Em meados de novembro, o ex-presidente Lula da Silva fez uma turnê em parte da Europa. Da Alemanha à Espanha, passando pela Bélgica e pela França, reativou a empatia discretamente congelada pelos seus reveses judiciais e prisionais de 2016 a 2019. Teria sido essa a maneira encontrada pelo carismático líder brasileiro de deixar envergonhados, com as bochechas vermelhas, todos aqueles que hoje o recebem de braços abertos, embora ainda ontem tivessem se esquivado de solicitar a revisão da sua condenação, de origem mais política do que jurídica?
Se a turnê também visou isso, no entanto, o que se pode afirmar com certeza é que o ex-presidente fez essa turnê com a intenção de validar internacionalmente sua candidatura para as eleições de 2022. Os europeus, como muitos outros no Brasil e na América, estão à espera de um sucessor para fechar o parêntese caótico dos anos Bolsonaro. A aprovação da candidatura de Lula pelas autoridades democráticas europeias é claramente um passe presidencial que busca superar as relutâncias e reservas em relação ao Brasil. Resta saber que tipo de janela de oportunidade econômica, financeira e social foi concedida a Lula como candidato na pole position contestada em casa, mas incensada com o apoio conquistado no “velho continente”.
BRASIL, VIRANDO A PÁGINA DA “ENTROPIA”
Uma página foi de fato virada. Uma página de dúvidas no exterior sobre o Brasil, uma página repleta de arrependimentos e nostalgia sobre a probidade dos “queridos amigos” e parceiros de ontem, Dilma Rousseff e Lula, isso antes de suas condenações. Quem do exterior acreditou neles? Não há fumaça sem fogo, dizia-se à época, com as chancelarias da mídia e, às vezes, a das sociedades civis. E isso porque, como se dizia no exterior à época, a justiça brasileira demonstrava, nesta dolorosa circunstância, uma “exemplar independência”, ao atingir as cúpulas do Estado. A mezza voce, concluiriam certos círculos de então, é tempo de olhar para o futuro a vir, afinal o Brasil é uma economia do futuro. No Brasil, uma janela de oportunidades tinha sido escancarada, com a dupla interdição de Lula, pela prisão e pela impossibilidade de se recandidatar. Foi eleito então o presidente espantalho, Jair Bolsonaro, que liberalizou aos predadores de todo tipo a floresta tropical amazônica e as políticas nacionais e sociais. À esquerda, alguns correram para ocupar o vácuo “deixado” por Lula, derramando então, como bons cristãos, lágrimas de crocodilo solidário.
Também no Brasil, uma página foi virada. Lula, Dilma Rousseff e o PT tiveram de rever algumas posições, com remorso e certo mal-estar. O laranja, Jair Bolsonaro, colocado no governo do Brasil, não conduziu como era esperado o negócio. O país entrou numa fase de queda livre, em parafuso, desde 1 de janeiro de 2019, quando ele tomou posse. O Brasil, a sexta maior economia em 2016, está agora classificado em décimo quarto lugar. Outrora uma potência respeitada, o Brasil, alinhando-se de maneira voluntária e subordinada aos desejos dos Estados Unidos, isolou-se do resto do mundo. Jair Bolsonaro se viu ignorado no G-20, em Roma, no dia 30 de outubro de 2021. Ele não participou de reuniões presenciais com os seus colegas que efetivamente o colocaram em quarentena. O Estado brasileiro cedeu voluntariamente os seus instrumentos estratégicos de ação e defesa, privatizando aceleradamente uma série de suas instituições: os Correios, vinte e dois portos e cinco aeroportos, onze rodovias, três ferrovias, a companhia nacional de eletricidade Eletrobrás, a companhia de água do Rio de Janeiro. A Embraer, a terceira maior fabricante mundial de aeronaves, escapou da aquisição pela Boeing devido ao clima hostil para negócios advindo da crise sanitária. No entanto, o principal porto do país, o Porto de Santos, e a companhia petrolífera Petrobrás, podem passar para o controle privado estrangeiro antes do final do mandato do Presidente Bolsonaro. A epidemia da Covid-19, desde o início mal gerida pelo Estado, já matou 612.842 brasileiros até 22 de novembro de 2021.
BRASIL 2022, MOMENTO DA VERDADE
Empresários e agroexportadores brasileiros, bastante decepcionados com a “Gestão Bolsonaro”, lembraram-lhe várias vezes de seus interesses. Os brasileiros mais modestos, as primeiras vítimas da pandemia sanitária e social, estão sofrendo. Estão agora menos dispostos a aceitar a retórica anti-Lula, amplamente difundida no país quando da última eleição. Até porque o sistema judicial, com as eleições presidenciais de 2018, deixou bem claro, com múltiplas evidências que, de fato, não havia razões para manter as acusações contra Lula. Ele foi, então, solto da prisão em Curitiba em 8 de novembro de 2019. Tendo recuperado os seus direitos como cidadão, Lula pode retomar sua atuação política com vistas às eleições presidenciais de outubro de 2022.
O horizonte eleitoral é um momento de verdade para o Brasil, para os seus partidos políticos democráticos, para Lula, para o mundo empresarial brasileiro. Lula abre uma janela com seu retorno ao cenário eleitoral. Ele continua a enfrentar uma série de resistências – a das potências econômicas, que procuram uma “terceira via”, assim como a dos Nem-Nem (nem Bolsonaro, nem Lula). Essas potências têm convocado os partidos da suposta direita, DEM, MDB, PSDB. No centro-esquerda, Ciro Gomes e o PDT veem esvair a oportunidade então criada com a prisão de Lula. O PSB hesitou durante algum tempo. Desde a sua saída da prisão, Lula tem falado com todos, cara a cara. Primeiro, para unir a esquerda, em seguida para alargar a sua base eleitoral tanto junto à direita quanto à centro-direita. Porque, como disse a um jornalista espanhol, “o ideal seria que o meu partido ganhasse as eleições […] senão teremos de negociar com aqueles que foram eleitos”.
Lula compreendeu que os caminhos que levam ao Senhor são inspirados pelo caminho original, aquele de Damasco, feito por Paulo, da queda para a conversão. No que lhe diz respeito, esses caminhos passam por Berlim, Bruxelas, Paris e Madrid. Recebido pelos profetas Olaf Scholz, chanceler alemão em exercício, Emmanuel Macron, presidente francês, Pedro Sánchez, presidente do governo espanhol, Josep Borrell, vice-presidente da Comissão Europeia, e os empresários locais, Lula, em seu retorno para casa, pode mostrar suas credenciais internacionais a banqueiros, líderes agrícolas e industriais brasileiros. Tendo sido convidado para a “mesa sagrada” de alguns progressistas, os ex-presidentes François Hollande (França) e José Luis Rodríguez Zapatero (Espanha), Anne Hidalgo, prefeita de Paris, e Jean-Luc Mélenchon, candidato de esquerda que concorreu às eleições presidenciais francesas de 2012, 2017, e 2022, Lula assim se aproxima, em seu realismo eleitoral de esquerda, de partidos desse lado do continuum político no Brasil, ou seja, do PCdoB, PSB, PSOL, e quem sabe, do PDT.
Essa estratégia vai funcionar? Tudo indica que sim, se observarmos as sondagens que dão a Lula uma liderança impressionante em números de intenção de voto sobre o seu rival em exercício, Bolsonaro. Mas nada é certo. A direita ainda está à procura de uma saída. O ex-juiz Moro, que depois de ter encarcerado Lula e composto o governo Bolsonaro, anunciou a sua entrada no jogo eleitoral. Bolsonaro, por outro lado, não desistiu. Ele tem apoio religioso e militar. Resta saber até onde irá a candidatura de Lula sem um projeto elaborado e sem uma base ampla e tão forte no congresso como os de 2002, data de sua primeira vitória presidencial. Isso exigirá de seu governo o apoio de forças políticas e sociais com interesses egoístas. Nesse cenário, Lula “Salvador” de si, sem dúvida. Lula “Salvador” dos brasileiros mais necessitados, será uma outra história.
Texto publicado originalmente em francês, em 25 de novembro de 2021, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Après sa récente tournée européenne: Lula sauveur du Brésil?”. Tradução: Andrei Cezar da Silva e Adriana Cícera Amaral Fancio. Revisão de Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.