Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A megalomania, vaidade e blasfêmia de André Mendonça

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Logo depois da aprovação de André Mendonça para ministro do STF, comentamos ter sido um tanto irresponsável, por parte da maioria dos senadores, a escolha de um pastor evangélico, sem grande experiência jurídica, para fazer parte do grupo seleto dos juristas do STF, num atentado ao nosso Estado laico. Mais que um passo em falso, foi um salto para trás.

Vejam bem, no STF não há padres juristas e nem os juristas católicos fazem questão de colocar em evidência sua crença. Nenhum deles falou em fazer uma oração antes de participar de cada sessão, como disse Bolsonaro que Mendonça faria, e nem convocou os fiéis católicos para afirmar ter uma missão a cumprir dentro do STF em favor de Deus ou de Cristo. Nenhum deles precisou se dividir em dois para dizer: dentro do STF cumprirei os preceitos constitucionais no que se referem ao Estado láico ou secular, porém quando sair na rua e for para casa vou defender o catolicismo e obedecer a Deus.

Essa a grande diferença, que acentua a irresponsabilidade dos senadores ao ignorarem a laicidade de nosso país e terem votado por uma pessoa mais pastor evangélico que jurista, e pior ainda, pastor evangélico fanático. Depois de confirmada sua escolha, Mendonça não se reuniu com seus amigos advogados, juristas e professores de Direito pertencentes à Ordem dos Advogados do Brasil, para comemorar sua entrada no STF. Não, porque nem deve ter, por não fazer parte desse clã.

André Mendonça, desconhecido até ser indicado pelos evangélicos ao presidente eleito com votos bíblicos, preferiu ir a uma igreja e fazer um discurso de agradecimento a Deus. Qual Deus? Ora, o Deus dos evangélicos: era esse Deus que desejava ter um representante dentro do Supremo Tribunal Federal, ele André Mendonça. Os ministros do STF católicos e judeus não são representantes desse mesmo Deus? Parece que não!

E agora Mendonça dá uma volta pelas igrejas, a fim de agradecer seus irmãos, como se diz, irmãos na fé. Será que todo esse carnaval é para depois ir votar de forma laica no STF? E decepcionar os irmãos? Difícil de acreditar um André, tão beato, votando diferente do credo evangélico. Para decepção da senadora Simone Tebet, cujo voto aberto era de confiança num ministro Mendonça laico.

E qual a primeira igreja escolhida? Ora, a do Silas Malafaia, o homem de Deus, que anuncia mesmo o próximo fim do mundo. Nem precisa ser um grande profeta, porque com o desmatamento da Amazonia, o planeta vai esquentar mais depressa e será mesmo o fim do mundo! Fim do mundo antecipado pelos próprios bolsonaristas que ignoram o aquecimento climático! Ora, nessa igreja da Penha, de Malafaia, Mendonça fez uma declaração um tanto estranha, que exige reflexão e à qual retornaremos mais embaixo.

Enfim, a Constituição, além de ser laica. garante o direito de as pessoas terem uma religião e serem devotas ou fanáticas ao seu gosto. Desde que, é claro, não interfiram no direito das outras pessoas terem também uma outra religião ou de não terem nenhuma. Tudo se complica quando a pessoa passa a ocupar um cargo na Justiça, no qual deverá ser neutra e independente para julgar outras pessoas, sem se deixar influir pelo credo, moral, valores e normas de sua própria religião.

Estranhos tempos estes, dizia meu último artigo, no qual os comentaristas políticos são obrigados a se referir a versículos bíblicos. E, novamente, todos os comentaristas tiveram de se reportar ao livro de Atos dos Apóstolos, escrito por Lucas, logo depois da comemoração feita, ainda no prédio do STF, logo após a confirmação de André Mendonça como ministro pelos senadores. A razão foi a inesperada euforia da senhora Michelle, esposa do presidente Bolsonaro, que, saltitando, pronunciava palavras incompreensíveis.

De acordo com Atos dos Apóstolos (e até eu começo a usar a Bíblia nos meus comentários!), logo depois da ressurreição e ascensão de Cristo, seus apóstolos, tocados por línguas de fogo, receberam do Espírito Santo, o dom de falar línguas desconhecidas para explicarem aqueles últimos acontecimentos aos estrangeiros, como por exemplo os soldados romanos. Naquela época, havia estrangeiros de todos os lugares em Jerusalém.

Ora, crendice, superstição e ignorância, sem se falar em simulação, são a seiva das religiões em países de fraca formação cultural como o Brasil. Assim, as palavras incompreensíveis pronunciadas pela senhora Michelle foram logo interpretadas como o dom de línguas dado aos apóstolos. Isso ocorre com frequência no ramo pentecostal dos evangélicos, mesmo porque o próprio nome da denominação vem da festa de Pentecostes, em que os discípulos pregaram, pela primeira vez, o cristianismo.

Seriam línguas de fogo invisíveis que tocaram na cabeça da senhora Michelle e a encheram do Espírito Santo, fazendo-a louvar em inglês, francês ou alemão a escolha de André Mendonça para o STF? Para mim, essa história publicada por toda imprensa está mais para teatro do que religião. Porém, para muitos evangélicos, sempre à espreita de um sinal de Deus, Michelle falou em línguas estranhas. Mas qual a tradução do que disse? Se era sinal de Deus (também não creio nisso), algumas pessoas deviam ter entendido a língua, para saber qual era o sinal. Sem isso, seria só excesso de entusiasmo da senhora Michelle, mistura de dança e teatro,

Porém, não é o que pensa o novo ministro evangélico laico do STF, André Mendonça. Num culto dentro da Câmara dos Deputados, conta o site Metrópoles, destinado a parlamentares, André Mendonça fez a seguinte declaração: “Em terceiro lugar, (referindo-se a uma foto na qual aparece a esposa do presidente), aí chamo a atenção para a dona Michelle: a manifestação do Espírito Santo. Alguns setores da sociedade têm mal interpretado e até agido com grau de preconceito, por não entender. Mas ali estava o Espírito Santo de Deus”.

E retornamos aqui à declaração do novo ministro do STF, na igreja do pastor Silas Malafaia, gravada e filmada, divulgada pelo UOL. O que foi que disse o pastor elevado a jurista do STF por Deus?

Falando dele na terceira pessoa, o ministro terrivelmente evangélico disse, explicando a votação do Senado em seu favor: “não é porque o André tinha de ser aprovado, é porque era do plano de Deus, estava estabelecido por Deus desde antes da fundação do mundo, que um menino (ele) ira sair dali e ia chegar aqui”.

Em outras palavras: “era do plano de Deus, estava estabelecido por Deus desde antes da fundação do mundo!!!” que o André Mendonça tinha de ser aprovado, onde? no STF” — desde antes da fundação do mundo!!!

Ele disse mesmo isso? Sim está gravado e filmado. E com essa linguagem de crendice ingênua, ele vai ser ministro do STF? Sentar-se ali no meio dos eruditos, descartados por Deus por serem católicos ou judeus ou sem crença? Surpreende o nível! Só mesmo no Brasil pode alguém falar um vexame desses e ninguém cair na gargalhada!

Desde antes da fundação do mundo? Antes da Globo, do Estadão, antes das fake news da Jovem Pan, antes do UOL? E nós jornalistas sem saber nada! Poderia nos ter dado a dica — “olha aí meus caros, já falei com Deus e ele me garantiu 47 votos, inclusive alguns do PT”.

Me desculpem, eu não aceito isso. Para quem acredita em Deus, isso é uma blasfêmia. Para quem é psiquiatra, isso é conversa de doido, bom para entrar num hospício. Sua eleição para o STF fazia parte do plano de Deus, desde antes de Cristo! Isso ultrapassa o admissível. É também vaidade excessiva, um alto conceito de si mesmo que permite o contato com Deus (para quem acredita nisso). Eu sou o bom, porque Deus me escolheu desde antes da criação do mundo para entrar no STF!

Ou, então, o novo ministro é um megalômano, dono de um ego maior do mundo! E isso, para quem crê, é também pecado!

Enfim, o tartufo escolhido por Deus desde antes de Cristo não estava só, nessa versão ridícula e absurda de uma eleição, na qual todos votaram achando que será um peão, por enquanto de Bolsonaro e depois de quem vier. Ali estavam muitos representantes do novo poder evangélico que, daqui a alguns anos, vai governar o Brasil. O governador do Rio, do qual o escolhido de Deus esqueceu o nome, o ex-artilheiro Romário, senadores, vereadores, desembargadores, pastores e o povo de Deus. Os outros são povo do Diabo? E ninguém riu de Mendonça ter sido escolhido para o STF antes da criação do mundo.

Mendonça se nomeia o representante de Deus, o Deus da Bíblia. Mas não é, coisa nenhuma. Se fosse um homem de Deus, não teria usado de sua função para tentar processar jornalistas por delito de opinião por terem criticado Bolsonaro, com base na lei de segurança nacional da ditadura e nem teria forçado a abertura de igrejas durante o momento mais grave da pandemia. E nem teria feito parte de um governo que defende armas para todos.

Esse vai ser o ministro mais conservador, mais carola, mais beato, menos preparado e mais perigoso que já tivemos. Obrigado senadores pela maravilhosa escolha!

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.