Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os 365 dias da catástrofe Bolsonaro, vistos da Europa

Que imagens restarão para os europeus, mas não só os europeus, do governo Bolsonaro em 2019? A de um Nero caboclo brega, de sandálias nos pés, embriagado com seu extremismo, cantando desafinado o hino americano de Irving Berlin, Deus salve a América, diante da Amazônia em chamas?

Ou a imagem odiosa do pai e avô, personagem do filme A vida invisível, de Karim Ainouz, rejeitando toda nossa cultura brasileira por não ser conforme as superstições evangélicas e destruindo, na porrada e nos tiros de seus gestos de arminha, nosso cinema, nosso teatro, nossa literatura, nossa música, nossos espetáculos de dança e nossos corpos sensuais por serem tentações do diabo?

O que restará? A ridícula e grotesca teoria terraplanista de seu guru, Olavo de Carvalho, contrapondo-se, na sua loucura, a Pitágoras, Aristóteles, na Antiguidade, e Galileu, Copérnico, Kleper, na Idade Média, e às melhores visões da Terra redonda ou esférica, mostrada pelos satélites girando à sua volta? A negação solitária da mudança climática e do aquecimento da temperatura terrestre, para justificar a destruição da Floresta Amazônica e sua transformação em pastos para gado e plantações de soja ou explorações de minérios como o nióbio?

Nunca o Brasil foi tão mal visto no exterior como neste primeiro ano de governo Bolsonaro. Aqui na Europa, há praticamente uma unanimidade nas críticas ao governo brasileiro em toda mídia e a manchete de fim de ano do Courrier International, reproduzindo um comentário da Deutsche Welle, em Bonn, na Alemanha, sobre o primeiro ano de governo de Bolsonaro, é um deprimente resumo: “Um ano depois, Bolsonaro nada fez pelo Brasil senão destruí-lo”.

A descrição da situação brasileira, pelo correspondente em São Paulo, é desanimadora: uma economia parada que não anima os investidores e nem cria empregos, enquanto a moeda brasileira, o real, nunca esteve tão baixa frente ao dólar. Isso deveria favorecer o turismo, porém baixou em 5% o número de turistas no Brasil.

Qual seria a causa dessa recusa dos turistas? A crescente rejeição à figura de Bolsonaro, conhecido por seu ódio às pelas minorias, sua agressividade e por incentivar o desflorestamento da Amazônia. Entre os brasileiros, constata a Deutsche Welle, a decepção aumenta e, hoje, não seria eleito, pois apenas 29% dos eleitores ainda continuam lhe dando apoio. Esses eleitores ainda fiéis seriam praticamente os evangélicos racistas, homofóbicos, reacionários, nostálgicos da ditadura militar que, felizmente, assinala o correspondente, não são suficientes para ganhar uma eleição.

Bolsonaro pretendia acabar com a corrupção, porém tem ministros corrompidos e existem suspeitas de corrupção sobre um de seus filhos. A criminalidade aumentou, há mais violência contra as mulheres, contra os negros, contra a comunidade LGBT, contra os indígenas e contra os militantes pelos direitos humanos e pela defesa do meio ambiente.

Sem cumprir suas promessas, Bolsonaro utiliza da retórica, apela ao nacionalismo e à mentira, como mostrou seu discurso na ONU, revelando o mundo esquizofrênico no qual ele vive. Para ele, os incêndios na Amazônia são invenção da mídia e ignora a mudança climática que preocupa o restante da humanidade.

Para Philipp Lichterbeck, correspondente da Deutsche Welle, o Brasil perde seu tempo: restam três anos pela frente para lutar com seus velhos demônios em lugar de se voltar para o futuro.

Por sua vez, a Radio France Internationale destaca o ceticismo de Bolsonaro com relação às mudanças climáticas, causa do desflorestamento, e a diminuição do controle dos crimes contra o meio ambiente. O objetivo é a exploração da região amazônica para criação de gado e atividades mineiras, entre outras causas.

Em um ano, destaca a RFI, com os incêndios das florestas, houve um aumento de 84% no desmatamento da região.

O prestigioso jornal Le Monde expressa sua preocupação diante da possibilidade de uma longa permanência de Bolsonaro no poder: não se trata de uma febre passageira, alerta o correspondente Bruno Meyerfeld, no Rio de Janeiro.

O resumo do ano Bolsonaro, segundo Le Monde, inclui mentiras em série, observações racistas e homofóbicas, apologia da tortura e da ditadura, piadas fecais sujas e misóginas, delírios complotistas e insultos a dirigentes de países estrangeiros – que fazem o americano Trump e o italiano Salvini parecerem pessoas de grande cortesia ou gentis sociais-democratas.

Porém, o correspondente do Le Monde deixa entrever uma esperança, a de que uma tal tempestade no governo brasileiro possa terminar antes do fim do mandato de Bolsonaro, citando que um terço dos 38 presidentes não chegaram ao término dos seus quatro anos.

Chantal Rayes, correspondente dos jornais Libération, da França, e Le Temps, da Suíça, enfatiza a liquidação de um setor importante: “a política ultraliberal posta em prática pelo líder de extrema-direita procura liquidar com os programas sociais deixados por Lula e Dilma Rousseff, começando pelo setor das habitações.”

Uma análise importante do primeiro ano Bolsonaro é a dos jornalistas Benedikt Peters e Christoph Gurk, que escrevem para os jornais alemães e suíços Süddeutsche Zeitung, Die Zeit, Tages Anzeiger, Basler Zeitung, Berner Zeitung e Der Bund. Ao comentar o aparente estranho comportamento de Bolsonaro, dizem esses correspondentes: “o político de extrema-direita está lutando contra jornalistas, ambientalistas, políticos e a ativista de proteção climática Greta Thunberg. Tudo isso poderia ser interpretado como a ação enganosa de um chefe de Estado confuso. Mas isso seria um erro. Porque os insultos e o argumento são sistemáticos.”

Para Bolsonaro, dizem os correspondentes, a floresta não tem nenhum valor, porém o solo onde estão as grandes árvores é um tesouro inexplorado; em seu lugar, logo haverá gado e empresas de mineração. Quem protestou contra isso foi removido ou demitido de seus cargos. Quando organizações e governos estrangeiros criticaram as queimadas, Bolsonaro apelou ao nacionalismo e inventou existir uma campanha internacional liderada pelo ator Leonardo DiCaprio, só aceita mesmo por seus fanáticos seguidores.

A conclusão dos jornalistas é preocupante: a violência contra homossexuais tem aumentado por influência indireta de Bolsonaro, que, durante a campanha presidencial, se declarava orgulhoso por ser homofóbico, tendo mesmo afirmado: “Eu não poderia amar um filho gay. Prefiro que ele morra em um acidente de carro.”

“A situação nas favelas do Rio ou São Paulo é particularmente dramática, onde a polícia está travando uma guerra contra os pobres e negros, alimentada por Bolsonaro, que declarou publicamente não ver problema em policiais matando pessoas. De fato, há vítimas de violência policial todos os dias, inclusive crianças. Somente no Rio, quase um quarto dos assassinatos são devidos à polícia”.

A reação insana de Bolsonaro
O presidente Bolsonaro não leu esses resumos do seu governo em 2019, pois não é chegado numa leitura, e mandou cortar todas as assinaturas de jornais destinados ao Palácio da Alvorada, em Brasília. Se tivesse lido, teria ficado furioso e proferido alguns palavrões na sua linguagem desbocada carente de maior vocabulário. Talvez decidisse expulsar os correspondentes do Brasil, mesmo porque quase houve um precedente no passado.

Sua reação mais recente às críticas dos jornalistas visa os profissionais da imprensa brasileira. “Vocês são uma espécie ou uma raça em extinção”, disse Bolsonaro, referindo-se aos jornalistas presentes no Alvorada, “e deveriam ser cuidados pelo Ibama” (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, ao que parece também em extinção).

O recado foi dado: na hipótese de ter poderes para isso, a imprensa não afinada com Bolsonaro vai ter de se dobrar aos seus caprichos e os jornalistas independentes (que não são nem uma raça nem uma espécie, mas cidadãos formados em jornalismo, portanto profissionais da imprensa) serão extintos. Em outras palavras, serão demitidos ou processados ou ameaçados com o objetivo de deixar de escrever ou de falar na mídia.

O dramático nessa aceleração de ameaças é constatar o constante apoio dos líderes e fiéis evangélicos a Bolsonaro, quando a palavra-chave da Reforma era a “livre interpretação dos Evangelhos”, ou seja, o respeito ao livre arbítrio, com a decorrente liberdade de imprensa.

O desmantelamento do Brasil não fica só na ameaça aos profissionais da imprensa, chega mesmo à base da formação cultural, logo depois da alfabetização – Bolsonaro quer transformar os livros didáticos em cartilhas ilustradas para limitar o acesso ao conhecimento das novas gerações. Cartilhas nacionalistas ou fascistas ou evangélicas ao nível intelectual do presidente, para acostumarem as crianças a não pensar e a não ir além do permitido ou por Deus ou pelo presidente. Dramático, porque a esse mesmo nível serão levados os filmes, peças teatrais, composições musicais, espetáculos de dança, num incêndio da cultura e da formação brasileira tão grave quanto o incêndio da Amazônia.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.