A saudosa escritora Fernanda Young em sua última coluna – “O bando de cafonas” –, publicada em 26/08/2019, no O Globo, nos diz que pode parecer tratar de algo aparentemente banal, embora não seja, quando se propõe a falar sobre “o império da cafonice” que nos domina, porque a cafonice não se trata da escolha de um adereço ou de uma música, refere-se ao mau gosto existencial que nos aflige na exposição da deselegância, da mentira como tática, da ignorância por opção.
Se agora alguns parecem se assustar com o que viram na prova documental do ex-ministro Moro (a reunião dos ministros com o presidente, ocorrida em 22 de abril de 2020, e tornada pública por decisão do STF), é porque isso se deu no interior de uma reunião, supostamente fechada, de ministros. Imaginávamos que nesta circunstância a apresentação teatral política não precisasse ocorrer.
Contudo, o mau gosto está lá porque é uma prática dessa expressão estética da governamentalidade que se mantém apoiada, inevitavelmente, na antiética que lhe é constitutiva. A estrutura social que historicamente manteve as desigualdades, vem agora se manifestar na estética antiética, expondo o triunfo do autoritarismo como política de Estado.
Diante disso, não nos parece produtivo analisar os discursos buscando narrativas que se estiram em diferentes direções e indignações. Procurar o sentido verdadeiro da palavra encerrado em sua definição lexical (emprego do léxico resorts integrados, para não dizer cassinos) ou no preenchimento de uma sigla (“Pô, eu tenho a PF que não me dá informações.” – que o presidente logo se preocupa em justificar que não disse Polícia Federal, disse apenas PF) é acreditar na soberania do significante, é compreender as palavras como sentidos encerrados em si.
Para analisar os impactantes enunciados proferidos nesta reunião, exige-se que sejam lidos não para encontrar a intenção dos sujeitos falantes, mas para verificar as correlações com outros enunciados e as exclusões de enunciados que poderiam ter acontecido, mas não ocorreram.
O enunciado não se reduz a uma frase, uma proposição, um ato enunciativo (conforme Foucault, em A Arqueologia do saber), ele deve ser lido considerando (i) seus domínios associados, os enunciados que o cercam, (ii) a existência de uma materialidade repetível, no caso essa estética bolsonarista, (iii) e de um sujeito que ocupe a função enunciativa, recompondo insistentemente o lugar que ocupa (“Quem não aceitar a minha, as minhas bandeiras, (…) está no governo errado.”).
A mídia televisiva e digital logo se esforçou em construir a rede argumentativa da narrativa que julgou a mais verdadeira “conforme seu capricho, sua ilusão ou sua miopia” (Drummond de Andrade, em seu poema Verdade), apegando-se às palavras, ao contexto e até mesmo às imagens (Bolsonaro olha na direção do ministro Moro, vejam no vídeo, e isso comprova que era dele que se falava). Mas como dissemos anteriormente, há uma materialidade repetível e esta não se reduz ao enunciado linguístico.
Na reunião ministerial há uma estética atuando como um modo de sujeição, expondo ‘com orgulho’ o modo como cada um que enuncia se encontra vinculado a um conjunto de regras e de valores.
A estética deste governo é o modo de conduzir condutas antiéticas e quanto mais cada um mostra seus atributos em assumir essa estética, mais cresce seu valor no grupo. Não sem razão, que após a fala do Guedes, que debocha do necessitado (“Cadê o dinheiro do governo pra fazer isso [investir nas desigualdades regionais]? Num tem. Então quem tá sonhando, é sonhador.”), em resposta à proposição vinda de Rogério Marinho que em tom conciliador e polido é logo rechaçado e atacado (“Por favor, por favor, vamos refletir (…) O que eu peço é que nós tenhamos aqui as mentes abertas. E que os dogmas, quaisquer que sejam eles presidente, sejam colocados de lado nesse momento.”), ocorre a intervenção enérgica do ministro Ricardo Salles, que propõe aos pares a ilegalidade (“eu acho que o Meio Ambiente é o mais difícil, de passar qualquer mudança infralegal em termos de infraestru… e… é… instrução normativa e portaria, porque tudo que a gente faz é pau no judiciário, no dia seguinte. Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”).
Nesta competição para exibir a sujeição à estética do governo, a fala da ministra Damares, que sugere prender governadores e prefeitos, exige que a fala do ministro Weintraub suba ainda mais o tom de agressividade para manter a estética bolsariana (como os seguidores preferem ao invés de bolsonarista) e marcar seu afinco na luta militante. (“A gente tá perdendo a luta pela liberdade. É isso que o povo tá gritando. (…) Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF.”).
Por fim, o desfecho feito pelo presidente foi ainda mais adornado de palavras de ofensa, ameaças, agressões, carteiradas. (“Mas nós temos que, na linha do Weintraub, de forma mais educada um pouquinho, né? É… de se preocupar com isso. Que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade. O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso.”).
Cada um quis superar o seu anterior na estética (da cafonice) governamental. Mas ainda ao final, a palavra retorna ao ministro da economia, afinal são suas estratégias que sustentam esse governo em acordo com o grande capital. O tom poderia ser de agressão, já havia anteriormente intervenções do Paulo Guedes agressivas, mas é pior, é a pura expressão do bajulador do poderoso, a tática do espertalhão (“Então nós sabemos e é nessa confusão toda, todo mundo tá achando que tão distraído, abraçaram a gente, enrolaram com a gente. Nós já botamos a granada no bolso do inimigo. Dois anos sem aumento de salário. Era a terceira torre que nós pedimos pra derrubar.”).
Fernanda Young conclui seu texto dizendo que “só o bom gosto pode salvar esse país”; concordo plenamente. Ela nos chama a ler a estética desse grupo, cuja antiética é sua expressão maior. Deter essa marcha exige mais que interpretações de texto, mais que notas de repúdio, mais que indignação. Estamos atônitos, enojados, perplexos e isso prova que essa estética, esse modo autoritário e agressivo de conduzir a política de Estado tem atendido de modo eficiente os anseios deste ‘bando de cafonas’.
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Vanice Oliveira Sargentini é pesquisadora na área dos Estudos do discurso com interesse nas relações mídia e discurso político. Publicou o livro Mutações do Discurso Político no Brasil: espetáculo, poder e tecnologias de comunicação (Mercado de Letras, 2017). É Professora Titular, aposentada, do Departamento de Letras da UFSCar e visitante na UFPB.