ver o que vai sobrar depois. Ficar, na dúvida de sair ou não às ruas, vestir preto ou verde e amarelo, se esconder da turba ensandecida ou ser massacrado por ela. Os ecos ruminam falas de ruptura com ruído de motociatas, de ameaças de morte própria ou alheias, o espectro de um golpe. Quanto mais se aproxima o sete de setembro, mais o presidente assume a taxionomia dos tiranos a la Mussolini. O nosso impasse não é só sair ou não sair de casa. Este sete de setembro pode terminar parecido com o seis de janeiro da invasão do Congresso americano pelos trumpistas, ou permanecer na História como o dia em que Bolsonaro ficou inelegível pelos desatinos, desesperos, destemperos do presidente.
Bolsonaro tanto incitou que conseguiu um policiamento inédito neste sete de setembro contra seus apoiadores. Conseguiu um alerta da embaixada americana para cidadãos dos Estados Unidos se acautelarem neste dia porque aí vem chumbo. Deixou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos de orelha em pé, dividiu o Brasil ao meio. O sete de setembro costumava ser aquela data morna com chatíssimas paradas militares, um déjà vu para jornalistas que enchiam a imprensa de fatos históricos com poucas novidades, as matérias prontas de véspera lembrando a falsidade do grito de um rapazito de 27 anos às margens do Ipiranga — Dom Pedro em roupa comum sobre uma mula que virou o corcel de um herói com espada em farda de gala. A audiência na TV era baixa até a chegada das novelas.
Este ano o grito de Bolsonaro cancelou a Independência e só clamou pela Morte. Fala em ultimato a ministros. O que ele chama de liberdade de expressão se traduz por ameaça e agressão à democracia. Quer prender, matar, vender fuzis na falta do feijão. Articulistas dos principais jornais lembram a democracia, as ruas e o risco deste sete de setembro. A CNBB critica agressões aos pilares da democracia: STF, Judiciário, imprensa.
O manifesto da Febraban foi cancelado, mas ficou mais popular do que se tivesse saído, Banco do Brasil e a Caixa tomaram a posição de um lado, a FIESP do outro. Tudo por causa do sete de setembro e o risco da democracia.
Há que temer o sete de setembro?
O sociólogo Antonio Rangel Bandeira lembra como se deram os golpes no Chile contra o presidente Salvador Allende em 1973, e na Bolívia contra Evo Morales em 2019.
“O modelo comum era a polícia militarizada nas ruas e é isso que Bolsonaro faz, investiu nas polícias que assumem no Brasil o modelo Rambo, nos 27% de policiais militares que participam das redes paralelas de ódio. Ele investiu no golpe.”
Milicianos, a banda podre da polícia, os paramilitares, todos fortemente armados são o escudo do presidente neste sete de setembro para criar um antes nunca visto clima de caos nesta data.
“Tudo para justificar uma intervenção violenta”, diz Rangel, pioneiro na luta pelo controle de armas para a América do Sul e autor de “Armas, Para Quê” (Leya).”
O sete de setembro é a conjugação disso tudo. Temos 17 milhões de armas no país, 51% delas, ilegais. Com a alegação de promover a autodefesa do cidadão o presidente quer armar o povo para não ser escravizado. Então diz que portar carregadores não é crime.
“O presidente sabe que um carregador numa pistola multiplica 10 tiros em 100. E transformou uma arma num boomerang ao cancelar os 150% do imposto de importação de armas brasileiras para países vizinhos: a arma sai do Brasil para o Paraguai e volta para cá baratíssima nas mãos do crime organizado. A quantidade de munição permitida para civis foi aumentada de 50 para 600 por cada arma por ano, e a de pólvora passou de 12 para 20 kg, com o que se pode construir 40 bombas.”
Bolsonaro quer o povo armado nas ruas nesse sete de setembro. Cada civil pode ter até 6 armas em casa. Mas essas armas mudam de mão. Rangel Bandeira diz que 60% das armas ilegais no Rio de Janeiro foram roubadas de residências particulares. “Foi o general Santos Cruz, ex-ministro defenestrado do governo, que disse que querer fazer segurança pública armando a população é um perigo”.
Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé, mestra em Segurança internacional, lembra que vivemos num país violento, e é um absurdo ver o presidente recorrer a mais violência, ao uso da força num estado democrático.
“Este 7 de Setembro é a tradução concreta de todas as falas de Bolsonaro desde a campanha, com plataforma dedicada à mobilização da violência em resposta à insegurança do cidadão”, diz Michelle. “Caçadores, atiradores, colecionadores, civis, a liberação foi total sem nenhuma medida de controle ou fiscalização desses arsenais.”
Não cabe a discussão de sair ou não de casa num sete de setembro. Se as ruas são deles ou nossas. Se os PMs na ativa vão atuar para prender, atirar. Não precisaria o Ministério Público lembrar que intervenção armada de PMs configura crime inafiançável, imprescritível, cuja pena é de 20 anos de xilindró. Um coronel Aizim da reserva incita nas redes sociais os apoiadores a agir, atropelar, atirar, algemar, invadir os “prostíbulos (STF, Congresso) com sangue nos olhos”.
Michele dos Santos sugere guardarmos nossas energias para recuperar as conquistas fundamentais da sociedade brasileira que estão se esfacelando neste governo.
Rangel Bandeira é otimista.
“Ele combateu Covid com cloroquina e quer combater o crime, a violência, com armas. O presidente está desesperado, faz apelos desesperados, e gestos de desespero podem causar grandes estragos. Mas golpe está démodé. Nossa estrutura cultural e social é muito forte, nossa imprensa é corajosa. Seu gado cada vez menor vai apoiar a confusão nas ruas no sete de setembro, sim, e no oito de setembro a caravana vai passar.”
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).