Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A língua de Bolsonaro

(Imagem: Fotos Públicas/ Alan Santos-PR)

A língua de Bolsonaro destila falta de decoro e ignorância. Fala em golden shower; o erro da ditadura foi torturar e não matar; somos um país cristão; eu jamais iria estuprar, você não merece; para mim [gay] é a morte; [indígenas] deviam ir comer capim lá fora; [negros] nem para procriadores servem; [ONGs] inúteis; vontade de dar um soco na sua boca.

A língua de Trump pipoca elementos sociopatas e lunáticos. Fala que beijava e “tocava mulheres na boceta” sem resistência por ser celebridade, em mexicanos “ladrões, traficantes, bandidos e estupradores”, e outras 77 palavras que a francesa Bérengère Viennot , no livro A Língua de Trump (ed. Ayiné), não reconhece a língua, não é English, é jerkish (paspalhês). A língua tira Trump do trono. Segundo The Economist ele “profanou os princípios que fazem dos Estados Unidos um farol para o mundo”. Na queda, arrasta a arrogância de líderes da direita autoritária e populista do planeta: Erdogan na Turquia, Duda na Polônia, Orbán na Hungria.

Kim Jong-un na Coréia do Norte perderá a química “misteriosamente maravilhosa” com Trump. Mas Trump arrota o crescimento de 7,4% do PIB dos EUA no terceiro trimestre contra Biden.

O Brasil, nem isso. Fica claro, quase dois anos depois, que a língua de Bolsonaro é o mesmo paspalhês e que os candidatos atrelados a ele derrapam nas pesquisas. Ou pelo menos, estar ou não com Bolsonaro tanto faz como tanto fez para 44,8% de eleitores ouvidos na pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes para o Instituto MDA. E 23,2% disseram que Bolsonaro até atrapalha. Para piorar, os rombos das contas públicas e as sequelas da Covid-19 vão forçar a dívida pública além dos 100% do PIB e o balanço só fica no azul em 2027. A derrota de Trump pode ser o princípio do fim de um mundo de grosseria, racismo, mentira, misoginia e hipocrisia. Mas no Brasil o desprestígio de Bolsonaro ainda vai se somar a mais uma geração patinando em 14 milhões de desempregados. Acumulando as perdas da geração dos anos 1970 que, como Eugenio Bucci disse no final do documentário Libelu (Liberdade e Luta) — Abaixo a Ditadura, “a nossa é uma geração derrotada”.

Não dá para reclamar dos US$ 258,570 que Abraham Weintraub vai receber por ano do Banco Mundial — três vezes mais o salário que recebia na pasta da Educação onde só fez estragos. Temos de agradecer por ver este ministro bem longe. Mas ao cidadão que reclamou da alta dos preços Bolsonaro mandou comprar arroz na Venezuela. A masculinidade assertiva do presidente reforça os machos. E os terrivelmente evangélicos se sentem fortes como os muçulmanos na França para atacar cartunistas ou escritores por suas obras. Depois da publicação no Twitter em junho “o brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”, João Paulo Cuenca sofreu múltiplos processos orquestrados provavelmente pela Igreja Universal. Cuenca parafraseava Jean Meslier que escreveu no século XVIII “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”. Da OAB à ABI, instituições decentes declararam apoio ao escritor.

Renato Aroeira está sendo investigado pela Polícia Federal pelo cartoon onde Bolsonaro transforma a cruz vermelha de um hospital em suástica. Tanto o cartunista quando o jornalista Ricardo Noblat, que reproduziu o desenho no Twitter, podem ser enquadrados na lei de Segurança Nacional reavivando a memória da ditadura. Quem está por trás é o mesmo ministro da Justiça, André Luis Mendonça, que defendeu investigações secretas da Agência de Inteligência, Abin, em mais de uma centena de apoiadores de manifestos antifascistas.

A língua de Bolsonaro é a de um falastrão mas silencia diante do sigilo imposto até 2035 pelo Itamaraty às informações trocadas há um mês entre o secretário de Estado americano, ex-CIA, Mike Pompeo, com o chanceler Ernesto Araújo. Os documentos “secretos” não têm nada relevante. Ficou óbvio que a visita, 50 dias antes das eleições americanas, aos países que fazem fronteira com a Venezuela — Brasil, Colômbia e Guiana, além do Suriname —, era campanha para captar votos latinos à eleição de Trump. Pompeo chamou Nicolás Maduro de “narcotraficante” e Araújo o endossou, “é um narcorregime”. Seis ex-chanceleres condenaram a visita a Roraima como plataforma de “provocação e hostilização a uma nação vizinha”. Bolsonaro continua a torcer pelo errático Trump, “não preciso esconder, é de coração”.

Bolsonaro convidou 12 diplomatas estrangeiros a visitar a Amazônia. “E eles não verão queimadas nem devastação”. Será nesta semana e está nas mãos de Hamilton Mourão provar que não existiu fogo onde o INPE e os satélites internacionais captaram. A Noruega não virá. É o maior doador (90%) do Fundo Amazônico que recebeu mais de R$ 3,4 bilhões desde sua criação em 2008. Mas Ricardo Salles alegou irregularidades no Fundo e interrompeu as doações. A pesquisa Datafolha contratada pela ONG Greenpeace Brasil revelou que 73% dos entrevistados condenam o aumento do desmatamento este ano e 46% consideram a gestão de Bolsonaro na Amazônia ruim ou péssima. Joe Biden só dá duas opções ao Brasil, ou um Fundo de US 20 bilhões para preservar as florestas, ou sanções econômicas.

Salles personifica olavistas contra militares na disputa com o vice Hamilton Mourão. Ao seu lado a turma pesada de Carluxo, o ministro das Comunicações Fabio Wajngarten, o chanceler Araújo e a criacionista ministra Damares Alves caricaturada pela fundamentalista que grita “eu vi Jesus no Batatal” no posdcast O Direito de Pensar da escola da Magistratura carioca Emerj. (Damares está cotada para substituir Mourão na vice-presidência). Do outro lado, os generais que povoam o governo, Luis Eduardo Ramos (Secretaria do Governo), Braga Netto (Casa Civil), Eduardo Pazuello (Saúde), Fernando Azevedo e Silva (Defesa).

A briga é feia. O general de reserva Santos Cruz, sem dar o nome aos bois, reclamou do ministro do Meio Ambiente por “desrespeito geral, despreparo, inconsequência e boçalidade”. Salles chamou o ministro Luis Eduardo Ramos de #mariafofoca. O presidente da Câmera, Rodrigo Maia revidou, “Salles não só destrói só a mata, destrói o governo”. Salles rebateu chamando Maia de Nhonho, “tonto”, referência a um menino gordo do seriado mexicano Chaves, apelido do gosto dos bolsonaristas. A língua do governo não é palaciana.

O general Otávio Santana do Rêgo Barros, num artigo publicado semana passada no Correio Braziliense, reagiu. Chama veladamente Bolsonaro de “imperador moral”, “governante piromaníaco” que será “rigorosamente punido pela sociedade”. O título Memento Mori (lembra-te que és mortal) critica “os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. O poder “corrompe, inebria e destrói”.

Como Pazuello no episódio da compra das vacinas “da China”, Barros foi humilhado antes de ser exonerado do cargo de porta-voz do governo. Este é um governo de militares, há mais de 7000 e, quando menos se espera, surge mais um. O novo diretor-presidente da Anvisa é o contra-almirante da Marinha, Antônio Barros Torres. Semana passada o coronel da reserva Paulo Cézar Dias Alencar foi escolhido substituto do secretário de Desenvolvimento Cultural, da Secretaria Especial de Cultura.

Este também é o governo de “terrivelmente evangélicos” e vai aumentar. Só entre os candidatos para as próximas eleições municipais há quase 5000 pastores ou pastoras. Nunca tantos se interessarem pelos pobres, tantos tiveram passado pobre, todos numa campanha pobre de ideias compradas por cerca de R$ 100,00 dos sites de marketing político digital como Conteúdo para Vereador ou Nufoco, de Governador Valadares. Os magos imberbes que carregam o título de digital influencers dão sugestões — pobres — a diversos candidatos de várias cidades e países, que se repetem feito papagaios gagos.

A língua de Bolsonaro e de seu governo não é a do centro do mundo. Estamos virando ilha. Seu governo quer acabar com o aumento real do piso salarial de professores, privatizar Universidades públicas que constam da lista das melhores do mundo, alterar a História nos livros, arrancar verbas da Fundeb e de agências de fomento como a Fapesp. Quando contamos 5 milhões e meio de infectados e 160 mil mortos por Covid, Bolsonaro quis privatizar o SUS. O governo elegeu seus heróis, o capitão e as altas patentes prestam homenagem ao Dr.Tibiriça, major Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI entre 1970 e 1974, responsável por sequestros, torturas e mortes.

A língua de Bolsonaro diz que-não disse-o-que-disse. No meio das trevas choramos o lamento de Eugenio Bucci no documentário Libelu — Abaixo a Ditadura: nossa geração foi derrotada.

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Norma Couri é jornalista.