Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A rede de fake news que derrubou Mandetta

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública)

Ethel Rudnitzki, Laura Scofield, Raphaela Ribeiro, Natalia Viana (texto) e Bruno Fonseca (infográficos)

No dia 27 de março, em entrevista ao programa do Datena, na TV Bandeirantes, o presidente Jair Bolsonaro lançou uma dúvida sobre os dados de mortos por coronavírus em São Paulo: “Sem querer polemizar com ninguém, tem um estado aí que orientou via decreto que, em última análise, se não tiver uma causa concreta do óbito, bota lá coronavírus, pra colar”. Ele prosseguiu, depois de Datena deixar claro que o estado era mesmo São Paulo, governado pelo seu agora arqui-inimigo João Doria (PSDB). “Se tá todo mundo morrendo de coronavírus, é sinal de que está fraudando a causa mortis das pessoas, querendo fazer uso político de números, é isso que a gente não pode permitir”, disse.

“Não tô acreditando nesses números”, concluiu.

Embora não haja nenhuma evidência de que os dados de São Paulo sejam inflados – na verdade, reportagem da Agência Pública demonstrou que eles são provavelmente subestimados -, o presidente reafirmava na TV aberta um discurso que borbulhava nas redes bolsonaristas. Ele não estava sozinho.

Ao mesmo tempo, dezenas de perfis no Facebook e no Twitter começaram a por em dúvida os dados de mortos por covid-19, bem como os portais bolsonaristas “Brasil Sem Medo”, Estudos Nacionais e Movimento Brasil Conservador – esse último escreveu um editorial acusando Doria de “acelerar” mortes. O site da República de Curitiba chegou a publicar erroneamente que o governo de São Paulo decretara que qualquer cadáver deveria ser considerado portador de covid-19.

“Muitos relatos de pessoas que morreram de outras causas, mas seus óbitos estão sendo registrados como decorrentes do vírus chinês. O que está acontecendo?”, tuitou o influenciador bolsonarista Leandro Ruschel em 29 de março.

Parlamentares também disseminaram essa narrativa. “Incrível como @jdoriajr é sorrateiro. Fala q não é hora fazer política, mas já atribui as mortes q sequer aconteceram ao PR @jairbolsonaro. Fala que não é hora de ódio, mas faz um discurso de puro rancor. Lembrando que o dinheiro que abre os estádios p o COVID é do gov federal”, tuitou a deputada federal Carla Zambelli.

Ato contínuo, a narrativa virou memes e voou para os grupos de WhatsApp. Segundo levantamento feito pelo núcleo de pesquisas Eleições Sem Fake, da UFMG, junto a 522 grupos de WhatsApp, a foto mais compartilhada no mês de março reflete essa ideia: a certidão de óbito de um rapaz de Recife, que foi internado após acidente com explosão de pneu, com causa de morte por covid-19. A imagem do documento – cujo erro foi admitido por autoridades e corrigido antes de entrar para os números oficiais – foi compartilhada 696 vezes entre os dias 28 e 29 de março e foi usada para desacreditar o número de mortes por coronavírus.

No dia 29, a deputada federal Bia Kicis publicou nas suas redes um vídeo falando sobre o caso. “A quem interessa que um hospital coloque uma causa da morte falsa?”, insinuou.

No mesmo dia, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) ironizou pelo Twitter: “Todos os óbitos do mundo passaram a ser por conta do corona, o vírus pop que tirou o palco de todas as doenças”.

A movimentação não tem nada de espontânea.

Ela seguia a estratégia abraçada pelos apoiadores do presidente desde o final de março, quando Carlos Bolsonaro voltou a orientar a estratégia do pai, enfraquecido nas redes diante da crise do coronavírus, enquanto o ex-ministro da Saúde ganhava proeminência política. Segundo fontes que acompanham a CMPI das Fake News ouvidas pela Agência Pública, o “gabinete do ódio”, que andava quieto por causa dos avanços da investigação parlamentar, agora voltou com tudo. Seu principal objetivo: acabar com o ministro Mandetta – demitido nesta quinta-feira, 16 de abril – e relaxar as medidas de isolamento social e o seu impacto econômico. A estratégia incluía acabar com a até então unanimidade na opinião pública sobre isolamento social, disseminar dúvidas sobre dados oficiais – como o de São Paulo -, difamar oponentes e inflar teorias da conspiração.

A estratégia atingiu seu objetivo no dia 16 de abril, com a demissão de Mandetta, sob poucos protestos. Estudiosos avaliam que ela foi bem-sucedida e os envolvidos podem ser penalizados por colocar a saúde da população em risco, segundo parlamentares e promotores ouvidos pela Agência Pública.

O plano: retomar as redes

Apesar dos riscos legais, o “gabinete do ódio” entrou em ação por um simples fato: desde o começo do ano, Bolsonaro vinha perdendo o protagonismo nas redes.

Uma pesquisa realizada pela empresa de comunicação AP Exata revela que as sensações em relação ao presidente têm sido majoritariamente negativas desde janeiro. Ou seja: somadas as postagens que representam os sentimentos de medo, tristeza, raiva, antecipação e desgosto, elas representam maior número do que as de confiança, alegria e surpresa.

Outro estudo, realizado pela FGV, demonstrou que, antes do dia 15 de março, a base pró-Bolsonaro havia perdido metade do apoio no Twitter – as interações haviam caído de 12% para 6,5% até o dia 15 de março.

Um tuíte do perfil Bolsoneas, apontado como parte do chamado “gabinete do ódio”, indica a preocupação com a perda de apoio. “Estão dizendo por aí que a base de apoio ao Presidente Bolsonaro nas redes sociais acabou com a chegada do coronavírus. Alguém aqui ainda apoia Bolsonaro?”, tuitou em 19 de março. A publicação atingiu mais de 7 mil retuítes e 41 mil curtidas.

Sérgio Denicoli, da AP Exata, ressalta que essa geração de conflitos faz parte de uma estratégia de comunicação do governo moldada para as redes sociais. “O funcionamento da rede vem do conflito, quando não há conflito a coisa fica muito morna. Por isso, Bolsonaro aposta na divisão”, explica.

O cientista político Oliver Stuenkel concorda. “Para a estratégia política de Bolsonaro, quanto mais culpados, melhor.” Isso explica por que a disseminação de teorias da conspiração e notícias falsas funciona tão bem para o governo Bolsonaro. “A narrativa bolsonarista é muito antissistema, então essas teorias de conspiração dão a sensação, para muitos eleitores, de que o Bolsonaro é muito ousado ao publicamente abraçar essas teses”, explica. Embora a radicalização faça com que o presidente perca apoio de pessoas menos radicais, ela é uma “ótima oportunidade para mobilizar os seguidores mais radicais”, defende.

O 25 de março foi um marco histórico nas redes bolsonaristas

As fake news bolsonaristas tiveram uma primeira onda em 19 de março, quando perfis automatizados e engajamento de influenciadores digitais conseguiram levantar a hashtag #VirusChinês, conforme revelou a Agência Pública.

Mas o marco da virada da narrativa foi o dia 24 de março, quando Bolsonaro fez um pronunciamento em cadeia nacional que surpreendeu até mesmo aliados, colocando-se frontalmente contra a determinação do Ministério da Saúde. “O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, os empregos devem ser mantidos, o sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade”, disse.

Nos dias seguintes ao pronunciamento, o governo lançou a campanha “O Brasil Não Pode Parar”. Foram produzidos vídeos e peças para redes sociais que chegaram a ser divulgadas pelas páginas oficiais da Secretaria de Comunicação (Secom), mas foram retiradas de circulação após o Ministério Público entrar com Ação Civil Pública contra a campanha.

A campanha procurava engajar aliados com as hashtags #OBrasilNãoPodeParar e #BolsonaroTemRazão, que chegaram aos assuntos mais comentados do Twitter. Além delas, aqueles que defendiam o isolamento passaram a ser foco de ataques e difamações. Tags em oposição a governadores e até ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, entre elas #ImpeachmentDória, #ImpeachmentWitzel e #ForaMandetta, também chegaram aos trending topics.

Em um primeiro momento, o pronunciamento do presidente foi mal recebido. O pronunciamento foi rechaçado por 45% dos compartilhamentos, segundo levantamento do Monitor do Debate Público no Ambiente Online da USP. No dias subsequentes, contudo, as reações começaram a mudar. Do dia 24 de março até 14 de abril, as postagens de páginas de direita no Facebook a respeito do assunto tiveram maior repercussão do que as de esquerda. Enquanto aquelas receberam cerca de 650 mil compartilhamentos, essas receberam 410 mil. Além disso, as publicações pró-pronunciamento tiveram cerca de 590 mil compartilhamentos e as contrárias tiveram 466 mil.

(Foto: Reprodução Agência Pública)

Para o pesquisador Márcio Moretto, um dos coordenadores da pesquisa, a adoção do discurso anti-isolacionista representou um marco histórico nas redes bolsonaristas. “O que me chamou a principal atenção dessa vez foi que ele teve um pico no número de novos seguidores em todas as plataformas”, explica Moretto. “Nas mídias sociais, Bolsonaro saiu em vantagem”, conclui. Tanto no Facebook quanto no Twitter, YouTube e Instagram, Bolsonaro teve um pico no aumento de seguidores do dia 24 a 26 de março. No Facebook, esse foi o maior aumento em um ano.

Para Sérgio Denicoli, da AP Exata, a estratégia visava retomar o apoio perdido nas redes sociais. “Ele radicalizou o discurso para buscar de novo essa militância, fazer com que ela falasse.”

E, de fato, a rede se movimentou. De acordo com levantamento da AP Exata, a hashtag #BolsonaroTemRazao foi a mais usada por perfis geolocalizados no Brasil durante o período de 24 de março a 7 de abril deste ano, com 14.575 tuítes. Outra tag parecida, #BolsonaroTemRazaoSim, ficou em quarto lugar, com 3.169 postagens. Já #OBrasilNãoPodeParar foi a 14ª mais usada, com 1.695 tuítes.

Em segundo lugar, ficou a #ForaBolsonaro – com 10.132 postagens.

Carlos e Flávio Bolsonaro, Bia Kicis, Paulo Eduardo Martins, Marcel Van Hattem

Apontados como idealizadores do pronunciamento do dia 24 de março e da campanha “O Brasil Não Pode Parar”, o vereador Carlos Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro estiveram presentes em pelo menos três reuniões no Palácio do Planalto com o presidente, ministros e secretários como Onyx Lorenzoni, Ernesto Araújo, Ricardo Salles e Luiz Nabhan Garcia entre os dias 24 e 28 de março – período de contratação e formulação da campanha, segundo apurou a Agência Pública.

“O remédio não pode ser mais letal que a própria doença”, tuitou Flávio Bolsonaro no dia 24 de março, acompanhado da hashtag #OBrasilNãoPodeParar.

Além dos filhos do presidente, parlamentares aliados participaram da produção e disseminação da campanha. No dia 27 de março, os deputados Bia Kicis (PSL–DF), Paulo Eduardo Martins (PSC–PR) e Marcel Van Hattem (NOVO/RS) se reuniram com o presidente para tratar de pautas relacionadas ao coronavírus – conforme consta em agenda oficial. Os três publicaram, respectivamente, 41, 43 e 10 tuítes sobre o tema em março, a maioria entre os dias 24 e 31 de março.

Martins chegou a publicar vídeos dizendo que o isolamento social não é sustentável. “Quem vai sustentar a saúde pública que cuida dos doentes se ninguém produzir e trabalhar para sustentar a família e pagar impostos?”, questiona.

Já Kicis se engajou mais em minimizar o problema do coronavírus, combatendo o que ela chama de “histeria e a pirotecnia feita pela mídia e por alguns governadores”. A deputada compartilhou notícias falsas sobre suposta inflação no número de mortes sobre o coronavírus.

Outros políticos também tiveram grande influência no debate de bolsonaristas sobre o coronavírus. A deputada Carla Zambelli (PSL–SP) publicou 111 tuítes sobre o tema em março, seguida por Daniel Silveira (PSL–RJ), com 100 posts, José Medeiros (PODE–MT), com 75, e Osmar Terra (MDB–RS), com 70. O ex-ministro foi apontado como o congressista que mais difundiu notícias falsas sobre o coronavírus no Twitter pelo levantamento do Aos Fatos.

Para a relatora da CPMI das Fake-News, Lídice da Matta (PSB–BA), políticos que estiveram envolvidos na disseminação de notícias falsas sobre o coronavírus e na campanha “O Brasil Não Pode Parar” “devem ser levados à Comissão de Ética, que pode vir a punir esse tipo de prática”.

O promotor de justiça Alexandre Chaves, um dos responsáveis pela Ação Civil Pública contra a União que conseguiu suspender a campanha, explica que os filhos do presidente só não foram intimados pela Justiça por terem imunidade parlamentar. A acusação considera a campanha ilegal pela falta de respaldo científico dos impactos à saúde de uma proposta anti-isolamento – exigido pelo princípio de precaução para projetos públicos – e pela contradição da medida com as recomendações do próprio Ministério da Saúde. “O poder público tem que agir inspirando confiança e de forma coerente para os cidadãos. A gente está diante de uma situação incorreta quando um órgão técnico emite um grupo de orientações diante de uma crise de saúde pública e em seguida é contestado no canal de comunicação institucional do governo”, explica Chaves.

A Ação Civil Pública foi arquivada pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras. Mas parlamentares ouvidos pela Pública acreditam que os autores ainda podem ser responsabilizados. “Ela é uma campanha com dinheiro público, feita pelo governo, e que tinha o objetivo de disputar a opinião pública para um tipo de ação que combatia as regras da OMS”, defende Lídice da Matta. “Eu acho que é plenamente possível uma responsabilização do Estado brasileiro e da Presidência da República.”

O deputado Rui Falcão (PT–SP) protocolou, junto à Justiça Federal, ação pelo afastamento do vereador Carlos Bolsonaro das atividades relacionadas ao Planalto. Segundo o petista, a atuação do filho 02 do presidente “é um desvio de finalidade e é um crime de improbidade administrativa Bolsonaro permitir que o filho, que é vereador, tenha função pública no plano federal e estimule o chamado ‘gabinete do ódio’”. Para ele, a situação é agravada pela interferência do vereador em políticas de combate à covid-19.

Rui Falcão, também membro da CPMI, lembra que esses parlamentares que compartilham notícias falsas podem ser indiciados ao final dos trabalhos. “A CPMI retomando, podemos avançar nas investigações. E, nesse caso, os propagadores de fake news no período do coronavírus também podem ser responsabilizados. Inclusive, se for o caso, parlamentares também.”

Somados aos parlamentares, influenciadores digitais ligados à direita também endossaram a campanha pela volta do comércio e anti-isolamento. Os portais Renova Mídia, Conexão Política e Brasil Sem Medo publicaram, respectivamente, 452, 272 e 130 tuítes sobre o coronavírus em março. O influenciador Leandro Ruschel tuitou 184 vezes sobre o tema; Bernardo Kuster, 70; e Allan dos Santos, 67.

(Foto: Reprodução Agência Pública)

O Ministério Público, através da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, também entrou com representação por ação no Ministério Público de improbidade administrativa contra o ministro Fabio Wajngarten, da Secom, responsável pela campanha. A ação ainda não foi efetivada.

Bolsonaro ainda foi denunciado à Organização Mundial da Saúde pelo deputado Rui Falcão. O petista considera que a denúncia, se acatada, não vai intimidar o presidente, mas pode afetar sua legitimidade com uma parcela da população. “São efeitos políticos, eles não podem promover sanções contra ele, mas é um repúdio.”

Contudo, o cientista político Oliver Stuenkel defende que, mesmo que Bolsonaro venha a ser condenado pela OMS e a Secom responsabilizada pela campanha, ele sairá em vantagem. “Existe uma estratégia deliberada de aumentar o isolamento diplomático do Brasil. E isso faz parte da maneira como ele [Bolsonaro] opera. Precisa cortar laços para demonizar”.

O deputado Rui Falcão avalia que a oposição a governadores e ao ex-ministro da Saúde está dentro dessa “estratégia de dispersão” de Bolsonaro. “Ele tem um grupo de seguidores, que vem caindo, mas ainda tem um núcleo muito fanatizado, que chama ele de mito e tal, que ele frequentemente tenta tornar mais aguerrido. Foi dentro dessa lógica que ele demitiu o Mandetta.”

Publicado originalmente no site da Agência Pública.

***

Ethel Rudnitzki é formada em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Na Pública, fez parte do Truco – projeto de fact-checking – durante as eleições de 2018 e produz reportagens sobre redes sociais e desinformação.

Laura Scofield é estudante de jornalismo da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e estagiária de redação na Agência Pública.

Raphaela Ribeiro é jornalista formada pela Escola de Jornalismo Énois e estagiária de redação na Agência Pública.

Natalia Viana é editora, diretora e cofundadora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

Bruno Fonseca é repórter multimídia graduado e mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Trabalha com infografia, dados, vídeos e animação.