Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A guerra metafórica de Bolsonaro pela imprensa

(Foto: Freepik)

A disputa de hashtags domina os espaços das redes sociais com mais força desde o pleito eleitoral de 2018. Intensificou-se nos últimos meses, com crises sequenciais envolvendo a política e as áreas de saúde e economia por conta da pandemia da covid-19 e das consequências do distanciamento social prolongado. Não à toa, um dos títulos da edição de 30 de abril do jornal Folha de S.Paulo, uma semana após a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, apontava não de fato uma polarização entre segmentos pró e contra, especificamente, ao presidente ou ao ex- ministro, mas, sim, uma espécie de conflito entre torcidas de um mesmo clube quando destoam na contratação ou demissão de um técnico ou jogador: “Guerra de hashtags e de narrativas opõe as várias direitas no Twitter”.

Se as hashtags que envolveram o aparente conflito entre os que permaneceram no apoio ao presidente e os possíveis dissidentes na situação emblemática do rompimento, a maioria delas, no entanto, é disseminada e se mantém a partir de impulsionamentos gerados por posições e falas de Jair Bolsonaro que estimulam rótulos (“comunista”, “esquerdista”, “petralhada”) para o adversário (ou “inimigo”?), ou almejam a intimidação pelo reforço ao egocentrismo (“sou eu que mando”), xingamento (“imprensa canalha”, “jornal patife e mentiroso”) ou constrangimento (“não sou coveiro”, “e daí”). Aí, sim, a polarização se acirra ao envolver seus seguidores e opositores, a partir de uma agenda direcionada pelas expressões “explosivas” do dirigente quase que diárias. Normalmente associadas a um conjunto de metáforas que projetam a ideia de uma guerra permanente, como a replicada pelo grupo denominado “300 do Brasil”, um dos responsáveis pelo ato do último dia 3 de maio, em Brasília. Após o evento, segundo integrantes em relato à jornalista Jéssica Almeida, colaboradora do podcast BH em Ciclo, eles estão em acampamento em lugar não divulgado no Distrito Federal se preparando “para uma guerra na selva”. O que aparentemente pode parecer surreal tem sido observado com atenção e constatado pelos fatos e opiniões de pesquisadores. Eles apontam evidências de que existe uma estratégia coordenada que se estabelece de maneira planejada.

Metáfora de viés bélico: “guerra ideológica”

Desde 1999, quando ainda era deputado federal e aparentemente não tinha pretensões a disputar a presidência, em entrevista concedida ao programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes, Bolsonaro já se referia às expressões bélicas publicamente. E não só pela formação de origem. Por exemplo, duas passagens são marcantes. A primeira, quando indagado sobre a democracia no país, respondeu: “o voto não vai mudar nada no Brasil. Só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando com FHC”. Ou, ao ser perguntado como resolver o problema do Brasil, enfatizou: “Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra, morrem inocentes. Eu até fico feliz se morrer, mas desde que leve 30 mil junto comigo”. A célebre polêmica, na época, rendeu ao então deputado uma ameaça de cassação que posteriormente foi esquecida. Mas a fixação no belicismo se manteve.

Um episódio recente de que a condição bélica permanece como ideia fixa na cabeça do hoje presidente e é bem aproveitada em suas manifestações é o episódio do início de abril, quinta- feira, dia 9, quando ele afirmou que havia uma “guerra ideológica” em torno do uso do medicamento – cloroquina ou hidroxicloroquina – contra o novo coronavírus. O mote, mais uma vez, ganhou repercussão: “Isso é uma guerra ideológica; em cima disso, guerra de poder”. Os que estudam a condição metafórica na sociedade percebem que, sob orientação e bem posicionada, ao ser expressa, a metáfora permite que boa parte da sociedade apreenda e interprete, de modo mais fácil, um recorte da realidade do quadro político – o que demonstra seu enraizamento na cultura brasileira e, portanto, integrada à vida cotidiana.

“Guerra justa” sob o incentivo do “pai estrito”

Dois reconhecidos estudiosos americanos das metáforas, George Lakoff e Mark Johnson, afirmam que inevitavelmente as pessoas reconhecem a realidade cotidiana e se relacionam umas com as outras pelo processo metafórico. De acordo com eles, é por conta disso que podemos nos inteirar do mundo em situações diárias, pois as metáforas estruturam a maneira como percebemos, pensamos e agimos.

Ambos consideram a terminologia simplificada das metáforas como algo significativo para validar determinada argumentação. Por exemplo: se imaginarmos um contexto em que o discurso alcança milhares de pessoas, como no caso político-partidário ou de governo. Ao perceber as metáforas que circulam em uma dada população ou em um grupo específico – e os valores imbricados -, um político ou seu partido as utilizam fartamente para “convencer”. E, normalmente, conseguem.

Inclusive, aliados de ocasião do presidente aproveitam a deixa momentânea para fortalecê-las. É o caso do ex-deputado pelo PTB, Roberto Jefferson, condenado por corrupção no chamado “mensalão”, em entrevista à apresentadora Leda Nagle pelas redes sociais no dia 29 de abril. Ao ser indagado sobre o risco de ocorrer uma guerra civil em caso de deposição de Bolsonaro, mesmo não citando de maneira explícita a metáfora da guerra, disse: “Eu aposto no nosso grupo. É uma base forte e disposta à luta. É uma base de leões. Se tiver que ir para a luta, vai. Se tiver que defender o chefe, esse grupo vai. Eles vão para a rua e vão defender. E nós também”.

Doutor em antropologia pela Universidade Complutense de Madri, o espanhol Gabriel Bayarri estuda as metáforas do bolsonarismo desde 2018 e diz que o ex-capitão articulou os valores arcaicos da sociedade brasileira num discurso eficaz. Aponta que o “agitador” (assim o denomina) Bolsonaro mobiliza as metáforas e massas de sentimentos e considera que seu uso pode chegar inclusive, no extremo, a “matar”.

Ao investigar os pronunciamentos de Bolsonaro, Gabriel reconhece que é pelos marcos bélicos que o eleitor de Bolsonaro (em suas diversas escalas de aderência ao projeto) estabelece seu pensamento, sua razão política, que, além de literal, é metafórica e imaginativa. O antropólogo aponta que a razão, no grave contexto eleitoral e de governo, não é ausente de paixão, mas emocionalmente comprometida, e se constrói principalmente de acordo com marcos morais como “Deus, pátria e família”.

Entre as metáforas observadas por Gabriel nos discursos e falas de Bolsonaro, destaca-se a que estabelece o medo e o desespero, ativados no que ele define como “guerra justa”, aquela que provoca o apoio ao modelo de “pai estrito” – outra metáfora observada pelo autor para alguém que percebe o mundo como um lugar violento e perigoso, espaço onde exercer a autoridade e a obediência formam parte da justificativa moral. Assim, lembra Gabriel, o universo masculinizado é representado, em que o pai é o chefe da família, inspira e organiza o quebra-cabeça das correntes conservadoras, existente, segundo o pesquisador, em cada um de nós. Para que exista uma ordem moral, é necessário, acrescenta o antropólogo, defender a soberania de instituições, por exemplo, como o Exército.

Ao conceber a construção dos marcos desse novo mundo do universo bolsonariano violento, Gabriel diz que se sustenta em três personagens – um vilão, uma vítima e um herói -, o que, na opinião dele, provoca naturalmente um antagonismo: “o herói, representante do bem e do restabelecimento da ordem frente ao vilão malvado, imagem do diabo, imoral e viciado. Assim, os que simpatizam com Bolsonaro simbolizam conceitos através da linguagem bélica, pois se percebem como vítimas, cidadãos de bem que só através da guerra e da vitória heróicas conseguirão restabelecer a ordem moral”.

Gabriel ilustra que a família Bolsonaro, liderada por Jair Messias, utiliza a metáfora da guerra justa associada à “família com pai estrito”. Ou seja: ao definir o “pai estrito”, Bolsonaro oferece uma guerra contra a corrupção, a violência e “pela defesa dos valores tradicionais”, e se propõe como herói na metáfora que ele mesmo tem construído e apresentado, que é da “guerra justa”.

Na real? Força! Contra quem?

Na obra O espectador emancipado, o filósofo Jacques Rancière diz que o real é sempre objeto de uma ficção, provocado por nossas percepções, pensamentos e intervenções, onde se entrelaçam o visível, o dizível e o factível, e a ficção é predominante e consensual, justamente por negar seu caráter de ficção e passar-se por real, ao estabelecer uma linha de divisão simples – tênue – da realidade e suas representações, aparências e opiniões. Uma consideração inspiradora para o jornalista Luciano Trigo, que fez com que expressasse em seu livro, publicado em 2018, que uma “guerra das narrativas” (a obra tem um título homônimo) permanece em curso no país pelo controle do imaginário da população, o que esgarça o tecido social brasileiro, provocando um cenário de histeria coletiva no qual a disputa entre “nós” e “eles” atingiu um patamar inédito.

Se as metáforas estão em disputas pela gama de narrativas circulantes cuja predominância é capaz de ditar os rumos da agenda brasileira, o real bate cada vez mais às nossas portas de maneira cruel quando um personagem do passado (no caso, o tenente-coronel reformado do Exército, Sebastião Curió Rodrigues de Moura, 81 anos, conhecido como “Major Curió”, nome simbólico da repressão durante a ditadura militar, denunciado seis vezes pelo Ministério Público Federal por participação em assassinatos e sequestros do período) ressurge fora de qualquer agenda, se encontra com quem preside o país na segunda-feira, 4 de maio, e, após o evento, torna público o que nenhuma metáfora precisa forjar em nossas mentes, pois o recado é duro e direto: “Dia de dois amigos se encontrarem e dizerem força!”. Aguardemos as próximas batalhas.

REFERÊNCIAS

BAYARR, Gabriel. Os valores e metáforas do universo Bolsonaro. Portal Outras Palavras. 27/10/2018.
PALUMBO, Renata. A metáfora da guerra nos discursos de Lula: um estudo sobre os processos referenciais e argumentativos. Revista Intercâmbio, volume XXI: 78-97, 2010. São Paulo: LAEL/PUC-SP. ISSN 1806-275x
SPOLADOR, Lui. Em guerra de hashtags, 1º de abril é mais associado à imprensa que a Bolsonaro. Portal Bites. 1/4/2020.
TRIGO, Luciano. Guerra de narrativas, a crise política e a luta pelo controle do imaginário. RJ: GloboLivros, 2018.

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Boanerges Balbino Lopes é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG), autor de livros e diretor da ABEJOR.