Para estrategistas do governo e analistas políticos independentes a meta é transpor o aziago 2015 e chegar a 2016. Parece fácil, porém será preciso suar muito a camisa para ultrapassar a sucessão de obstáculos — visíveis e os que serão criados pela imponderável dinâmica dos confrontos. Preveem-se crises semanais, talvez em dias alternados.
A mídia tem preparo e substância para segurar por tanto tempo uma sociedade dividida, enraivecida e espicaçada desde meados do ano passado quando se iniciou a faina eleitoral?
As convicções e afeições ora desfraldadas têm sustentação para superar as tentações populistas que aparecerão no lugar de comichões autoritárias? Em seguida às Olimpíadas e às eleições nossa produção cultural terá fôlego para inspirar os inquietos e sossegar o desassossego?
As utopias ora gestadas têm envergadura para enfrentar as turbulências distópicas que virão em sua esteira?
E o mundo à nossa volta, entre êxodos e catarses será capaz de gerar paradigmas edificantes e modelos inovadores — além de gadgets e aplicativos?
Desnecessário responder às provocações acima. As edições dos diários impressos e eletrônicos valem como resposta. A melancólica metamorfose dos jornalões magicamente convertidos em jornalecos basta como sinalização. Os antigos cadernos culturais — hoje de entretenimento quando não implodidos –auguram porventura alguma efervescência além daquela fornecida pelas pastilhas de Alka-Seltzer ou Targifor?
A dramaturgia platinada ora transplantada para a cena teatral tem condições de gerar um repertório minimamente adulto além do atual besteirol e esculacho?
No entanto, surpresas:
Surpresa-1: nas livrarias cintilam as luzes acesas nos últimos 600 anos. Um povo acostumado a viver em casas sem estantes, de repente descobriu-se leitor e ‘livreiro”. Em 27 anos com 35 títulos o filósofo polonês Zygmunt Bauman vendeu cerca de 500 mil exemplares no Brasil. E o cubano Leonardo Padura, muito mais do que um fenômeno de vendas, galopa acima dos gêneros literários (talvez em direção ao Nobel) mostrando ao mesmo tempo o quanto decaiu a historiografia acadêmica, a ficção e a engenharia narrativa.
Surpresa-2: o cinema. Em telões ou telinhas um filme como o do brasileiríssimo Walter Salles sobre as inquietações de um cineasta chinês contemporâneo (“Jia Zhangke “Um Homem de Fenyang”) desvenda um humanismo impossível de imaginar em meio à nossa exuberância de fundo de abismo.
Surpresa-3: através da rememoração do centenário do nascimento do carioca Orlando Silva (1915-1978), cantor das multidões, sob a batuta de magníficos nostálgicos como Ruy Castro e João Máximo, a grande mídia e os alternativos ineditamente associados, promoveram um tocante reencontro com a chamada ‘alma brasileira”.
Uma década depois do clássico de Paulo Prado, “Retrato do Brasil, ensaio sobre a tristeza brasileira”, as vozes serenas e abaritonadas de Francisco Alves, Carlos Galhardo, Silvio Caldas e Orlando Silva, ofereceram a um país rapidamente urbanizado os remanescentes de suaves fragrâncias rurais e perdidas ilusões de felicidade.
“Carinhoso”, “Rosa”, “Lábios que eu beijei” (todos de 1937, além de outros 30 sucessos entre valsas, valsas-canção, sambas-canção, serestas e marchinhas) entoados por Orlando Silva funcionam como trilha sonora para a celebrada epifania ensaística de Paulo Prado: “Numa terra radiosa vive um povo triste”.
A corda pode manter-se esticada por muito tempo. Depende dos que sabem torna-la elástica e mantê-la resistente. Na história das nações há ascensões e quedas, muitos suicídios de autores e artistas, nunca de uma cultura.
Erratum: este observador cometeu tremenda injustiça contra o jornalista Ancelmo Gois ao deixar de incluí-lo no grupo de pesquisadores, memorialistas e nostálgicos revolucionários que trouxeram de volta a figura, a voz e os tempos de Orlando Silva, o cantor das multidões (“O Globo”, 27-09-2015, pp. 14-15)
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Alberto Dines é jornalista, escritor e fundador do Observatório da Imprensa
(Texto atualizado em 8/10/2015)