Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A erosão do poder de Bolsonaro e ataques à liberdade de imprensa na Alemanha

(Foto: Divulgação)

Na última semana, enquanto o desgoverno na pessoa de Jair Bolsonaro se apresentava diariamente aos seus súditos para as doses diárias de egotrip, a imprensa alemã, em peso, constatou a erosão do poder bolsonarista. A renúncia do juiz Sergio Moro foi o fato mais destacado do cenário político do Brasil em matérias em vários jornais e emissoras de rádio e TV.

No portal do noticiário de maior audiência do país foi publicado um artigo com o título “O governo Bolsonaro sofre de erosão”.

Um podcast veiculado no portal da Rádio Bávara sobre a crise no governo teve a opinião de Marcelo Freitas Mohallem, coordenador do Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV Direito Rio, que ficou devendo em sua análise rasa e generalizada. “Acho que o impeachment é factível a partir do momento em que os parlamentares constatarem que há uma maioria a favor, mas o procedimento dura muito. Até lá, muita coisa pode acontecer”, declarou.

O jornalista Ivo Stephan ainda desenrola o papel do juiz Moro, no plano bolsonarista, e atesta que, com a saída dele, Bolsonaro perdeu “apoio político de membros da classe média”.

O artigo de minha autoria, escrito em março e publicado na edição de abril jornal Stachel, do Partido Verde no bairro de Kreuzberg, em Berlim, apesar da dinâmica incontida, manteve alguma atualidade. No terceiro parágrafo, subtópico “Brasil à beira do abismo”, escrevi: “Está ficando solitário o terreno em volta do presidente. Seus três aliados, o ministro da Justiça, o presidente da Câmara e até mesmo o ministro da Economia, que há pouco tempo se colocou em autoquarentena e só estava despachando por telefone, estão se afastando dele”. Esse cenário alinhavado em meados de março tornou-se realidade. Moro foi despachado, o distanciamento político entre Rodrigo Maia e o presidente aumenta a cada dia e o ministro Paulo Guedes, considerando sua última coletiva, é o que sobrou num barco à deriva.

O suíço Tages Anzeiger também foca na erosão do poder de Bolsonaro.

O jornal Süddeutsche Zeitung titulou um artigo como “O presidente quer ficar”. No teaser, resume a derrota do governo em Brasília no contexto da crise da covid-19: “Jair Bolsonaro não consegue administrar a corona-crise, mas tem muito apoiadores. Seus adversários estão desesperados e anseiam o impeachment, porém isso seria fatal”.

O jornalista Jens Glüsing, correspondente de veículos alemães nos países da América do Sul, escreveu um artigo em parceria com a colega Marian Blasberg com o título: “O vírus do ódio – Jair Bolsonaro desmonta a democracia brasileira”. E diz: “No mundinho de Jair Bolsonaro, só existem dois tipos de pessoas: as boas, às quais ele soma sua família e seus apoiadores, e os comunistas”.

Desmoronamento

Todo o DNA da política externa que foi alinhavada pelo brilhante diplomata Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores durante o governo Lula, e depois da descoberta do pré-sal – momento em que o Brasil avançou ao patamar de força econômica -, vem sendo vertiginosamente desmontada pelo des-governo de extremistas de direita, do baixo clero, que sequestraram o Brasil. A frequência diária dos disparates e insanidades do presidente do Brasil vem chamando atenção do mundo, das organizações de direitos humanos, de liberdade de imprensa, mas também da sociedade civil. O fotógrafo Sebastião Salgado organizou um manifesto que pleiteia maior atenção do governo federal para os índios no contexto do combate à covid-19. O manifesto tem assinaturas de atores e atrizes do cenário internacional.

Na nova edição do índice 2020 do Repórteres Sem Fronteiras, a liberdade de imprensa no Brasil teve grande piora desde a posse de Bolsonaro. “No Brasil, desde 2018 o presidente e seus aliados ofendem e humilham especialmente jornalistas mulheres nas redes sociais, plantando um clima de ódio e desconfiança”.

O fenômeno dos adeptos da teoria da conspiração não é restrito às fronteiras do país continental, mesmo que as duas democracias, Brasil e Alemanha, estejam em estágios que não poderiam ser mais antagônicos. Em Berlim, já pela terceira semana consecutiva, mesmo violando as regras de isolamento e distanciamento social, alemães de direita e esquerda saem às ruas para pleitear o direito de ir e vir e levam a Constituição debaixo do braço se “vestindo” de democratas.

Imprensa standard x alternativa

Os meios de comunicação estabelecidos começaram ignorando, quase por completo, o primeiro dia de aglomeração. O jornal berlinense Tagesspiegel foi uma das poucas exceções. Entre os veículos presente no centro de Berlim estão o portal direitista KenFM e o canal de YouTube do ex-jornalista e apoiador do tirano turco, Erdogan.

Em entrevista ao KenFM, uma participante, visivelmente em regozijo por ser objeto de interesse da “mídia”, é perguntada por que está ali naquele lugar: “Estou aqui hoje porque não aceito a situação do jeito que está. Somos cerceados de forma massiva nos nossos direitos básicos. Eu não posso tolerar mais isso. Acho que ainda muito mais pessoas deveriam ir para as ruas, o que é permitido, mas parece que em Berlim, não”. Além disso, ela mencionou a decisão da maior corte jurídica do país no dia anterior (17/03), sem diferenciar o número de pessoas em Stuttgart e em Berlim. Com 500 pessoas nas ruas ao mesmo tempo, é totalmente inexistente a possibilidade de manter a distância, seja ela de 50 cm. “Não podemos ficar aqui, mas podemos ficar duas ruas próximas. Eu já desisti em encontrar alguma lógica nisso”, disse, sorridente. Nas imagens, aparece uma faixa exibindo “Acorde Alemanha”. Em um portal que se autodefine como “plataforma patriota para informação moderna e atual sobre política.

No dia 1º de maio, outra vez, membros da esquerda e da direita em extremos saíram às ruas para protestar contra as regras de isolamento. Nesse contexto, uma equipe do programa de sátira política de emissora aberta foi atacada. Premeditadamente, como foi divulgado na noite de domingo (3). O resultado foram quatro feridos que tiveram de ser levados para um hospital e seis pessoas presas, acusadas de fazer parte do grupo de, ao todo, quinze pessoas. As outras sete pessoas ainda não foram identificadas. Esse fato foi motivo para que a hashtag #heuteshow fosse o tópico mais comentado no Twitter na noite de sexta-feira (1).

Reação tardia

Na noite de domingo (03), o ministro do Interior classificou o ataque à equipe da ZDF como “ataque à liberdade de imprensa”. “A liberdade de imprensa é uma pilastra da nossa democracia. O Estado tem que garantir esse direito em todo o lugar e o tempo todo”, disse ele à Agência Alemã de Notícias (DPA).

Considerando que a emissora ZDF é pública e aberta, financiada diretamente pelos expectadores, a reação deveria ter sido imediata, e não depois de 48 horas.

No mesmo artigo do jornal berlinense Tagesspiegel é informado, pela primeira vez, que o ataque à equipe teria sido planejado e que o grupo teria fugido de bicicleta e de carro. Pouco depois, a polícia teria prendido alguns dos autores no carro.

A diferença de ataque à imprensa na Alemanha ou em qualquer lugar com uma corporação mais preparada e democracia mais arraigada do que no Brasil é que essas pessoas serão levadas ao juiz e irão responder a processos. Entre as diferenças está também o fato de que esses ataques não vêm do alto escalão do governo e muito menos da chefe de governo.

Os tempos estão áridos e tensos pelo mundo todo, mas, para o que acontece no Brasil, não há mais um adjetivo ou substantivo que descreva, porque, no dia seguinte, ele será substituído por novas manifestações de protesto e repúdio que não levam a nada.

Seria preciso um roteiro especialmente alinhavado para uma novela de terror, com capítulos diários. O que há pra falar? Quem irá frear essa família que, de fato, conseguiu incendiar o país? Quantas pessoas ainda terão que morrer e ainda por quanto tempo o Brasil permanecerá nesse estado de convulsão onde abutres estão onipresentes e saem à caça de adversários políticos sem qualquer punição? Não basta a desapropriação da camisa da seleção brasileira, que nunca mais poderemos usar? Ela e a bandeira tornaram-se a suástica do Brasil em 2020. O receio do filósofo e sociólogo alemão Theodor W. Adorno continua valendo: “Eu não temo os fascistas com máscara de fascistas. Eu temo os fascistas com máscara de democratas”.

O artigo de Jens Glüsing menciona a demolidora situação do Brasil, que luta com dois adversários mortais. O desmantelar da democracia brasileira é muito mais do que o regime e suas ferramentas: são vidas, biografias, sonhos, planos. Serão necessárias décadas para que o Brasil possa se reencontrar como nação.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.