“Não vou sair nem pelo caralho. Tá cheio de jornalista lá fora.”
“Vai ter que sair. Que fobia de jornalista é essa agora?”
“Fobia é a tua mãe! Que é que eu digo pra eles, porra?”
“Conta uma das suas. A claque de idiotas está aí pra rir.”
“E se me perguntarem…”
“A gente combinou: diz um absurdo qualquer, o maior absurdo de todos, uma coisa que obviamente não faça sentido. Segue a tática da provocação. Deu certo até agora. (…)”.
Em seu mais recente artigo na Folha de S.Paulo, Bernardo Carvalho imaginou esse diálogo entre dois homens, dentro de um carro, “do outro lado do mundo” em que ele estava, acompanhando um amigo de férias em Berlim, na visita ao bunker nazista erguido em 1942 “para ser invencível, indestrutível, eterno”, com uma planta e uma estética que eram parte do projeto de reconstruir a capital do Reich à imagem de Roma. Um bunker, por definição, deveria ser subterrâneo. Então, pergunta a guia, “porque está na superfície, exposto?”. “Porque é uma provocação”, conclui o escritor.
Na mais recente vez em que “ultrapassou todos os limites” – como não se cansam de dizer as pessoas atordoadas com o que veem, talvez por não perceberem a incongruência do comentário, talvez apenas pela reação automática que sempre recorre a um lugar-comum -, Bolsonaro apelou para um clone: um humorista que encenava um número para a estreia de seu quadro no programa dominical noturno da Rede Record, aliada do presidente – e as almas mais sensíveis hão de ter engulhos caso vejam como a apresentadora o anunciou, usando e abusando da metáfora do “furo” com a qual o Bolsonaro real recentemente ofendeu a jornalista Patricia Campos Mello, responsável pelas reportagens que apontavam fraude no uso de WhatsApp como ferramenta de campanha para a eleição do atual presidente. (Patricia vem sofrendo violentos ataques misóginos nas redes bolsonaristas e, neste domingo, Dia da Mulher, deu uma resposta vigorosa num texto que vem circulando amplamente na internet).
Porém, no caso do dublê, Bolsonaro ultrapassou mesmo um limite que ainda não havia sido testado. Porque não foi o insulto puro e simples que caracterizava o “cavalão” desde seus tempos de deputado e que se repetiu exaustivamente no desrespeito à imprensa: não se tratava apenas – como se fosse pouco – de respostas e atitudes grosseiras ou do encerramento súbito de entrevistas diante de perguntas indesejadas. Agora o presidente aparecia ao lado de seu clone e era a ele, o clone, que os jornalistas deveriam endereçar as perguntas. Aproveitando o dia em que seria óbvio um questionamento sobre o tamanho do PIB, decepcionante apenas para falsa expectativa que a própria imprensa ajudou a criar ao longo do ano, Bolsonaro estimula o comediante: “Pergunta aí o que é PIB!”, talvez na intenção de mais uma piada escatológica, que Antonio Prata explorou exemplarmente em seu artigo deste domingo na Folha.
Talvez não tenha percebido, mas, com essa encenação, Bolsonaro produziu a imagem mais verdadeira do que ele próprio representa: um fake, uma fraude. Uma fraude, entretanto, perfeitamente ao gosto do público que o elegeu, adestrado ao longo de décadas pela ideia de que político é tudo farinha do mesmo saco e que política é só uma forma de “se arrumar” na vida. Se cultura, como definiu a nova secretária dessa pasta no seu discurso de posse, “é aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço”, por que a política seria diferente?
Por isso não adianta muito exigir “compostura, senhor presidente!”, como fez a ABI em nota oficial. Porque, como argumentou Marcelo Auler – por sinal, diretor de jornalismo da casa -, é inútil pedir decoro a quem nunca o teve: “não é apenas um gesto ingênuo, mas pura e total burrice”. Sobretudo porque essa falta de decoro faz parte do plano de destruir as instituições democráticas, que no Brasil jamais funcionaram adequadamente – exatamente porque jamais fomos uma República – e que, desde o processo que resultou no golpe contra Dilma Rousseff, trabalham contra si próprias ao abrir caminho para a eleição de um fascista. É debochando da “liturgia do cargo”, afetando maus modos na suposta “informalidade” à mesa do café, distribuindo bananas e xingando jornalistas, fazendo ameaças verdadeiras que depois finge serem piada, é produzindo um clima de permanente confusão, turbulência e incerteza que Bolsonaro avança.
No início de novembro de 2016, pouco antes de ser absolvido, pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, da acusação de falta de decoro por homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra em seu voto pelo impeachment de Dilma, Bolsonaro deu uma “entrevista” a um youtuber que o imitava. No fim do ano passado, o jornalista Hugo Souza recordou o episódio em seu site Come Ananás. Entre as risadas forçadas de sempre, volta e meia Bolsonaro tirava uma pistola do paletó. Estava então no início das articulações para uma candidatura que ninguém levava a sério. No meio do programa, ameaçou – de “brincadeirinha”, como sempre – o humorista: “Eu, pacificamente, vou te matar”, e logo depois perguntou se aquele não seria um bom slogan de campanha. A frase, recorda Hugo, “estampa um quadro relativamente famoso ‘assinado’ por ‘Beiçonaro’ [o personagem inventado pelo youtuber]. Segurando o quadro, e de arma em punho, Bolsonaro diz para a câmera: ‘E você aí? Já decidiu seu voto? Ou pacificamente quer que eu decida por você?’”.
Em 17 de fevereiro deste ano, o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, durante cerimônia oficial e aparentemente sem saber que estava sendo gravado, reagiu assim ao que considerava uma chantagem dos parlamentares: “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. Foda-se.” Na semana seguinte, a jornalista Vera Magalhães, do Estado de S.Paulo, noticiou que o presidente havia divulgado um vídeo convocando para uma manifestação em 15 de março, em defesa do governo e em protesto contra o Congresso e o STF. Bolsonaro contestou, dizendo que se tratava de um vídeo antigo, de três anos atrás, chamando para uma manifestação que coincidentemente ocorreu também num 15 de março. Não era verdade: o vídeo trazia a cena da famosa facada e a imagem de Bolsonaro com a faixa presidencial. Como tantas ao longo da campanha e deste primeiro ano de mandato, era mais uma jogada de ilusionismo. Agora, o presidente volta à carga e estimula o comparecimento à manifestação “espontânea” do povo.
Nas últimas duas semanas, as redes foram infestadas de vídeos com essa convocação, que mitificam e vitimizam a figura de Bolsonaro, apelam à intervenção dos militares, ridicularizam os políticos e ministros do STF e conclamam ao resgate do “nosso país”.
Retornemos então à visita de Bernardo Carvalho ao bunker nazista:
“No meio do labirinto, a guia diz que o fascismo é um buraco negro onde já não existem ideias fora do lugar (nada é o que é, tudo se explica à força). E que não há fascismo sem autoengano. A democracia, assim como a civilização, nunca está dada. As leis dependem dos homens que as aplicam. É preciso defendê-las das forças contrárias, que estão sempre à espreita, são permanentes e representadas pelos próprios homens.”
Em seus últimos artigos (aqui e aqui), Janio de Freitas tem alertado para o “odor palaciano” que exala esse chamado ao povo contra o Congresso e o Supremo e para o avanço à situação típica de golpismo.
“Eu, pacificamente, vou te matar.”
Não terá sido por falta de aviso, mas pela ausência de reação.
Publicado originalmente no site objETHOS.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é professora aposentada da UFF, pós-doutoranda na Universidade do Minho e pesquisadora do objETHOS.