Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A democracia e os moinhos de vento

Foto: Freepik

Num dos episódios de Dom Quixote, Miguel de Cervantes nos coloca ante um diálogo aparentemente insólito. Mais especificamente no Capítulo VII, nosso herói quixotesco aponta uma possibilidade ao seu “escudeiro”: “Vê ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos a vida, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.” Cético, Sancho Pança questiona: “Quais gigantes?” E recebe como resposta: “Aqueles que ali vês, de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.” Sancho então sugere: “Olhe bem Vossa Mercê, que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.” O episódio continua e Quixote segue em seu cavalo Rocinante para enfrentar os “gigantes”, desconsiderando a sugestão do escudeiro. Para além das análises e interpretações possíveis dessa que é uma das principais obras literárias de nossa cultura, o episódio faz pensar sobre o modo como Sancho Pança busca trazer o Quixote para a realidade: trata-se de uma confusão de moinhos com gigantes, de braços com pás.

A pesquisadora e política espanhola Irene Lozano retoma o episódio no livro Son molinos, no gigantes: Cómo las redes sociales y la desinformación amenazan a nuestra democracia (2020) para tratar de alguns dos principais desafios sociais e políticos do nosso tempo: a difícil relação entre informação, tecnologia e política, principalmente em relação aos efeitos da desinformação para as sociedades contemporâneas. Lozano aponta Sancho Pança como um “vigilante epistêmico”, isto é, alguém que coloca em marcha mecanismos argumentativos e o diálogo que facilita a racionalidade para escapar de uma narrativa e interpretação que parece desconsiderar os fatos e a realidade. Nesse caso, o escudeiro do Quixote representa uma atitude fundamental para os tempos atuais, quando as possibilidades tecnológicas possibilitam a grande disseminação de desinformação, através de notícias e informações falsas, descontextualizações, questionamentos vazios, entre outras ações. O vigilante epistêmico ocupa um lugar importante nessa situação, pois coloca em ação o conjunto de mecanismos cognitivos que nos permitem avaliar e calibrar a confiança nas informações que recebemos de nossos semelhantes. Esse processo ocorre através de questionamentos e exigências de justificação, atitudes fundamentais para o um tempo em que pós-verdade, fake news e falsos debates passaram a pautar os debates públicos e as decisões políticas.

Lozano, que foi deputada e atualmente ocupa a presidência do Conselho Superior de Esportes de seu país, desenvolve em Son molinos, no gigantes um reflexivo e informado ensaio sobre o impacto da desinformação e das interações sociais digitais para a convivência democrática e política. De maneira geral, o livro detalha as ameaças que o debate público sofre nas democracias contemporâneas, juntamente com os acontecimentos políticos e as revoluções tecnológicas que impactam decisivamente a deliberação pública. Primeiramente, destaca os modos pelos quais as novas tecnologias de interação social digital contribuem para a tribalização e a polarização política nas sociedades, amplificando as tensões e separações consequentes das crises sociais e econômicas de nosso tempo, como o aumento das desigualdades e os desafios de atribuição e consideração de cidadania de muitas pessoas. Tais contextos contribuem para que muitos se aproximem de discursos que ofereçam soluções simples e enganosas para os difíceis problemas contemporâneos.

A autora destaca também como os modos como pensamos e raciocinamos não nos torna imunes à desinformação. Na verdade, diferente dos modelos tradicionais que apontam a racionalidade humana como um elemento distintivo e muitas vezes infalível da nossa condição e natureza, Lozano mostra que nossas capacidades cognitivas são limitadas e possuem tendências e vieses que podem nos levar a crenças infundadas e questionáveis. Algumas das principais pesquisas contemporâneas das áreas de psicologia, filosofia e neurociências, entre outras, questionam a concepção comum acerca da racionalidade humana: não temos um “acesso privilegiado à verdade”, e podemos facilmente aceitar e crer que “moinhos de vento” são “gigantes”, pautando nossas decisões e escolhas com base em falsidades e incompreensões. As variadas formas de negacionismo, os debates pautados em desinformação e a aceitação e o compartilhamento de informações falsas mesmo por pessoas com altos níveis de escolaridade são exemplos desses limites, que muitas vezes são manipulados por atores políticos com o objetivo de conquistar e ampliar poder fazendo uso de estratégias que desinformam, promovem e estimulam emoções e reações negativas, tumultuando assim os debates públicos.

Segundo Lozano, a revolução nas tecnologias de informação e comunicação introduziram novas formas de interação social e de transmissão de informação, que geraram mudanças consideráveis nas nossas sociedades. Os modos como as plataformas das redes sociais são desenhados, pautadas pelo objetivo de nos engajar e estimular continuamente nossa atenção, juntamente com o modelo de funcionamento estruturado em algoritmos que buscam capturar nossos dados e “oferecer mais do mesmo” para ampliar o tempo de conexão, são elementos fundamentais dessas mudanças. No entanto, a mais intensa dessas mudanças envolve uma “crise nos modelos de vigilância do conhecimento”, pois tudo pode ser dito a todo momento por todos, e alguns discursos e crenças podem encontrar grupos que os aceitem e os tornem imunes à crítica e a reflexão. Aqui, a ascensão contemporânea de visões extremistas e violentas, pautadas muitas vezes em discursos vazios e sem fundamentos, são exemplos desse processo. O problema maior é que tais concepções passam a pautar os debates públicos e resultam em consequências sérias para a política e para a vida democrática das sociedades.

Lozano traz relativamente poucas respostas aos desafios informacionais e seus impactos sociais e políticos da atualidade. Defende a valorização da atividade jornalística e das autoridades do conhecimento, juntamente com a necessidade constante de manutenção da conversação pública séria e pautada em dados e informações seguras, além da reflexão sobre a regulação das plataformas. Um dos seus diagnósticos finais aponta que “A máquina da desinformação não apenas não é perfeita, mas se revela muito vulnerável à força da realidade.” Como vimos no caso da pandemia, os discursos negacionistas e pautados pela desinformação foram realmente vencidos pela trágica realidade que se impôs, infelizmente ao custo da vida de muitos. Porém, a manutenção de uma ampla rede de apoio à certos discursos e visões pautadas por informações falsas mostra que o desafio se mantém. Uma crítica é que Lozano não aprofunda acerca dos contextos de incerteza e dificuldades sociais e econômicas de nosso tempo, onde as desigualdades se ampliam cada vez mais e muitos de nós encontram cada vez mais dificuldades para a manutenção da vida. O ensaísta indiano Pankaj Mishra identifica nosso tempo como uma “Era de Raiva”, na qual poucos têm acesso aos benefícios da globalização e muitos ficam para trás, um contexto que contribui para a disseminação e a aceitação de narrativas e visões questionáveis e deturpadas, que exploram nossas fragilidades cognitivas e sociais.

Mesmo com tais observações, Son molinos, no gigantes: Cómo las redes sociales y la desinformación amenazan a nuestra democracia é um livro importante para compreensão do nosso tempo, nossos desafios e de nós mesmos. Compreender as mudanças nas formas de comunicação e nossos limites cognitivos e considerar que nenhum de nós está imune às possibilidades da desinformação estimula um cuidado com nossas interações sociais digitais, com nossa atenção e com a vigilância epistêmica necessária para a estruturação de visões de mundo estruturadas e coerentes. Nem todos nós temos Sancho Pança para nos questionar e exigir fundamentos e justificativas. Dessa forma, dependemos de nossa limitada racionalidade para escapar das perigosas armadilhas que são utilizadas para nos fazer confundir “moinhos de vento” com “gigantes” e que tantos impactos podem trazer para as nossas já frágeis democracias.

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José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais do IFMG Campus Ponte Nova. Realiza estágio pós-doutoral no Labô da PUC-SP e é pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa sobre Simbioses Humano-Tecnologias do IEA-USP.

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Referências

CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. Tradução de Ernani Ssó. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2012.

LOZANO, Irene. Son molinos, no gigantes: Cómo las redes sociales y la desinformación amenazan a nuestra democracia. Madrid: Ediciones Peninsula, 2020.

MISHRA, Pankaj. The Age of Anger: A History of the Present. Nova York: Farrar, Straus, and Giroux, 2017.