O bolsonarismo, como todo movimento de extrema-direita, precisa da constante invenção de inimigos externos para garantir a sua existência. Nesse sentido, Freud já dizia que a criação de bodes expiatórios – aos quais as pessoas deveriam direcionar seus sentimentos mais negativos – é um importante fator para manter a coesão de um determinado grupo. Entretanto, no caso do bolsonarismo, esse bode expiatório não pode ser um inimigo qualquer. Ele deve ser inerentemente ideológico, mais precisamente ligado ao que rotulam como “comunismo”.
Durante o processo eleitoral de 2018, o principal inimigo do bolsonarismo era o Partido dos Trabalhadores – pois, para os seus oligofrênicos adeptos, tudo o que esteja relacionado à esquerda política, por mais moderado que possa ser, é automaticamente “comunista”. Na época, a grande mídia, sobretudo a Rede Globo, ao associar práticas de corrupção exclusivamente ao PT, fornecia as munições necessárias para o exército bolsonarista. Das redes sociais, vinham devaneios em forma de fake news, como a “mamadeira erótica”, o “kit-gay” e a “ideologia de gênero”, entre outros exemplos que “comprovariam” a tese de que o PT queria destruir a família brasileira (lembrando que o apego à tradição é um dos principais pilares do bolsonarismo).
Em 2019, mesmo já ocupando a presidência da República, Jair Bolsonaro manteve o tom agressivo de seus discursos, agindo como se ainda estivesse em campanha eleitoral. O mesmo, obviamente, foi feito por seus fiéis seguidores.
Como Bolsonaro chegou ao Planalto por meio de uma aliança heterogênea entre mídia hegemônica, grande capital, latifundiários, evangélicos e neoliberais – que, em comum, tinham apenas o ódio ao PT e o desejo de diminuir o papel do Estado na economia -, era natural que, mais cedo ou mais tarde, as divergências entre esses setores viessem à tona. Quando a Rede Globo começou a fazer suas primeiras críticas ao governo Bolsonaro, a emissora da família Marinho automaticamente entrou para o rol de inimigos dos bolsonaristas, pois um dos principais preceitos desse movimento de extrema-direita é a infalibilidade do “mito”. Qualquer um que discordar minimamente do que diz Bolsonaro deve ser linchado virtualmente.
Porém, diferentemente do PT, a Globo é submissa ao imperialismo estadunidense, aliada incondicional dos grandes capitalistas, defende o Estado mínimo e a aplicação irrestrita da agenda neoliberal. Portanto, não haveria como rotulá-la de comunista (pelo menos por meio do viés econômico).
Foi então que os bolsonaristas recorreram a uma teoria da conspiração criada (ironicamente) na Alemanha nazista. Trata-se do chamado “marxismo cultural” (conhecido em terras germânicas como “bolchevismo cultural”). Sua principal premissa seria a destruição dos valores tradicionais através do estabelecimento de uma sociedade global, igualitária e multicultural.
Como a Globo (supostamente) apoia movimentos feministas e exibe casais gays em suas telenovelas, atentando assim contra a moral e os bons costumes da tradicional família brasileira, a emissora seria adepta do “marxismo cultural”, fator suficiente para classificá-la como comunista. Não por acaso, a hashtag “Globo Lixo” é uma das preferidas dos bolsonaristas. A emissora só foi útil quando destinava boa parte de seus noticiários para atacar o PT.
Eis então que, nos primeiros meses de 2020, a temível pandemia do coronavírus chega ao Brasil, o que, em tese, exige a união de todos os cidadãos para combater um inimigo em comum.
Pois bem, “união de todos os cidadãos” é algo impensável para os bolsonaristas. Já a palavra “inimigo” soa bastante familiar. Quem seriam os bodes expiatórios da vez?
Conforme a realidade nos tem mostrado, na linha de frente do combate ao coronavírus estão dois alvos do bolsonarismo: a ciência e a universidade.
Segundo o sociólogo Jessé Souza, “o anti-intelectualismo está em casa na baixa classe média [setor onde se encontra boa parte do bolsonarismo]. Isso é importante quando queremos saber a quem Bolsonaro fala quando ataca, por exemplo, as universidades e o conhecimento. A relação da baixa classe média com o conhecimento é ambivalente: ela inveja e odeia o conhecimento que não possui, daí o ódio aos intelectuais, à universidade, à sociologia ou à filosofia”.
Mas ciência e universidade já são inimigas corriqueiras do bolsonarismo. Conforme mencionei anteriormente, o funcionamento desse movimento depende intrinsecamente da constante criação de inimigos. Era preciso recorrer a algo novo.
As falas de Bolsonaro que minimizavam a gravidade do coronavírus e conclamavam pelo fim do isolamento social para combater a pandemia foram um sinal de alerta. Aliás, o negacionismo também é uma característica do bolsonarismo. O movimento caminha lado a lado com os ideais antivacina e com as hipóteses que negam os impactos causados pelo ser humano sobre o meio ambiente. Nessa leva estão, por exemplo, os ataques a ONGs e a órgãos como o INPE.
Mas, voltando ao que interessa, nesses tempos de pandemia, quem seria o mais novo inimigo do bolsonarismo? Na GloboNews, o articulista Octavio Guedes elucidou essa questão. O mais novo bode expiatório para o bolsonarismo é… o próprio coronavírus.
Não pode ser! Vírus são organismos acelulares, evidentemente irracionais, não têm ideologia. Não são de esquerda, nem de direita. Como rotular um vírus como comunista, condição sine qua non para um inimigo do bolsonarismo? Foi relativamente fácil. Para tanto, os bolsonaristas recorreram a uma de suas principais especialidades: produzir fake news.
A mais recente teoria da conspiração parte do princípio de que o coronavírus foi criado pela China comunista para dominar a economia global. Ou seja, um vírus comunista para acabar com o capitalismo. Nas redes sociais, bolsonaristas tentaram emplacar a nomenclatura “vírus chinês” para designar o coronavírus. Não obtiveram êxito. Perderam essa simbólica batalha lexical.
Já outras interpretações bolsonaristas foram mais ousadas: simplesmente negaram a ocorrência do coronavírus. A pandemia não existe: é uma invenção do chamado “globalismo”, com o aval da China, da mídia e, é claro, do PT.
Até nomes de partidos políticos tradicionais da direita brasileira – como Luiz Henrique Mandetta, Ronaldo Caiado e João Doria -, por defenderem o isolamento social, também foram caracterizados como comunistas em grupos bolsonaristas nas redes sociais.
E assim caminha a estupidez humana. Em outros tempos, para ser considerado comunista, um indivíduo deveria pertencer a um determinado quadro partidário, defender ideais revolucionários e ter um bom conhecimento da profícua obra de Karl Marx; hoje, basta discordar minimamente de Jair Bolsonaro. Parece a paranoia macartista durante a Guerra Fria, mas, infelizmente, é o surreal e atávico Brasil do século XXI.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e pesquisador das relações entre mídia e ensino. Autor dos livros A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes (parceria com Vicente de Paula Leão) e 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático, ambos pela editora CRV.