A chegada ao poder presidencial do chileno Gabriel Boric Font, um homem de esquerda, que tomará posse no próximo 11 de março, parece anunciar um novo ciclo político na América Latina. As pesquisas realizadas na Colômbia e no Brasil, que deverão eleger os seus chefes de Estado em 29 de maio e 1 de outubro de 2022, indicam a vitória de dois candidatos progressistas, Gustavo Petro e Lula da Silva. Além disso, nos últimos dois anos, aparentemente anunciando este ciclo, os eleitores na Argentina, Bolívia, México e Peru escolheram presidentes de esquerda para liderarem seus países.
Um novo ciclo de “esquerda” parece ter se iniciado na América Latina. Novo em referência ao que foi aberto em 1999, com a chegada ao cargo de presidente por Hugo Chavez na Venezuela. Este ciclo foi suspenso pelo questionável impeachment da presidenta brasileira, do Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff, em 2016, e pela chegada ao poder de maiorias conservadoras e liberais na Argentina, Chile, Colômbia, Guatemala, Paraguai, Peru, El Salvador e Uruguai. Mas haveria nisso uma coerência facilmente atribuível? Seriam estes ciclos, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, tão óbvios como parecem à primeira vista? Poderíamos falar de ciclos ideológicos quando olhamos mais de perto?
Ninguém contesta a realidade dessas alternâncias, sejam aquelas de 2000/2015, sejam aquelas que se seguiram depois. Ninguém também contesta a cor política dos sucessivos vencedores. Para além das suas diferenças, a chilena Michelle Bachelet, o equatoriano Rafael Correa e o uruguaio Tabaré Vasquez foram presidentes progressistas. Da mesma forma, o chileno Sebastián Piñera, o equatoriano Guillermo Lasso e o uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou foram, todos eles, chefes de Estado representantes da direita puro sangue.
Duas observações permitem, como se diz, abrir uma caixa de surpresas. A primeira diz respeito à realidade de alternâncias convergentes com conteúdos vizinhos. Estas convergências são inegáveis, mas apenas em parte. Aqui ganha um progressivo e ali um conservador. Ao mesmo tempo ou quase. Para citar alguns exemplos recentes, Jair Bolsonaro, afirmando ser de “extrema-direita”, ganhou no Brasil em 2018, poucos meses antes de Andrès Manuel Lopez Obrador, à esquerda, ganhar as eleições presidenciais mexicanas. A segunda, igualmente recente, diz respeito à Argentina. Os eleitores argentinos puniram o titular da direita, Mauricio Macri, em 2019, e escolheram um peronista de centro-esquerda como inquilino da Casa Rosada. Dois anos mais tarde, praticamente os mesmos eleitores mostraram o cartão vermelho para a política do atual presidente nas eleições legislativas, dando novo fôlego à direita com a escolha da maioria deputados macristas para o Congresso.
Estas escolhas eleitorais simultâneas, mas ideologicamente distantes, estas idas e vindas da direita para a esquerda, de uma consulta eleitoral para a outra, não permitem a utilização da designação ‘ciclo’, ou pelo menos obrigam a considerá-la de maneira distinta. Esta situação nos leva a procurar um significado para observações que parecem ser verdadeiras e óbvias, mas que se revelam bastante lacunares. As alternâncias de poder são inegáveis e, ainda, é fundamental que haja uma possibilidade efetiva de alternância. Em outras palavras, deve haver de fato uma disputa pelo poder através de eleições competitivas e transparentes. Essas observações excluem, portanto, alguns países que não permitem efetivamente esta possibilidade, por ordem alfabética, Cuba, Haiti, Nicarágua e Venezuela.
As discrepâncias observadas nestes ciclos de alternância para os postos principais dos Estados nos levam a concentrar a nossa reflexão não nos compromissos da direita e da esquerda, mas tentar identificar a força motriz por detrás de todas estas alternâncias. Na verdade, existe uma, e que é reveladora de todas as mudanças nas orientações presidenciais nesses países. E ela não é ideológica. “É a economia, idiota”, declarou Bill Clinton em 1992, em um contexto eleitoral, candidato às prévias presidenciais pelo partido Democrata nos Estados Unidos, mas consciente do contexto que teria uma influência decisiva no resultado.
As alternâncias, em todos esses lugares, responderam a movimento coletivo de indignação e desinteresse dos eleitores. Isso se deu tanto para as alternâncias à direita como para aquelas à esquerda. Na América Latina também, a situação econômica também, o pão de cada dia também, têm pesado e cada vez mais na escolha por parte dos eleitores. O caso mais próximo e mais didático a esse respeito é o do vai e vem argentino. Mauricio Macri, de direita, foi expulso da Casa Rosada devido às taxas de pobreza, inflação e desemprego. Alberto Fernandez, à esquerda, sofreu o mesmo gostinho de derrota, pelas mesmas razões. Mas então por que é que os eleitores já não têm a lealdade de outrora? Esta é uma outra história, uma outra página a abrir, um outro artigo a ser escrito.
Texto publicado originalmente em francês, em 06 de janeiro de 2022, na seção ‘Actualités, Amérique Latine’ do site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “L’Amérique Latine 2022: Aux portes d’un nouveau cycle politique”. Tradução de Adriana Cícera Amaral Fancio. Revisão de Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LIRE (Laboratório de Estudos da Leitura) e LABOR (Laboratório de Estudos do Discurso), ambos na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).