Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Somos ainda a mesma terra em Transe

(Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Não há nenhuma pastilha, chá ou vitamina que me possa salvar dos sintomas dessa depressão, palpáveis na vontade de apagar o computador, depois de ler o resumo das notícias que me chegam diariamente do Brasil, e deixar pela metade a tentativa, talvez mesmo pretensiosa, de um resumo interpretativo.

Essa sensação de não valer a pena insistir, começou logo depois de retornar da viagem à cidade de Locarno, onde havia, com todas a precauções necessárias contra o vírus, um mini Festival de Cinema, com reprise de alguns dos mais marcantes filmes ali já exibidos. Dessa vez, depois de mais de trinta anos vendo filmes, fazendo entrevistas e críticas, me contentei em rever só alguns filmes.

Alguns, mas suficientes para me roubarem o sono e detonarem minha atual desesperança, agravada com as recentes sondagens de opinião publicadas pela Folha. Comecei revendo “O Sétimo Continente”, de 1989, do cineasta austríaco Michael Haneke; revi “Charles, Morto ou Vivo”, de 1970, do suíço Alain Tanner, e “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, lançado em 1967, visto a primeira vez em São Paulo, antes ainda de deixar o Brasil pela França.

O mais recente era “O Sétimo Continente”, filmado há 30 anos, contando a história rotineira de um casal e de sua filha, que simula ter ficado cega, em busca de maior afeto. Ambos trabalham e fazem parte da classe média mas decidem se suicidar, levando junto a filha menor.

Por quê? Haneke não conta, deixa aos espectadores a resposta. É um filme negativo, pessimista e de ruptura com a vida. Nos seus diálogos, o casal não demonstra qualquer influência sobre eles exercida por decepções religiosas, sociais ou políticas. Porém, é evidente a descrença deles num futuro, já que os encontros familiares parecem provocar tédio. Mesmo promovido no trabalho, o marido permanece pessimista diante da existência, embora ao seu redor o mundo e a Europa vivam anos de ebulição, maio de 68 e a revolta estudantil, a Glasnost, Woodstock, o fim da Cortina de Ferro e de outros regimes autoritários como a ditadura militar no Brasil.

“Charles, Morto ou Vivo” é a história suíça de um rico industrial relojoeiro que ao começar a envelhecer decide agir como teria agido na juventude, não fosse a morte prematura do pai lhe deixando a gerência da indústria e da fortuna. Absorvido pelo sistema, só acordou ao aceitar contar sua vida numa entrevista para a televisão. Ao falar de sua juventude, lembrou-se de suas idéias anticonformistas, do seu desejo de viver uma vida livre, desconectada da rotina do pai conservador e rico. Era uma época de revolução social, na qual os jovens rompiam com suas famílias e iam viver coletivamente, enquanto combatiam as estruturas sociais e econômicas da sociedade.

Mas Charles havia se negado a isso, meio sem refletir, ao herdar a indústria paterna e se integrar no sistema. Estava no centro de Genebra quando sua entrevista foi ao ar. Entrou num café com televisão para assistir anonimamente. Saiu quando algumas pessoas no café começavam a identificá-lo como o entrevistado. Em lugar de retornar à sua mansão, entrou num simples hotel para dormir, nos dias seguintes passeava pela cidade quando conheceu um casal contestatário, militante, e foi viver com eles na periferia. Seu filho conseguiu localizá-lo e o internou num asilo para velhos dementes. Um filme antológico para a juventude suíça e européia da época, feito por Alain Tanner, considerado o maior dos cineastas suíços, sem  contar Jean-Luc Godard, que muitos consideram francês.

Dois filmes de contestação da sociedade e de sua estrutura. Ótimos para se ter insônia. No filme de Haneke, o pai, antes de se suicidar, quebra tudo quanto existe na casa e joga no vaso sanitário todo seu dinheiro retirado do banco. É a ruptura total. No de Tanner, há uma ideologia — a de negação do sistema econômico e social. E o mais impressionante é transmitirem com suas imagens as mesmas críticas feitas hoje, meio século depois. Em outras palavras, houve um grande avanço tecnológico, mas no fundo o mundo não mudou.

Enfim, em “Terra em Transe” deixamos a crítica social feita individualmente para mergulharmos num mundo político de corrupção, traições, infiltração estrangeira, desejo de revolução e luta contra a pobreza, populismo, personalismo e violências. É o Brasil de todos nós, visto por Glauber Rocha. E novamente a mesma constatação: cinquenta anos depois da realização do filme, o Brasil de hoje não é muito diferente do Brasil de “Terra em Transe”, feito três anos depois do Golpe Militar.

Valem alguns reajustes, — em lugar do catolicismo, como apoio político religioso ao poder dominante, temos hoje o evangelismo — mas o povo é o mesmo — servil, carola, fanático e crédulo, pronto a seguir quem saiba melhor enganá-lo — com algumas exceções. Quando os populistas se defrontam com o povo e seus representantes pedem água potável encanada ou títulos de propriedade de onde vivem, a reação é violenta e mortal. E nos lembra a atualidade de hoje em Minas Gerais com os Sem Terra.

Por que o povo cede às ladainhas ou aos salmos e hinos dos religiosos? Glauber Rocha é inclemente no seu filme — o povo segue como cordeiro (agora se diz gado) a espada ou a cruz, não percebendo as mentiras e enganações dos líderes populistas. Mino Carta, numa entrevista com Ciro Gomes, reforça essa visão. E nós todos nos deprimimos ao ver, nas sondagens de opinião da Folha, essa confirmação. “Bate em mim, que eu gosto”, parecem dizer os entrevistados.

Lembro-me de um velho refrão repetido tantas vezes pelos estudantes durante o governo militar — o povo unido derruba a ditadura! Que povo? O nosso povo não derruba nenhuma ditadura, ao contrário, é até capaz de nos levar a uma ditadura evangélica neofascista. Na reformulação da nossa esquerda, ou das nossas esquerdas, será preciso rediscutir a semântica e valor das palavras usadas nas palavras de ordem.

Povo sem instrução e sem boas escolas não derruba coisa nenhuma. Assim como o conceito de homem bom, de Rousseau, é moralista e não realista. O povo pobre, sofrido, explorado, não é também “o bonzinho” dos cristãos católicos ou evangélicos, à espera de redenção. Povo com escolas laicas primária e secundária, com salário decente, com moradia digna, com assistência médica e social, cujos filhos podem ter acesso às universidades públicas, esse povo não é seduzido por histórias religiosas, nem por nacionalismos nazifascistas. E nem precisa derrubar ditaduras, porque não votou por elas. Quando nossa esquerda entenderá isso?

Numa análise que li, do colega Paulo Moreira Leite, sobre as últimas sondagens da Folha, notei uma ausência — a da influência, cada vez maior, do gado evangélico no conformismo do povo brasileiro diante do governo Bolsonaro. Hoje, os pastores evangélicos que se investiram de um poder divino, aceito cegamente por um povo sem instrução, são mais poderosos numa eleição que os militares. E no caso de um Golpe, quem nos garante que terão um discurso pacífico, se hoje já são coniventes com a ideologia da violência do Poder?

Mais alguns anos, o Brasil se transformará num Polônia carola evangélica, conservadora e retrógrada.

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.