Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um referendo como saída democrática para a crise

O ato político nas ruas do Brasil no dia 18 de março foi importante. Contudo, não responde a muitas das suas próprias limitações. As principais delas são tentativas de condicionar a defesa da democracia a uma defesa incondicional do governo Dilma e dos seus equívocos – que são muitos –, e da reificação da concertación à brasileira que Lula inaugurou e, parece, pretende reeditar.

De todas as manifestações de rua recentes, as de 2013 são as mais emblemáticas. Lá estava a parcela da classe média revoltada com o governo e portadora de discurso direitista, mas estavam também membros de todas as classes sociais, exaustos das limitações nas políticas públicas. No pós-2013, quase nada se viu de respostas do governo aos anseios expressados, com exceção do programa Mais Médicos. Persistiram e se agravaram omissões e defendê-las acriticamente é típico de quem não pratica a democracia no cotidiano, não fortalece a horizontalidade política nas consultas em seus sindicatos, universidades, movimentos em geral.

Entre os que foram às ruas protestar contra os supostos abusos do judiciário estão muitos que as praticam em seus contratos sociais, em seus corporativismos profissionais ou ideológicos, nos favorecimentos a amigos em procedimentos públicos, aos quais transgridem em causa própria, incumprindo compromissos que assumem com a institucionalidade. À direita ou à esquerda, a “cordialidade” buarqueana impera: transformar o Estado, a coisa pública, em espaço doméstico para nele se sentir à vontade e fazer o que se quer ou o que as conveniências e casuísmos exigirem.

Há milhares, milhões, de cidadãos que não apoiam golpe jurídico-midiático em curso, mas que não vêm a público defender o PT. Muitos estiveram nas ruas no dia 18 de março. Mas quantos democratas não saíram para não se confundirem com militantes partidários? Uma alternativa para ampliar a participação destes talvez seja o governo agir ativamente contra uma Câmara dos Deputados que manobra pelo impeachment. Pressionar por um referendo, por exemplo. A convocação é prerrogativa do Legislativo, mas o governo poderia agir à Evo Morales, que não teme referendos, mesmo o mais recente, que lhe negou o direito a disputar a quarta reeleição. Não necessariamente Morales perdeu algo, pois obteve apoio de 47% dos eleitores, um capital eleitoral considerável para fazer um sucessor nas próximas eleições.

A legitimidade do mandato presidencial

A pergunta seria: “O governo deve ou não ir até o fim do mandato?” Assim, a totalidade dos que se colocam contra o golpe, aliados ou críticos ao governo, defenderia a legitimidade do mandato de Dilma via um instrumento do Estado, e não na carnificina das ruas e dos palanques eletrônicos da mídia. Defenderiam ao passo que exigiriam o cumprimento do que apresentou como proposta em sua eleição em 2014.

Problema: estaria ameaçado um referendo sob a égide da mídia manipuladora? Diuturnamente, o país é bombardeado com interpretações parciais da maioria dos meios de comunicação de massa nacionais, que constroem e impõem uma realidade “mais real do que o real” (Castoriardis), configurando uma “morte do social” (Braudrilard) pela imposição de uma hiper-realidade via simulacros que tornam o real desnecessário. Não é gratuito que as manifestações pró e contra o governo têm na mídia, na Rede Globo, ora alvo, ora apoio prioritário, dependendo de que lado se está.

A Rede Globo tem por princípio a predominância de seus interesses empresariais. Sua alegada “imparcialidade jornalística” está em xeque desde 1989, com a célebre edição da repercussão do debate entre Collor e Lula – favorecendo ao primeiro. De novo em 2006, forçou um segundo turno entre Lula e Alckmin, ao coordenar com policiais federais a exibição da denúncia do escândalo que ficou conhecido como “aloprados” – suposta compra de votos em São Paulo por candidatos do PT. Em caso de um referendo, de certo a Globo manteria posição à direita, como tem demonstrado.

Ocorre que a legislação eleitoral prevê espaço equânime para debate televisivo entre posições políticas distintas. A dúvida maior seria obter o alinhamento de diferentes lideranças políticas em defesa da legitimidade do mandato presidencial. Lideranças críticas e mesmo adversárias e combatentes do governo Dilma já se pronunciaram contra um eventual impeachment (Marina Silva, Luciana Genro, Ciro Gomes e outros). Trazer para um referendo o que vem sendo (mal) tratado pelo Judiciário e pela mídia legitimaria uma discussão que nos entreatos de rua .

A precariedade institucional

O Brasil, desde 1964, é governado por manifestações de ruas capitaneadas. Poucas foram espontâneas (exceto 2013), poucas foram multipartidárias (como as pelas Diretas Já, em 1984). Tantas outras embaralham interesses partidários e convicções – justas – de defesa da democracia para todos.

O Brasil ainda é um país no qual consultas amplas periódicas se resumem às eleições. Além destas, houve apenas dois referendos, em 1963 (restituiu o presidencialismo pleno) e em 2005 (do desarmamento), e um plebiscito, em 1993 (sobre o sistema e a forma de governo). A população convive com um déficit democrático nas instâncias e instituições formais. Daí resultam práticas, governamentais ou não, sem que necessariamente se cumpram compromissos de campanhas eleitorais, sejam estatais ou não: Dilma rasga o programa de governo com o qual foi eleita, sindicatos prescindem de consultar suas bases para fechar acordos – como se viu na greve das universidades em 2012 etc.

Trata-se, ainda, de uma “democracia de baixa intensidade” (Boaventura Santos), cujos resquícios deixam lideranças à vontade para agirem fora dos compromissos assumidos com a coletividade, resultando em precariedade institucional, na qual tudo é permitido.

Um parêntese para dois exemplos de emergência da precariedade institucional gestando incongruências:

– Recentemente foi fundado o Partido da Mulher Brasileira (PMB, um dos mais de 30 partidos com registro legal). Além de ser integrado majoritariamente por homens, em geral parlamentares do chamado “baixo clero” do Congresso Nacional, sua presidente, Denise Abreu, declarou publicamente que se trata de um partido “antifeminista”. Longe de vir a ser uma alternativa à política, Abreu se declarou “liberal na economia e conservadora nos valores da sociedade”, e afirmou que “feminismo é um movimento ativista que não cabe dentro da proposta de administração pública”. Talvez por isso, bandeiras progressistas, como o direito ao aborto, não constam do programa do PMB.

– Cresce o número de manifestantes negros nas manifestações de direita (8% entre os cerca de 500 mil presentes na Av. Paulista em 13 de março, segundo instituto Datafolha). Num país cuja História registra presença de negros mesmo no movimento fascista do Integralismo – o que dissuadiu a intenção dos nazistas de estabelecer pontes com o Integralismo –, é preocupante apoio de negros a manifestações que pedem, entre outros, maior repressão policial, da qual a população negra é a principal vítima.

O racismo tem que ser combatido para que não aflore

Sintoma de um desencanto? Em 2015, atendendo a pressões da “opinião pública”, Dilma contraiu em apenas um ministério (o da Cidadania) as pastas da Igualdade Racial, das Mulheres e dos Direitos Humanos. Em que pese a competência e qualificação da ministra à frente da pasta da Cidadania (o empenho de Nilma Gomes é inquestionável), há que se considerar críticas quanto a fragmentação de poder de instâncias governamentais para dar resposta a contento aos conflitos étnico-raciais – bem como das políticas para Mulher e Direitos Humanos.

O desencanto se reflete em fragilização no campo anti-racista, no qual – em momentos restritos e localizados – mesmo os brancos anti-racistas engajados são colocados sob suspeição a menor utilização de palavras como “claro”, “esclarecido”, “obscuro”, que, descontextualizadas, denotariam “racismo”. Qualquer contra-argumentação está sujeita a acusação de branquitude ou “branquitude ressentida” (conceito importante de Lourenço Cardoso).

Trata-se de um preocupante esgarçamento no campo anti-racista, num país miscigenado no qual, não raro, brancos têm ascendência negra, cujos antepassados foram expropriados da propriedade da terra. É polêmica, mas ponderável, a tese de Mbembe, na Crítica à razão negra: os “negros” de hoje são todos os expropriados e subalternizados do mundo. O discurso direitista de ódio aos pobre e negros contamina a luta anti-racista, que vê reduzida seu espaço institucional de defesa das minorias não só no Executivo, mas em todo o establishment brasileiro: apenas 15% dos juízes, apenas 4,3% dos deputados federais e apenas dois em 81 senadores são negros. Extrapolando o poder institucional, a desproporção se mantém entre jornalistas (23% negros/pardos), e é gravíssima entre professores universitários – apenas 1% de negros/pardos.

O racismo, conforme Foucault na Microfísica do Poder, habita em nós (brancos) e tem que ser combatido por nós mesmos todos os dias, para que não aflore. Temos a trilhar um logo caminho em prol da “igualdade racial”, cujas reivindicações estão longe de responder, a contento, o abismo da diferença racial até que cheguemos à reivindicação da “diferença”, como fazem ativistas e artistas norte-americanos que têm outra trajetória histórica, outros contextos – Obama o exemplifica. Portanto, não conter excessos, sejam quais forem, é fazer o jogo da direita visando enfraquecer o campo anti-racista no Brasil de maioria negra e parte da população branca miscigenada.

A corrupção no futebol nacional e mundial

Esse é um dos retratos do “país distorcido” (Milton Santos), no qual 54% da população é negra. É preciso radicalizar e fortalecer a denúncia permanente de que no Brasil há um racismo de Estado – o que é diferente de “racismo oficial”, de governo – que, conforme Foucault, é “um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos, um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social”. (Foucault, Em defesa da Sociedade).

Voltando ao referendo: por lei, depende de iniciativa do Parlamento, onde se engendra um processo questionável de impeachment de Dilma. É aceitável que se acuse de temerária a proposta de pressionar o Congresso a convocar um referendo em vez acatar passivamente uma iniciativa autocrática da Câmara. Mas é igualmente insensato o que se passa num país no qual mesmo a Ordem dos Advogados apoia um processo de impeachment sem que a Presidência seja objeto de investigação judicial. A proposta de referendo é temerária, sim, mas seria igualmente ousada.

Evidente, há alternativas ao golpe jurídico-midiático.

Entre outras, está uma sinalização imediata, por parte do governo, de que agora haverá garantias reais de ruptura com os desvios praticados nos últimos 10 anos, expurgando alianças conservadoras que interditam avanços na Economia, na Regulação da Mídia, na Educação – o massacre à universidade é uma lástima –, na Saúde, na Segurança/repressão policial, na demarcação de terras indígenas, nas políticas para Mulheres, Mobilidade Urbana, Reforma Agrária e Urbana, Habitação, Meio Ambiente, nas Igualdades de Gênero e Racial, Anti Racismo (ausência que resulta no massacre da juventude negra, em grande medida por parte da violência policial).

A lista é longa e o governo tem de apresentar disposição em considerar mudanças de rota, reconquistando a confiança perdida nas alianças com as classes dominantes do mercado financeiro e com as grandes corporações. Uma delas foi com a Fifa, quando da realização das Copas das Confederações (2013) e do Mundo (2014), quando foi promovida a suspensão de direitos Civis e Humanos em nome de eventos que, supostamente, legariam melhorias na infraestrutura urbana. Legado, se houve, foi o do aumento da corrupção envolvendo conluios entre gestores públicos e dirigentes do futebol nacional e mundial, alguns ora presos pelo FBI, outros sendo investigados em processos no Judiciário e no Legislativo.

Um redirecionamento imediato e urgente das práticas

Recentemente, João Pedro Stédile, líder do insuspeito MST, declarou de público que “o governo Dilma é ‘indefensável’”. Dilma se desacreditou a tal ponto diante de toda a sociedade, à esquerda e à direita, que agora tem poucas opções. Entre elas, recorrer à liderança carismática de Lula, apesar do seu desgaste recente. O governo tem uma tênue oportunidade de se superar, se considerar essas e tantas outras questões, se fizer um mea culpa público, e assumir um compromisso real com o redirecionamento de suas práticas. Há milhões aguardando um pronunciamento de Dilma nesses termos. Assim, Lula, como “super ministro”, pode ter algum êxito.

Dilma não é política, não parece ter pretensões pessoais eleitorais futuras, portanto não tem nada a perder empoderando Lula. Ele talvez consiga fazer uma costura política com o Congresso e redirecionar a política econômica “à Keynes”. Na condição de ministro, Lula está parcialmente resguardado de notórios excessos jurídicos que têm ocorrido nos processos investigatórios e descumprem o Estado Democrático de Direito. Entretanto, terá que promover uma guinada nos rumos do governo. Somente assim se livra da imagem de que assumiu no Ministério para se proteger.

Lula deve explicações acerca de sua conduta pessoal recente. Há, sim, muito de obscuro a ser explicado diante das acusações que sofre. Contudo, o mais sensato é uma investigação e julgamento de seus atos no STF, de cujos membros a sociedade espera isenção.

O governo Dilma é um dos mais erráticos da História deste país. Se não considerar essas e tantas outras questões e não promover um redirecionamento imediato e urgente de suas práticas, pode estar a atestar o seu fim precoce. Legítimo, entretanto fragilizado diante da população, dificilmente o mandato de Dilma resistirá a um processo de impeachment que teve início no Congresso, a menos que aja ativamente com a suposta coragem que ofertou aos seus eleitores em 2014.

Há muitos outros aspectos, objetivos e subjetivos, tanto no âmbito interno país e de suas conexões com outros contextos e acontecimentos conturbados na América Latina (Zelada, Hugo Chávez, a atual situação da Argentina, entre tantos) que exigem análises específicas e que não puderam ser inseridos ou aprofundados neste artigo, mas que pretendo retomar em breve.

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Túlio Muniz é historiador, sociólogo, jornalista e professor universitário