Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Um passo em falso e um enorme salto para trás

Foto: Jcomp

Estranhos tempos estes. Em lugar de citar autores clássicos, trechos de sociologia ou filosofia, em lugar de se recorrer às leis dos nossos códigos ou parágrafos da Constituição, os comentaristas políticos são obrigados a se referir a versículos da Bíblia. Assim fez o conhecido Reinaldo Azevedo, da Bandeirantes, ao tratar do ministro recém-escolhido para o STF, André Mendonça, reforçando seu alerta com a conhecida frase bíblica “pelos seus frutos os conhecereis”, que teria sido pronunciada pelo próprio Jesus. Mas, no caso, ignorada pelos senadores.

Sirvo-me também do mesmo evangelho de Mateus, para invocar uma frase adequada à confirmação como ministro do STF pelos senadores do pastor, jurista e bolsonarista ex-membro do governo, decidido a servir três instâncias superiores: o Deus dos evangélicos, a Constituição como jurista do STF e o presidente Bolsonaro, ao qual deve sua promoção a ministro.

Dizia ainda Jesus em Mateus 6:24, “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro”. Ora, o ex-Advogado Geral da União e ex-ministro da Justiça, André Mendonça, passa por cima da frase divina ao se propor, e mesmo ter prometido aos senadores, servir a três senhores: Deus, o STF e o mais exigente, ao qual tudo deve, Bolsonaro.

A frase pela qual, em casa e na igreja, André Mendonça seguirá Deus e a Bíblia, mas dentro do STF, seguirá a Constituição, não é realista. Alguns poderão dizer, é uma flagrante mentira, mas usarei outra terminologia: é um sofisma. Assim como não se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, não se pode prestar obediência a dois e muitos menos a três senhores exigentes

Acompanhei uma boa parte dos debates da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o suficiente para perceber a pobreza dos debates e o baixo nível, no sentido de fraco e primário, da sabatina a que foi submetido o bolsonarista André Mendonça, com sua cara de humilde e bonzinho diante dos senadores. A comentarista Dora Kramer falou mesmo em água com açúcar.

Teria vindo uma ordem de cima, dos partidos da oposição a Bolsonaro, para deixar passar Mendonça e não sangrar demais o presidente? Os seis votos que abriram as portas do STF para o pastor teriam vindo mesmo do PT, do Podemos e da Rede da Sustentabilidade, numa tentativa de fazer um gesto aos “bons” evangélicos e de preservar um segundo-turno com Bolsonaro e Lula. Sem se esquecer que Marina Silva é uma boa evangélica.

A farsa de que Deus não é absolutista e permite aos seus seguidores tomar um fôlego no STF, deu certo. Ao final da sabatina todos pareciam convencidos pelas respostas do ex-ministro de Bolsonaro, pela sua postura de candidato bem aplicado, disciplinado e pelas promessas de obediência ao poder terreno e não divino, no caso de conflito entre a Bíblia e a Constituição num julgamento do STF. Os senadores deixaram de lado o esperado exame sério e exigente, diante do simpático, educado, cordato e “bonzinho” André Mendonça.

Foi surpreendente a maneira como Mendonça enrolou na farinha a CCJ e depois a maioria dos senadores, interpretando o papel de alguém disposto a dizer amém a tudo quanto dele exigissem, e mesmo a corrigir algumas frases fora do esperado contexto. Mas Mendonça, mesmo se fazia cara de, não é nenhum tonto. Ele interpretava seu papel: depois de quatro meses de espera e uma peregrinação junto aos senadores, estava a fim de prometer qualquer concessão para chegar ao STF. Depois, e agora é o caso, no STF a coisa será outra!

Entretanto, está mal orientada a discussão quanto a uma maior fidelidade de Mendonça aos Evangelhos do que à Constituição. Na verdade, e já faz tempo, entre a opção de servir a Deus ou a Bolsonaro, o esperto Mendonça já havia escolhido servir a Bolsonaro tanto na AGU como na função de ministro da Justiça. Deus ficou em segundo plano.

Exceto se os códigos bíblicos evangélicos de conduta mudaram, um verdadeiro evangélico não teria aceitado fazer parte de um governo de extrema-direita. Existe também a questão das armas: evangélico gosta de armas em casa? Defende a posse de armas, acha que briga se resolve no tiro? Ao que se saiba, isso não se ensina na escola dominical das igrejas evangélicas, muito ao contrário. A conclusão é, portanto, elementar: quem é realmente evangélico não aceitaria fazer parte de um governo interessado no comércio de armas, em armar o povo e provocar assim um aumento do número de assassinatos.

Mesmo se André Mendonça não tem a mesma formação dos seus futuros colegas, necessária a um jurista do STF, sabe muito bem o que é um vírus. Ora, se é evangélico e se preocupa com a vida das pessoas, por que aceitou fazer parte de um governo contrário à vacina, responsável por um genocídio reconhecido pela maioria dos mesmos senadores, na recente CPI?

Mendonça não só aceitou fazer parte do governo como advogado da União e ministro da Justiça, como também foi além ao soltar os cachorros em cima dos jornalistas críticos do governo, por Bolsonaro ter descartado e minimizado a crise sanitária. Esses jornalistas foram denunciados por ele com base na Lei de Segurança Nacional da época da Ditadura militar e, se não fossem os juizes atuais do STF, esses jornalistas teriam sido presos e condenados por delito de opinião.

E na sabatina com os senadores, como ele se defendeu? Dizendo indiretamente que obedecia a ordens. Ora, ele obedecia a ordens de Deus ou do Bolsonaro? Me engana que eu gosto, diria a senadora Simone Tebet e outros encantados com o charme do “inofensivo” Mendonça.

E não é só, quando os governadores decidiram fechar tudo para evitar a propagação do vírus, o que fez o inofensivo André Mendonça? Recorreu ao Supremo Tribunal Federal para reabrir as igrejas, porque deve acreditar que dentro das igrejas não há vírus, ou que o cântico dos gospels, dos salmos e hinos afasta o risco de contaminação, mesmo com as bocas abertas, sem máscaras, para cantar!! Ou nada disso: reabrir as igrejas para agradar a Bolsonaro.

E o desflorestamento da Amazônia? André Mendonça é contra ou a favor? Se é contra, por que continuou no governo? Se segue mesmo a Deus, estaria Deus com os agropecuaristas?

André Mendonça garantiu que, como ministro do Supremo, vai ser correto, não vai ser fanático evangélico, não vai obedecer ao Silas Malafaia, que vai seguir a Constituição e não a Bíblia. E os senadores, inclusive alguns do PT, acreditaram? Porém, como já vimos, a questão não é se o terrivelmente evangélico, no STF, vai dar primazia ao seu Deus e à Bíblia, e deixar de lado um livro de leis feitas por homens como é a Constituição! Deus, Mendonça já ignora faz tempo; a verdadeira questão era – entre a Constituição e Bolsonaro, quem irá Mendonça preferir?

Em todo caso, os senadores abriram um precedente, cujas consequências serão desastrosas. Quebraram um dos princípios básicos da nossa República, a laicidade. Já se ouve dizer a nova exigência dos evangélicos, um outro terrivelmente evangélico na chapa de Bolsonaro, como vice-presidente. Seria Silas Malafaia?

Enfim, há uma coisa que revira o estômago — é a foto tantas vezes publicada, de André Mendonça com a cabeça no peito de Bolsonaro, num gesto quase amoral de submissão plena. Esse gesto é vergonhoso e não nos deixa acreditar num André Mendonça laico e independente no STF.

Parodiando Mendonça, que parodiou Neil Amstrong (mesmo se muitos evangélicos não acreditam em viagens espaciais), essa escolha de um pastor para o STF foi um passo em falso e um enorme salto para trás!

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.